A noção de risco em saúde orienta o processo de medicalização de nossa cultura. Porém, se por um lado, ela é importante para a formulação de políticas públicas de prevenção de problemas de saúde, por outro lado sabe-se que os indivíduos não podem viver preocupados com a questão do risco. As variações individuais são grandes, de modo que o que significa um risco para uns pode não ser para outros.
O caso da gestante que foi submetida a uma cesárea por decisão judicial oportuniza a discussão sobre o risco como organizador da vida cotidiana. Decidida a dar à luz por parto vaginal, ela foi obrigada por uma médica a fazer cesariana, depois que a profissional de saúde recorreu à Justiça, alegando tratar-se de uma “gravidez de risco”. De acordo com a médica, dadas as condições clínicas e sua história ginecológica e obstétrica anterior (feto em apresentação pélvica, gravidez pós-termo e duas cesarianas prévias), o procedimento cirúrgico era o mais indicado e a paciente não teria o direito de colocar em risco a integridade física da criança.
O Manual Técnico de Gestação de Alto Risco, do Ministério da Saúde brasileiro, apresenta quatro critérios para definir uma gestão de alto risco: características individuais e condições sociodemográficas desfavoráveis; história ginecológica e obstétrica anterior; doenças maternas prévias ou concomitantes; e doenças da gestação atual. O Manual, nesse sentido, constitui um marco para orientar a decisão de profissionais da saúde. Mas até que ponto ele é aplicável a toda mulher?
De acordo com Rachel Aisengart Menezes, médica e professora do Instituto em Estudos de Saúde Coletiva da UFRJ, embora o risco tenda a ser um vetor da biomedicina no processo de medicalização das pessoas, não pode ser uma noção a orientar nossas vidas. “Temos que pensar na saúde e na doença no sentido de uma gestão individual, em torno dos desejos das pessoas. No caso desta gestante, ela tinha o direito à autonomia. Claramente havia uma indicação médica de cesariana prevista em livros de medicina, dada a apresentação do feto e o tempo de gestação. No entanto, o corpo é da mulher. Ela tem o direito à autonomia de decidir de que forma vai ter o bebê. Assim como existem muitas mulheres com indicação de parto normal que optam pela cesárea. Elas têm o direito de pedir uma cesariana. Não estou defendendo ou justificando o procedimento, mas defendo o direito da mulher de decidir sobre seu corpo”.
O risco atribuído à situação da gestante está sustentado pela prática da medicina baseada em evidência, modelo que prioriza a quantificação para nortear a prática profissional e condiciona protocolos médicos. No entanto, é válido refletir acerca da maneira de construção desse risco. Seria ele universal e aplicável a todos os indivíduos? Até que ponto dados científicos podem ser válidos para definir o que é certo ou errado?
“A medicina baseada em evidência objetiva um controle da saúde e da doença. No entanto, há uma variação muito grande entre as pessoas, de modo que aquilo que é um risco para um não necessariamente é para outro”, observa Rachel Aisengart Menezes.
No contexto da valorização do risco como orientador das condutas, um dos efeitos recai sobre a autonomia do indivíduo. No caso da gestante, havia fundamentação na literatura médica que orientou a tomada de decisão da profissional de saúde e, consequentemente, da justiça. No entanto, a argumentação médica não é absoluta (assim como também não é o argumento sobre a autonomia individual). Não se pretende aqui deslegitimar as tomadas de atitudes e posições, mas sim refletir sobre os elementos que estão em jogo, para além da polarização do debate.
A fronteira entre autonomia individual e autoridade médica, lembra Rachel Aisengart Menezes, pode ser ilustrada por outras situações. Os fieis da denominação cristã Testemunhas de Jeová, por exemplo, não permitem, por motivos religiosos, transfusão de sangue. “É uma questão delicada: o médico se considera na obrigação de salvar vidas, mas os fieis desta religião se recusam a certas práticas médicas. Já há formas para equacionar os interesses. Temos sempre que pensar no sentido da conciliação, o que não aconteceu no caso da gestante. Entendo a preocupação médica com a vida da mulher e do bebê. É uma preocupação legítima. Reconheço o direito da mulher sobre seu corpo. Sabemos que nem o argumento da gestante nem o da médica são absolutos. Entendo a discussão, mas não entendo o papel da polícia. É essa a maneira de dialogar? A forma como a situação foi conduzida é reprovável: não se defende o direito à vida com policial e arma. Que Estado é esse que, para debater, tem que usar a força?”, questiona Rachel Aisengart Menezes.
