Infância, comportamentos desviantes, gravidez e parto, timidez, envelhecimento, masculinidade, impotência, sobrepeso, tristeza. Ao longo das últimas décadas tem-se observado a proliferação de diferentes objetos ‘medicalizáveis’. Para cada um deles, surgiram novas condições médicas – como o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a fobia social, a menopausa, a deficiência androgênica do envelhecimento masculino, a disfunção erétil – que passaram a ser definidas e tratadas como problemas de saúde. Elas foram “medicalizadas” – transformadas em problemas que exigem a consulta a um médico ou especialista e, na maioria das vezes, tornaram-se alvo de medicações.
Referência no estudo da medicalização, o sociólogo americano Peter Conrad a definiu como “um processo pelo qual problemas não-médicos passam a ser tratados como problemas médicos, frequentemente em termos de doenças ou transtornos”. O que se percebe na definição de Conrad, autor de “The Medicalization of Society: on the Transformation of Human Conditions into Treatable Disorder” (2007), é a ênfase no deslocamento de comportamentos antes não pertinentes ao campo de intervenção médica para essa jurisdição. Ou seja, aquilo que não necessariamente é um problema médico passa a ser entendido como se fosse.
A medicalização como crítica ao poder médico, pensada como extensão dos limites da autoridade médica sobretudo a partir da obra de Conrad, foi o pano de fundo do primeiro ciclo de debates “Medicalização, Ideologia e Ciência: Quo Vadis?”, evento ocorrido na UERJ no dia 16 de setembro promovido pelo Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (Lappis/IMS). A mesa reuniu os professores Kenneth Camargo e Sérgio Carrara, do Instituto de Medicina Social (IMS), e o deputado federal Jean Wyllys, além da coordenadora do Lappis, Roseni Pinheiro, como mediadora.
"A medicalização não possui necessariamente uma implicação negativa, ela pode ter vantagens e desvantagens”, ressaltou Kenneth Camargo. “O processo pode ser vantajoso e benéfico, como no caso do advento dos antirretrovirais no tratamento do HIV/Aids, que não existia como problema médico até os anos 1980. Esta é uma forma de medicalização que ajudou a enfrentar um problema de saúde pública. Já o enquadramento da sexualidade em ‘hetero’ e ‘homo’ teve implicações, como a ideia de patologização de determinados comportamentos e práticas sexuais”, avaliou o professor do IMS/UERJ.
Michel Foucault foi um dos autores que contribuiu para o debate em torno do tema da medicalização. A medicalização de que trata Foucault é um dispositivo central do exercício do que se chamaria de biopolítica – exercendo-se por meio da pedagogização do sexo da crianças, da histerização das mulheres, da psiquiatrização das perversões –, conduzindo a uma medicalização minuciosa (e controle) dos corpos e da sexualidade. Segundo ele, a dimensão da medicalização no século XX não encontrou limites, e incorporou uma função normatizante, pela qual se definiram os limites do normal e anormal.
“Como dizia Foucault, as categorias hetero e homo são "filhas" da ciência”, avaliou Sergio Carrara. “O discurso médico em relação à homossexualidade se constrói dentro do conflito entre a versão biomédica e a versão jurídico-moral. Por muito tempo, a homossexualidade pairou entre o modelo da anomalia hereditária (degeneração) e de uma situação doentia. Ela passa a ser medicalizada a partir desta ambigüidade. Um dos sentidos mais conhecidos do termo medicalização é o de definir como transtornos médicos comportamentos transgressivos e desviantes das normas sociais vigentes – como a homossexualidade – em determinado cenário sócio-histórico”, relatou o antropólogo.
O deputado federal Jean Wyllys ressaltou os ganhos, na época, com o deslocamento da definição de comportamentos desviantes, moralmente repreensíveis, para condições médicas. ”Num primeiro momento, a homossexualidade foi pensada como pecado por razões religiosas, num segundo momento como crime e depois como doença, ou seja, sua condenação transferiu-se da esfera da religião para a ciência. Mas uma vez convertido em doença, o peso moral da responsabilidade pelo ato homossexual é diminuído ou extinto. Houve, portanto, um benefício real em sofrer de uma doença, no lugar de ser considerado um desviante ou condenado por ser um transgressor de normas sociais”, afirmou.
No texto “Medicine as an Institution of Social Control” (1972), Irving Zola defende que a medicina tem adquirido a função de regulação social antes considerada um atributo da religião e da lei, tomando para si o lugar de avaliador moral, a partir do lugar supostamente neutro e objetivo da ciência.
Medicalização como controle social
Desde 1973 a homossexualidade deixou de ser classificada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria e, em 1975, a Associação Americana de Psicologia fez o mesmo. No Brasil, em 1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) passou a considerar a homossexualidade como algo não prejudicial à sociedade. No dia 17 de maio de 1990, a Assembleia-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade do seu manual Classificação Internacional de Doenças (CID).
No Brasil, em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabeleceu regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que "a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio ou perversão" e que “os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura da homossexualidade”. Mesmo assim, recentemente um projeto de lei de autoria do deputado federal João Campos (PSDB) propunha sustar a resolução do CFP, alegando que esta feriria, em sua visão, o direito á saúde conforme previsto na Constituição brasileira. Assim, a proposta visava dar permissão aos psicólogos brasileiros para “curar” a homossexualidade, através do atendimento a uma pessoa homossexual em sofrimento.
