CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Entre a cruz e o Estado

Em 1997, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ganhou novo texto, definindo “o ensino religioso, de maneira facultativa, disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental e parte integrante da formação básica do cidadão”, e suprimindo a proibição do uso de recursos públicos para sua implementação nas instituições de ensino, prevista no texto anterior. A mudança foi um efeito da pressão exercida pela Conferência Nacional dos Bispos (CNBB), na esteira da visita do Papa João Paulo II ao Brasil naquele ano. Do ponto de vista histórico, o que aconteceu não foi uma surpresa, tampouco uma novidade. Na primeira LDB, que tramitou no Congresso ao longo da década de 1950 e foi promulgada em 1961, a Igreja Católica atuara para que o texto da lei definisse o ensino religioso como um atributo – ainda que naquele momento sem ônus ao poder público – do Estado, conforme relata o professor Luiz Antonio Cunha (UFRJ).

Passados mais de 60 anos, a história da incursão da religião no terreno da educação ganha novo capítulo, desta vez através do deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), autor do projeto de lei 8099/2014, que objetiva incluir o conteúdo do criacionismo – uma forma de explicar a origem do universo e da vida através da ação de um criador, que para os cristãos é personificado pela figura de Deus – na grade curricular das redes públicas e privadas de ensino.

Tal investida reaquece uma disputa na qual perspectivas não pluralistas e dogmáticas desafiam princípios como laicidade e liberdade religiosa e de crença (leia aqui artigo do juiz Roger Raupp sobre laicidade), bem como o direito à educação e as fronteiras entre ciência e religião. O texto do PL 8099 aponta que atualmente o “cientificismo”, apesar de suas contribuições, tem rejeitado qualquer conceito de caráter divino como forma de explicar o mundo. E reivindica para o criacionismo o mesmo poder explicativo que a teoria da evolução – baseada originalmente na tese do naturalista britânico Charles Darwin, para quem a vida teria originado-se a partir de uma célula primitiva até chegar aos seres vivos mais desenvolvidos, como o ser humano – tem no currículo escolar. “Ocorre que por força da fé, dos costumes, das tradições e dos ensinos cristãos, a maioria da população brasileira crê no ensino criacionista, como tendo sua origem em Deus, criador supremo de todo universo e de todas as coisas que o compõe, como animais, plantas, o próprio homem”, argumenta o texto do PL 8099.

Tão logo o PL foi apresentado na Câmara dos Deputados, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cuja missão é a defesa e a promoção do avanço da educação, ciência e tecnologia, bem como a remoção de quaisquer obstáculos a tal propósito, manifestou-se contrariamente. A entidade apontou o criacionismo como um desses empecilhos, demarcando uma distinção clara entre ciência e crença. Para a SBPC, o estudo da evolução é um exemplo de conhecimento baseado no método científico, respaldado pelos procedimentos de observação, experimentação e pela evidência empírica através dos quais hipóteses e teorias são elaboradas, validadas e/ou refutadas. Uma lógica contrária ao que, ainda segundo a SBPC, sustenta o criacionismo. “O criacionismo não é uma teoria científica, não satisfaz a condição essencial de poder ser testada, refutada, confrontada com a realidade por meio de observações e experiências, de tal modo que se possa verificar se suas afirmações são conformes aos fatos. […] O criacionismo é, portanto, uma crença, que envolve valores éticos e morais. É uma visão de mundo”, argumentou a SBPC em nota.

Esse tipo de debate envereda-se com frequência em direção à dicotomia ciência versus religião, ou “razão” versus “fé”, considerados como domínios excludentes. Com as discussões sendo travadas nesses termos, há nuances que podem se perder, sobretudo quando ciência e religião são encaradas, cada uma a seu modo, como saberes absolutos. De acordo com o antropólogo Emerson Giumbelli (UFRGS), a própria ciência é marcada por divergências. “Acho a justificativa do PL 8099 simplificadora, em pelo menos dois aspectos. Primeiro, porque não dá conta da complexidade dos debates e dissensos que se abriram com base nas hipóteses fundamentadas no trabalho de Darwin. Essa complexidade é reduzida a ‘uma’ teoria ou doutrina evolucionista. Tal campo de estudos, ademais, não entra necessariamente em conflito com crenças religiosas, como mostram os abundantes exemplos de cientistas que cultivam alguma fé. Segundo, supõe que, por ser cristã, ‘a maioria da população brasileira crê no ensino criacionista’. Da crença em algum papel divino na natureza não se pode deduzir que esta implique uma identificação com o criacionismo no que ele tem de divergente em relação a teorias científicas. Provavelmente, a maioria dessa maioria de cristãos tem interesse em aprender tais teorias”, observa Emerson Giumbelli.