A discussão também se inscreve na concepção cada vez mais precoce do feto como pessoa. “A vida do bebe não é prioritária em relação à da mulher. Priorizar a vida do bebê à autonomia da mulher é uma troca que os grupos pró-vida e anti-aborto fazem”, avalia a pesquisadora.
A noção de risco no contexto da maternidade foi estudada pela socióloga Alfonsina Faya Robles (Instituto de Medicina Social – UERJ), em seu doutorado. Em seu trabalho com gestantes de classe populares na cidade do Recife, ela notou como dois modelos têm se confrontado na questão da saúde materno-infantil: de um lado, a proposta medicalizante, que preconiza a intervenção médica via cesárea; do outro, a proposta humanizadora, que rejeita a necessidade de participação da figura médica no processo de nascimento. De acordo com a socióloga, a noção de risco atua na interface dessa disputa.
“A ideia de risco tem um caráter tanto medicalizante como moral. Tanto o modelo médico, com seus argumentos estatísticos baseados em observações e pesquisas, como a perspectiva humanizadora defendem formas de organizar a gravidez e o nascimento. Ambos têm traços normalizadores, pois definem estilos de vida”, afirma Alfonsina Faya.
Em seu estudo, a socióloga notou como mulheres pobres rejeitavam o processo humanizador a partir de um entendimento de que a cesárea seria melhor. “Assim, também vemos ações forçadas no pré-parto, pois são mulheres que não querem o parto vaginal, mas por carência financeira acabam dando à luz nessas condições”, completa a socióloga.
No caso da gestante obrigada a fazer a cesárea, Alfonsina Faya destaca como a ideia de risco estimula uma violência também psicológica. A gestante tinha programado o parto há tempos, planejando-o em detalhes, o local, as pessoas que estariam envolvidas, em suma, roteirizando o evento como um acontecimento especial. “O nascimento como projeto de vida, como constituinte de uma subjetividade, foi desrespeitado nesse caso. Houve uma violência de Estado, que interferiu e atropelou uma decisão individual, um projeto pessoal”, observa Alfonsina Faya.
De acordo com a pesquisadora, a situação sinaliza um conflito entre saberes e poderes. No entanto, não avalia como um atestado de supremacia da autoridade médica. “De fato, o corpo foi expropriado em nome de um saber. Mas, acredito que a intervenção radical do Estado indica uma maior presença da proposta humanizadora na questão materno-infantil. Parece que a maior difusão dessa proposta tem incomodado e, portanto, gerado reações. Não vejo o caso como uma continuação ou consolidação de um poder. É uma reação a mudanças que têm ampliado as possibilidades de parto para uma perspectiva mais individualizada. Tanto a abordagem medicalizante quanto a humanizadora têm suas características de regulação. O que deveria ser regra é a possibilidade de a mulher transitar entre esses modelos e escolher a forma que mais lhe agrada”, conclui Alfonsina Faya.
Em outras palavras, o que se defende é o livre arbítrio dos indivíduos. Nos tempos atuais, os avanços técnico-científicos têm permitido à medicina criar e incrementar métodos de diagnóstico sofisticados, que conseguem mapear o organismo humano com muita precisão. Nesse processo, condições do corpo humano vão sendo perscrutadas e os riscos aparecem. Na Europa, por exemplo, quase não há pessoas com Síndrome de Down, pois as tecnologias permitem o diagnóstico muito cedo e há a possibilidade de se optar pelo aborto quando se descobre essa alteração genética. Por sua vez, há pessoas que, mesmo tomando conhecimento durante a gestação, decidem mantê-la e ter um filho com Down. São escolhas.
