“O campo de garantia de direitos da criança e do adolescente é conflituoso. Quando se articula a questões sobre sexualidade e gênero, as tensões ganham ainda mais intensidade”, afirma Vanessa Leite, que lança nessa semana o livro “Sexualidade adolescente como direito? A visão de formuladores de políticas públicas” (CLAM/EdUERJ). Fruto da dissertação de mestrado, a obra tem como ponto de partida as concepções dos atores responsáveis pela formulação de políticas públicas voltadas à garantia dos direitos de crianças e jovens, conselheiros de direitos da criança e do adolescente.
No Brasil, após a Constituição de 1988 e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a concepção sobre crianças e adolescentes foi sendo reformulada, do ponto de vista formal. Da ideia de indivíduos tutelados, que precisam de controle e vigilância por causa de uma suposta incapacidade, passou-se a noção de sujeitos de direitos, que precisam de proteção integral em razão da situação de desenvolvimento por que passam. Por isso, a atenção especializada passa a privilegiar o empoderamento, de uma perspectiva instauradora de prerrogativas, e não mais a ideia de vítima ou algoz (marcada pela rubrica da “menoridade”).
No entanto, na prática, a observação dos Conselhos de Direitos, órgãos ligados aos Poderes Executivos em seus três níveis, demonstra que a incorporação do modelo proposto no final do século passado não é simples. Enfrenta resistência no cotidiano de discussão e elaboração de políticas públicas. “Existe uma tensão dentro do campo da criança e do adolescente que circula entre tais concepções. E a sexualidade é um espaço limite nessa dinâmica”, afirma Vanessa Leite, que trabalha há mais de 20 anos com adolescência, pesquisando mais recentemente as imbricações com sexualidade, direitos e políticas públicas.
De acordo com a autora, entre os discursos dos conselheiros entrevistados para a pesquisa, há uma tendência hegemônica de naturalizar a sexualidade. “Prevalece ainda a ideia de que os adolescentes estão à mercê de seus hormônios e, portanto, precisam de tutela e vigilância para o controle de tais impulsos. É como se eles fossem irresponsáveis na gestão de suas sexualidades”, observa Vanessa Leite, para quem a intenção do estudo não é desqualificar os Conselhos e os integrantes do campo, mas, ao contrário, propor alternativas na gestão de políticas públicas. “É importante manter constante diálogo entre governos, sociedade civil e a academia. Através dessa interação que podemos contribuir para que as políticas, programas e projetos atuem de uma maneira mais inclusiva”, completa.
A maneira mais inclusiva, enfatiza Vanessa Leite, significa reconhecer a sexualidade no que ela tem de positivo. Durante o processo da Constituinte e da formulação do ECA, setores religiosos, sobretudo católicos ligados à Teologia da Libertação, contribuíram para ampliar as possibilidades de infância e adolescência, afastando a ideia de “menoridade”. No entanto, a moralidade religiosa permanece como um entrave. “Discursos fundamentados em bases morais dificultam a compreensão do exercício da sexualidade nos marcos dos direitos sexuais. Ainda há dificuldade de tratar da sexualidade na sua dimensão prazerosa, na sua potencialidade. Acredito que isso, ao contrário do que muitos imaginam, permitiria aos jovens obter mais discernimento sobre suas experiências”, afirma Vanessa Leite.
De acordo com a autora, nos mais de 20 anos em que esteve inserida no campo, a sexualidade tem sido tematizada preferencialmente pelo viés da prevenção de DSTs, da gravidez indesejada ou da violência sexual. “Esses têm sido os temas que preenchem a agenda de sexualidade dentro das discussões e políticas. É um padrão que reflete concepções marcadas pela ideia de “menoridade”, pois aponta para os adolescentes como sendo vítimas ou incapazes de terem autonomia. É uma agenda negativa. Por que toda gravidez na adolescência é obrigatoriamente indesejada? Minha proposta com a pesquisa foi e continua sendo a de propor uma discussão em outros marcos, dando ênfase para as experiências prazerosas que a sexualidade pode permitir. Dando ênfase para questões relativas à educação em sexualidade . Positivar tal agenda traria benefícios e proteção para a vida dos jovens, garantindo seus direitos. Não é essa a proposta do ECA?”, argumenta Vanessa Leite.
A pesquisa desenvolvida no mestrado continua no doutorado, em fase final. Vanessa Leite tem estudado como a diversidade sexual e de gênero na adolescência é abordada por atores ligados às políticas públicas. “Na minha trajetória profissional, noto que as hierarquias de gênero e de sexualidade acabam reproduzidas. Há uma divisão entre meninas e meninos que se reflete na forma e no conteúdo das temáticas. Assim, a questão da gravidez aparece como um assunto feminino, como se os meninos não tivessem papel naquela gestação. Da mesma forma, a questão da orientação sexual parece muito atrelada a eles, pois continuamente se reafirma um modelo de masculinidade hegemônica que reforça preconceitos contra a homossexualidade. Os adolescentes representam um segmento plural, não se pode achar que há homogeneidade. Há indivíduos de todos os tipos, com orientação sexual e identidades de gênero diversas. Por isso, pensar a diversidade sexual é também uma forma de contribuir para que as políticas públicas atuem de forma inclusiva, respeitando e representando todas as possibilidades de experiência”, conclui Vanessa Leite.