O PL 8099/2014 dá sequencia a outro projeto do mesmo parlamentar, o PL 309/2011, cujo objetivo é tornar o ensino religioso uma disciplina obrigatória nos currículos escolares. Ambos projetos exploram o texto Constitucional em suas potenciais brechas. A Constituição de 1988 define em seu artigo 19 que é vedado à União e aos Estados “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. Não há a declaração expressa de que o Estado é laico, embora o princípio da laicidade esteja presente ao longo do texto. No entanto, o artigo 5º é usualmente utilizado por setores religiosos como justificativa para que o ensino religioso faça parte do currículo escolar. “VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”, determina a Constituição e argumenta o PL 8099/2014, do deputado Pastor Marco Feliciano.

A invocação da Constituição, através da liberdade de crença e consciência, como justificativa para a inclusão do conhecimento religioso no campo da educação é questionada por pesquisadores de distintas áreas. De acordo com o pastor, teólogo e professor do Centro Universitário La Salle Evaldo Luis Pauly, existe um dilema epistemológico derivado da Constituição que, através do artigo 210, situa, ao mesmo tempo, o ensino religioso no espaço público (escola) e privado (consciência). No entanto, de acordo com Evaldo Pauly, deve haver a separação entre Estado, que controla o mundo externo pelas leis, e a Igreja, que rege a interioridade pessoal. “Não parece razoável admitir a transcendência como objeto cognoscível. As experiências humanas atribuídas ao transcendente podem ser objeto do diálogo cognoscente. O Estado democrático e de direito é laico. Há separação entre os legítimos interesses privados das religiões e o interesse público da escola”, afirma Evaldo Pauly.

É visível que as religiões de denominações evangélicas têm ampliado a ocupação de espaços políticos nos últimos anos. Nas décadas anteriores, as discussões sobre ensino religioso eram capitaneadas pela Igreja Católica, sendo a Concordata assinada entre o governo brasileiro e o Vaticano em 2008 um dos eventos mais notórios. A implementação do ensino religioso nas escolas públicas constitui uma das previsões desse acordo, visto como uma forma de o então governo mostrar-se mais alinhado à Igreja Católica diante do que então já se via como um crescimento significativo de denominações evangélicas no contexto social e político nacional. No cenário atual, atores religiosos emergentes também reivindicam protagonismo e prestígio junto ao Estado. Por isso, conforme lembra o jurista Salomão Ximenes, a iniciativa do deputado Marco Feliciano deve ser compreendida como uma estratégia de ação em relação a outras forças religiosas. “Esse tipo de proposição faz parte de uma agenda de ocupação do espaço público por grupos religiosos. Isso se dá também em outras esferas, como saúde. Nesse sentido, por uma perspectiva sociológica das religiões, trata-se de uma luta por hegemonia, sobretudo em relação à hegemonia de grupos católicos. Por isso, não podemos perder de vista que há uma busca por protagonismo, sustentada por cálculos político-eleitorais. Não se trata, portanto, apenas de divergências filosóficas ou epistemológicas sobre a origem do mundo e dos seres vivos”, observa Salomão Ximenes, que é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do ABC.

O PL 8099/2014 chama a atenção porque, se situado no contexto internacional, acaba inevitavelmente sendo vinculado às disputas que acontecem com recorrência nos Estados Unidos há décadas. Por lá, setores protestantes não apenas defendem a ideia de criação divina, como também militam de maneira contundente para que o criacionismo seja disciplina escolar, gerando com frequencia discussões abrasivas e polarizadas sobre visões de mundo. Inclusive, os debates se inserem no que alguns autores denominam como “guerra cultural”, em que perspectivas morais colidem no plano social e político e incidem sobre diversas questões, como porte de arma e direitos sexuais e reprodutivos. Estaria o Brasil caminhando para um cenário desse tipo? De acordo com o antropólogo Emerson Giumbelli, “no Brasil não temos propriamente um debate sobre distintas visões acerca do surgimento do universo ou da espécie humana. Parece-me que nos Estados Unidos os desacordos adotam uma configuração que se aproxima mais de um debate. Penso, por exemplo, nos embates entre evolucionistas e os defensores de teorias que são conhecidas como ‘design inteligente’. No Brasil, as posições criacionistas aparecem sobretudo como a tradução de visões religiosas que buscam ganhar mais espaço na sociedade”, observa.

Em se tratando da organização da educação no Brasil, uma lei como a proposta pelo PL 8099 poderia trazer problemas, tendo em vista o cotidiano e as fragilidades do sistema educacional do país. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) determina que cabe aos Estados decidirem sobre a implementação do ensino religioso nas escolas. Conforme relata a professora da UFRJ Ana Maria Cavaliere, que realizou uma pesquisa sobre o ensino em escolas do Rio de Janeiro, existe um mal-estar relativo ao ensino religioso no estado. Instituído em 2000, o ensino religioso é confessional, o que colide com algumas normas constitucionais. Além disso, a pesquisadora e doutora em Educação relata que o ensino não tem sido oferecido sem desconfiança entre a comunidade escolar. Ainda de acordo com a pesquisadora, tem havido o enfraquecimento do espírito laico, bem como o desrespeito ao princípio da pluralidade.

Em 2010, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) por diversas ONGs, com apoio da Procuradoria Geral da República, questionando a constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas, como é o caso do Rio de Janeiro. A iniciativa ainda não foi julgada pela Corte, mas situa-se nesse cenário de disputa política em que se encontra o campo da educação. Até que saia uma decisão, o debate parece ser promissor no sentido de estimular uma compreensão mais ampla tanto sobre o que é educação quanto sobre o papel que ciência e religião podem desempenhar nesse campo.

“Acredito que as salas de aula têm pouco a ganhar quando colocamos questões que envolvem a genealogia do universo, do planeta e das espécies animais para serem discutidas a partir de oposições entre teorias que são apresentadas como verdadeiras ‘doutrinas’. A escola define-se com um espaço de conhecimento e aprendizado para o qual a ciência aparece como fundamento, cabendo à religião a legitimidade para ocupar outros espaços. Isso não exclui o espaço das próprias escolas, desde que a religião (e não apenas aquela da maioria da população) apareça como objeto de conhecimento e discussão. Quanto à ciência, entendo que sua presença basilar no espaço escolar não vai no sentido de estabelecer teorias verdadeiras, e sim muito mais como procedimento que permite a discussão de uma pluralidade de teorias, a exploração das evidências que se atualizam constantemente, as consequências sociais das atividades científicas e tecnológicas, etc, sem precisarmos cair em simplificações que reduzem esses aspectos complexos a disputas entre ‘fé’ e ‘razão’, pondera Emerson Giumbelli.

Como já comentado, uma das críticas do projeto remete ao que denominam como "cientificismo". Todavia, criticas às ciências (ou pelo menos, de uma ideia única, autoritária e universal da Ciência com c maiúsculo) também vem sendo desenvolvidas já há algumas décadas em meio também a contextos não diretamente vinculados à religião, como a academia, movimentos sociais, entre outros. Existem, inclusive, intelectuais que defendem a possibilidade controversa de uma coexistência do evolucionismo e do criacionismo nos currículos escolares. Independente do posicionamento dos diferentes segmentos em relação à presença do criacionismo na escola, o que valeria nos questionarmos é de como essas disputas vão sempre além de uma oposição unilateral entre “ciência” e “religião”, ou seja, constituem um movimento complexo, em que uma série de valores e relações de poder são tencionadas, provocando e deslocando a todo momento nossas concepções de educação, ciência e também religião.