O risco e o prazer
Quando pensamos em risco, estamos falando em extensão da vida. Nesse sentido, a tecnologia atual permite que se fale e defina muitas coisas em relação a risco. Assim, tudo acaba sendo pensado em termos de risco. A morte súbita do ator José Wilker, aos 67 anos de idade e em pleno gozo das suas faculdades, trouxe à discussão a preocupação com esforços para buscar preservar a vida e estender sua duração. E como hoje em dia a medicina conta com tecnologias de diagnóstico que podem mostrar coisas em detalhes, coisas que antes não eram visíveis, a morte do ator provocou nos meios de comunicação brasileiros maior divulgação dos chamados “comportamentos de risco” à saúde cardiovascular, com uso de palavras como angiotomografia e os stents, exames e procedimentos que previnem o entupimento de artérias e o risco de enfarte.
Mas o que é mais arriscado, para alguns pode ser mais prazeroso. Fumar, por exemplo – o ator era fumante e, segundo fontes, confidenciava que o fumo era algo que lhe fazia bem, apesar de estar ciente dos riscos que o hábito poderia acarretar (hoje descritos em qualquer pacote de cigarros). No artigo ‘O Império dos Sentidos’, o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte (Museu Nacional/UFRJ) destaca que vivemos um dilema: a busca pelo prazer como um imperativo e, simultaneamente,uma preocupação com a extensão da vida.
“Quando falamos na ideia da intensidade e extensão da vida, a intensidade contém um risco. Essa é uma busca do ser humano. Em certos momentos há uma ênfase na intensidade, em outros, na extensão. Você pode pensar isso historicamente. O período pré-epidemia de Aids, por exemplo, foi de intensidade do viver. Quando surge a Aids, a preocupação passa a ser a extensão do viver”, lembra Rachel Aisengart Menezes.
Mas mesmo depois da era pós-HIV, na contramão das convenções trazidas pela epidemia, diversas práticas desafiaram (e continuam a desafiar) o discurso do risco nas relações sexuais desprotegidas. Um exemplo é o barebacking (abandono intencional e deliberado do preservativo em relações anais homoeróticas), discutida pelo filósofo argentino Esteban Garcia no artigo "Políticas e prazeres dos fluidos masculinos: barebacking, esportes de risco e terrorismo biológico", presente na coletânea Prazeres Dissidentes (CLAM/Ed. Garamond). No artigo, a linguagem da saúde e da vida, da doença e da prevenção é usada para delinear contornos que separam os barebackers dos praticantes do homoerotismo "seguro". Para o autor, as convenções morais e políticas acerca do barebacking provêm de uma definição estreita de saúde, em uma conjuntura histórica em que a identidade gay tem sido enquadrada a uma vigilância epidemiológica.
Nesse dilema entre o imperativo do prazer e a preocupação com a extensão da vida, a possibilidade de uma vida saudável fica condicionada a uma série de prescrições. No artigo “Discursos sobre comportamento de risco à saúde e a moralização da vida cotidiana”, publicado na revista “Ciência & Saúde Coletiva”, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), os autores Marcos Bagrichevsky, Luis David Castiel, Paulo Roberto Vasconcellos-Silva e Adriana Estevão apontam a centralidade da racionalidade tecnocientífica nos dias atuais, que cria uma “economia de verdades” e, assim, estipula uma série de recomendações e normas em benefício de uma vida “mais saudável”. Nesse sentido, apontam os efeitos angustiantes para as pessoas e o traço regulador que tal lógica apresenta.
Todas estas questões discutidas estão sendo debatidas pela sua veiculação na mídia e dizem respeito a casos circunscritos a determinados grupos de camadas médias e altas, partidárias de um ideário que entende os indivíduos como capazes de se autodeterminar e gerir a própria vida. Assim, a dimensão do risco tem uma dupla face, individual e coletiva. Além da esfera individual e da escolha de cada um, as pessoas estão socialmente inscritas, e, portanto, submetidas a diferentes condições de vida, que não somente afetarão o repertório de “riscos a escolher”, mas também aqueles que deverão enfrentar a partir do lugar que ocupam no mundo, marcadas pela idade, gênero, cor/raça, local de moradia, escolaridade, entre outros. Não ser submetido a determinado procedimento a partir de uma ordem estatal, e poder pleitear o direito à autonomia não é para todos.