“O Conselho não nega o atendimento a um homossexual em sofrimento. Não se sofre por ser homossexual ou porque se deseja uma pessoa do mesmo sexo, mas sim por estar subvertendo uma ordem de gênero definida pela sociedade”, rebateu Jean Wyllys. “Um menino é insultado por brincar de boneca. Quando o desejo homossexual vier, este menino o experimentará com muita culpa e esse sofrimento não o abandonará até a vida adulta. O tratamento oferecido a esta pessoa, que cresceu com este sofrimento psíquico, deve ser ‘seja você mesmo’, para que ela se aceite e reinterprete o seu desejo”.
Para o deputado, o problema são os usos e leituras oportunistas que os setores conservadores fazem da ciência. "A ciência que nos deu a penicilina, a camisinha e a televisão é a mesma ciência que diz que a homossexualidade não é doença. Por que eles aceitam as verdades da ciência de um lado e não as aceitam de outro?", questionou Jean.
O projeto de lei, conhecido como “cura gay”, acabou sendo derrubado. No entanto, por mais absurda que pareça, a proposta se alinha a um dos pressupostos da medicalização: o de legar aos indivíduos uma perda da autonomia para lidarem com seu sofrimento. Para os autores que defendem a tese da medicalização como controle social, quanto mais medicalizado um indivíduo ou a sociedade em que vive, maior o controle social a que estão submetidos. Nesta perspectiva, a medicalização seria, assim, uma forma de imperialismo médico e de exercício do controle, que negaria a autonomia por parte dos indivíduos.
O controle sobre a prostituição no Brasil
Outro alvo de controle tem sido as/os trabalhadoras/es sexuais. No Brasil, um projeto de lei (377/2011), do mesmo deputado João Campos – que propôs o projeto de “cura gay” –, ainda em tramitação no Congresso, visa criminalizar o ato de oferecer pagamento a alguém pela prestação de serviços sexuais e também o ato de aceitar a oferta.
Para o deputado Jean Wyllys, antes de tudo é preciso definir claramente o que é prostituição. Na tentativa de escapar aos contornos conservadores e morais que o tema tem adquirido, o deputado está propondo o projeto de lei 4.211/2012, que estabelece um espaço político para a questão da prostituição no Congresso brasileiro e na sociedade. “Entendo a prostituição como atividade exercida por pessoa adulta e capaz, não importando a condição ou a história que a levou para a ocupação. É importante que se acabe com o status de indefinição da atividade, promovendo um amparo legal claro e específico. Enfrentar a insegurança jurídica é uma maneira de proteger as prostitutas.”, esclareceu o deputado.
O PL 4.211/2012 define o profissional do sexo como toda pessoa maior de dezoito anos e capaz, voluntariamente, de prestar serviços sexuais mediante remuneração. Regulamenta as casas de prostituição, desde que não se exerça exploração e fixa um teto de apropriação do rendimento de prestação de serviço. Estabelece ainda uma aposentaria especial para as prostitutas e define os marcos que diferenciem prostituição de exploração.
“A ambiguidade legal em que vivemos prejudica e vulnerabiliza as prostitutas. Elas são vítimas da falta de clareza. Atualmente, casas de prostituição são consideradas ilegais. Ora, quem não conhece uma casa desse tipo? É uma realidade visível. A legalização das casas vai dar às prostitutas instrumentos para se proteger dos abusos cometidos lá dentro. O projeto de lei regulamenta as relações trabalhistas ali dentro, estabelecendo diretrizes de lucro e apropriação de rendimento. Apropriação de mais de 50% do lucro de um serviço sexual configura exploração. O mesmo vale para serviço prestado mediante ameaça ou violência.”, explicou Jean Willys.
Transexualidade: ainda um transtorno
A homossexualidade deixou de ser considerada doença, mas a transexualidade é considerada um transtorno até os dias de hoje, apesar de haver um movimento internacional pela sua despatologização. No Brasil, a cirurgia de mudança de sexo pode ser realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 1998, mas para uma pessoa poder fazer o procedimento, ela precisa se submeter a dois anos de terapia para então receber um laudo de que sofre de uma doença mental chamada de disforia de gênero. Por isso, o movimento pela despatologização divide opiniões, uma vez que o laudo é condição essencial para se fazer a cirurgia.
Provado o transtorno mental, a pessoa tem ainda outro obstáculo: mudar o nome em sua identidade. Também de autoria do deputado Jean Wyllys juntamente com a deputada Erika Kokay (PT-DF), o projeto de lei 5002/2013 estabelece os mecanismos jurídicos para o reconhecimento da identidade de gênero, permitindo às pessoas a retificação de dados registrais, incluindo o sexo, o prenome e a imagem incluída na documentação pessoal. A lei de identidade de gênero também regulamenta as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais que se realizam como parte do processo de transexualização.
“O conceito de pessoa trans utilizado no projeto de lei é: ‘pessoa que nasceu num sexo biológico definido, mas se identifica no gênero oposto ao que se entende culturalmente como correspondente a tal sexo’, o que abrange os conceitos de transexual, travesti e transgêneros; e o conceito de pessoa intersexual é ‘pessoa que nasceu com o sexo biológico indefinido, foi registrada e criada como pertencente a um determinado gênero, mas (neste caso em específico) não encontra identificação em tal’”, explicou Jean Wyllys.
Para o professor Kenneth Camargo (IMS), é preciso pensar na categoria doença, uma vez que mesmo dentro do domínio biomédico não há consenso. "Idealmente, uma definição de doença vai apontar para algum tipo de lesão, vai incluir uma definição processual e, mais modernamente, um tipo de teste ou marcador. Isso serve de modelo para as chamadas "doenças do corpo"", finalizou o pesquisador.
Fonte: Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010
Autora: Rafaela Teixeira Zorzanelli (UERJ)
Co-autores: Francisco Ortega (UERJ), Benilton Bezerra Jr. (UERJ)
Revista Ciência & Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva