Uma das questões mais levantadas no debate sobre aborto é que, apesar de sua criminalização pelo Estado brasileiro (com exceção dos permissivos legais), o procedimento é realizado por mulheres de forma clandestina e insegura. O cenário revela uma demanda que ignora as investidas de normatização e cria itinerários variados de interrupção da gravidez. Ou seja, a ilegalidade propicia a existência de um mercado paralelo representado por clínicas clandestinas e pessoas não credenciadas que realizam a prática sem a devida segurança. Esse tem sido também o panorama quando se trata das modificações corporais da população transexual e travesti. Até 2013, modificar o corpo legalmente para fins de deslocamento de gênero constituía um direito reservado aos indivíduos transexuais, incluídos no Processo Transexualizador (portaria 457/2008 do Ministério da Saúde) do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), na medida em que estes apresentem, na linguagem médica, uma condição patológica – o transexualismo. As travestis, no entanto, estavam excluídas dos serviços oficiais de modificações corporais, tendo em vista que a identidade não é considerada uma patologia, o que possibilitou a formação de um mercado de transformações corporais que inclui clínicas e indivíduos que realizam tais procedimentos, como as chamadas “bombadeiras”.
Em sua tese “O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans”, o assistente social e doutor em Saúde Coletiva Aílton da Silva Santos entrevistou travestis e mulheres transexuais, frequentou sessões clandestinas e oficiais de modificações corporais e manteve diálogo com profissionais de saúde. Os objetivos da pesquisa foram compreender os motivos e os sentidos das modificações corporais, os saberes e pessoas envolvidas e os itinerários e técnicas utilizados para as alterações no corpo.
A situação da população de indivíduos que transitam entre os gêneros ganhou seu primeiro registro oficial em 1997, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) definiu que as modificações corporais deixavam de ser lesão corporal desde que realizadas em hospitais universitários por profissionais especializados nos casos de “transexualismo”, como psiquiatras e urologistas.
Em regra, transexual é o indivíduo que não se reconhece no corpo biológico de nascimento e, por isso, experimenta sofrimento psíquico. Pela lógica médica, as modificações corporais e a redesignação genital constituem ferramentas terapêuticas para “curar” a condição de transexual, encaminhando o deslocamento tanto anatômico como de gênero. A genitália, nesse sentido, é um marcador de identidade central. Já as travestis desejam uma inserção social de gênero (no caso, feminina), realizam modificações corporais (colocam seios, glúteos, delineiam partes do corpo, fazem uso de hormônios etc), mas não veem a genitália como um definidor identitário. Por isso, elas continuam a ter o pênis, valorizado principalmente por aquelas que trabalham no mercado do sexo, conforme aponta o antropólogo norte-americano Don Kulick no livro “Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil”, fruto de seu trabalho etnográfico com travestis na cidade de Salvador.
Tais definições identitárias repercutem socialmente, sobretudo pelos itinerários que se criam no contexto das modificações corporais. No Rio de Janeiro, por exemplo, é famosa a “bombadeira” Severina, cujo trabalho nos anos 1980 é amplamente conhecido entre a população trans. “Bombadeira” é a profissional que manipula e molda o corpo de suas/seus “pacientes” através de implantes clandestinos e do uso de silicone industrial. É um itinerário geralmente acessado por travestis, embora transexuais também procurem.
Esse mercado possui riscos, conforme lembra Aílton Santos. “Entrevistei seis bombadeiras e elas são procuradas tanto por travestis quanto por transexuais, independentemente de haver um serviço de saúde oficial para esse segmento. O aprendizado das bombadeiras é feito em pares. Elas aprendem umas com as outras, com o método de tentativa e erro. Elas não têm formação e usam o silicone industrial por ser mais barato e acessível”, afirma Aílton Santos. “O atendimento é feito em suas casas, e muitas têm consciência das questões de biossegurança. Apesar disso, o silicone industrial apresenta riscos de deformidade e mesmo morte”, completa.
O trabalho das “bombadeiras” constitui crime, de acordo com o Código Penal que considera exercício ilegal da medicina e curandeirismo. Com a resolução do CFM de 1997 – ampliada em 2002 – e a portaria 457/2008 que institui o processo transexualizador na rede pública de saúde, a figura da “bombadeira” vai sendo consolidada na condição de ilegalidade diante da institucionalidade que a atuação médica ganha para lidar com as modificações corporais.
No final de 2013, o Ministério da Saúde publicou a portaria 2803, que inclui as travestis no escopo do processo legal de mudanças corporais feito pelo SUS, possibilitando que elas tenham acesso em unidades especializadas da rede pública de saúde ao que antes era reservado apenas às/aos transexuais. A justificativa do MS é o estabelecimento de uma padronização dos critérios de indicação para a realização dos procedimentos previstos no Processo Transexualizador e a necessidade de identificar, estruturar, ampliar e aprimorar a rede de atenção à saúde e a linha de cuidado de transexuais e travestis. A portaria é fruto da mobilização do movimento social de pessoas trans, de pesquisadores e gestores comprometidos com a ampliação e melhoria da atenção à saúde dessas pessoas. Tal demanda foi construída a partir da situação das pessoas trans (transexuais e travestis) que fazem uso indevido de hormônios e silicone industrial e que, por isso, ficam sujeitas a sequelas e ao risco de morte. A medida, no entanto, está longe de significar a inclusão efetiva das travestis no sistema de saúde, deixando em aberto o itinerário de modificações corporais que as “bombadeiras” representam.
O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/UERJ), uma das quatro Unidades de Atenção Especializada no processo transexualizador e cujo Serviço de Urologia é referência em cirurgia de transgenitalização, não tem conseguido absorver a demanda de travestis. Atualmente, há 52 pacientes transexuais em espera para realizar a cirurgia de mudança de sexo, e mais de 100 na fila para serem incluídos no processo transexualizador. Nesse contexto, as travestis ainda competem com outros serviços oferecidos no setor da Urologia, como casos de restauração de órgãos genitais devido a amputações provenientes de cânceres e outras má-formações genitais. Além disso, a demanda das travestis inclui serviços estéticos que não são responsabilidade da Urologia.
A fragilidade e o baixo número de Unidades Especializadas não são os únicos problemas, de acordo com Aílton Santos. “Não há um número suficiente de profissionais especializados para lidar com travestis, para compreender as especificidades. Além disso, muitas travestis preferem o serviço das ‘bombadeiras’ por causa do silicone industrial, que para muitas tem resultado estético melhor que o silicone usado nos serviços de saúde. Na minha pesquisa, entrevistei seis ‘bombadeiras’ e apenas uma foi crítica à portaria 2803. Para as outras, o acesso ao SUS para transformações corporais não acabaria com a demanda que elas atendem. O pacote de próteses que o SUS oferece não contempla a construção dos femininos que cada travesti almeja”, observa Aílton Santos. “As travestis demandam serviços de fonoaudiologia, dermatologia, entre outros. Há uma série de mudanças feminilizantes. É preciso que os hospitais criem programas para lidar com a nova realidade. Isso significa uma equipe multidisciplinar que amplie as transformações para além do marcador genital”, completa.
Outro elemento neste mercado de transformações corporais são as clínicas particulares de cirurgia plástica e estética, muito freqüentadas por indivíduos transexuais e travestis com boas condições financeiras. Tais clínicas realizam modificações corporais das mais diversas, que vão desde a construção de corpos de passistas de samba até aquelas destinadas a provocar um deslocamento na leitura de gênero. No entanto, não há uma definição legal, tampouco uma resolução da categoria médica, que autorize ou negue a essas clínicas a realização dessas mudanças para fins de releitura de gênero. Por isso, Aílton Santos as classifica como um mercado “semi-clandestino”.
“O Conselho Federal de Medicina, a Sociedade Brasileira de Medicina e a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica não criaram normas para regular esse mercado. Quando se pensou na transexualidade, pensou-se na patologização e na normatização de práticas médicas para lidar com isso, mas não se pensou em nada para o sujeito travesti. Por isso, muitas delas acabam recorrendo a essas clínicas para conseguir as modificações, encontrando menos riscos do que as que frequentam as ‘bombadeiras’”, observa o pesquisador.
Mesmo após a publicação da portaria 2803, Aílton Santos acredita que os mercados continuarão a existir como tal. De acordo com o assistente social, a busca pelo feminino é muito subjetiva e nem sempre os serviços oficiais contemplam as demandas individuais. Questões como classe social e raça também condicionam a formação desses itinerários. Mas, acima de tudo, destaca ele, a marginalização das identidades não enquadradas nos padrões de gênero dominantes persiste como um problema estrutural. “Penso que ainda conviveremos com mortes e sequelas decorrentes de problemas estruturais. Os corpos das travestis e das transexuais não importam socialmente. Aquelas que têm condições conseguem escapar das precariedades. Mas as que não têm, são vítimas de uma sociedade que não aceita o borramento das fronteiras de gênero. A resposta do Estado é muito mais narrativa do que prática. É preciso controle social sobre esses serviços e, mais do que isso, uma abordagem integral, que inclua educação e saúde juntas em um processo de construção de igualdade e respeito”, conclui Aílton Santos.