O aborto foi legalizado na França em 1975. Mas o mesmo país que autorizou a interrupção da gravidez em nome da dignidade da mulher, reconhecendo seu direito à liberdade sobre seu corpo, também lhe nega o direito de usar esse corpo para satisfazer o desejo reprodutivo de outra mulher que não pode ter filhos. A gravidez por substituição – mais conhecida como “barriga de aluguel” – é proibida no país, e, neste caso, tanto as correntes políticas de direita como as de esquerda se opõem ao procedimento.
As técnicas de reprodução assistida são só admitidas na França para casais heterossexuais em casos de infertilidade e/ou para fins terapêuticos. A reprodução póstuma, também possibilitada pelas novas tecnologias, é também proibida.
De acordo com o pesquisador argentino radicado na França Daniel Borrillo, professor na Universidade de Paris X e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla nativa), o conservadorismo francês se deve, em boa medida, à desconfiança no progresso científico em matéria de bioética.
“A desconfiança na ciência é também uma desconfiança no indivíduo. Ela se apresenta na França como uma proteção contra um poder científico que levaria o indivíduo a se corromper. A intenção de se recorrer a uma manipulação genética sob o argumento de se evitar uma doença, por exemplo, é lida como eugenia. Os argumentos conservadores também sustentam a interdição às técnicas de reprodução assistida para casais homossexuais, sob a alegação de que estes vão produzir crianças sem pais ou mães”, relatou Borrillo na palestra “Novos desafios jurídicos do Biodireito no Brasil e na França”, proferida na Faculdade de Direito da UERJ na quarta-feira (17/6).
“Não se percebe que a forma é laica, mas o conteúdo é religioso. Em matéria de Bioética, a Igreja católica ocupa um lugar privilegiado na França, como se a questão da bioética fosse per se uma questão religiosa”, afirmou.
Em 2013, a Assembleia Nacional da França aprovou a lei que legaliza o casamento homossexual sob fortes movimentos contrários à proposta, que tomaram conta das ruas em várias cidades. Segundo o pesquisador, é a concepção restrita de família que motivou essa mobilização que imprime no país uma visão conservadora em matéria de biodireito. “A única questão em que a França é mais liberal que o Brasil é em relação ao aborto”, salientou.
Na análise de Borrillo, a explicação para o incentivo à contracepção e à legalidade do aborto na França ao mesmo tempo em que o país impõe fortes restrições às técnicas de reprodução assistida, deve-se ao fato de que por lá não se construiu a ideia de reprodução como uma liberdade individual ou como um direito subjetivo do indivíduo, como é o caso da não-reprodução. “A reprodução é vista apenas como um paliativo clínico à não fertilidade, e é apresentada unicamente por casais heterossexuais para fins terapêuticos. Fazer o aborto, por sua vez, é lido como um direito individual de não ter filho. Em relação à reprodução assistida, ao contrário, o que está em jogo é o direito do filho a ter um pai e uma mãe. O que vale é a uniformização de um tipo de família natural, a legitimação de um modelo de família nuclear. Uma mulher sozinha tem o direito de interromper uma gestação, inclusive sem a autorização do parceiro, mas não tem o direito de procriar de forma autônoma”, analisou.
Diferentemente do Brasil, onde a corporação médica, através das resoluções do Conselho Federal de Medicina, detém a normatização das técnicas de reprodução assistida, na França todo o sistema de Biodireito em relação à filiação vai ser controlado diretamente pelo Estado. A filiação é uma questão de ordem pública, e o Estado controla as clínicas privadas visando evitar o mercantilismo, impedindo que mulheres aluguem o ventre. De acordo com Borrillo, o preço a se pagar é a instalação de um intervencionismo jurídico na questão da filiação.
Ao lado da filiação biológica está a filiação adotiva. No país, pode-se adotar de maneira individual ou em casais (somente se forem casados no papel), com ou sem vínculo estabelecido com a família biológica da criança adotada. A filiação também pode ser uma presunção, isto é, o filho pode ter como pai o cônjuge de sua mãe.
“O problema é que, quando surgiram as novas tecnologias reprodutivas, os debates políticos passaram a confundir filiação com procriação, e uma coisa é diferente da outra. A filiação é um instrumento jurídico”, afirmou.
Foi nesse contexto que o Estado francês passou a dizer que a criança tem que ter um pai e uma mãe biológicos. No caso da doação de sêmen, o doador não é visto como um indivíduo, mas como um casal heterossexual em união estável de fato. A esterilidade é um problema do casal. A parceira do doador e o parceiro da receptora do material assinam uma autorização.
“Representa-se, assim, um coito heterossexual. E é essa imitação da reprodução natural que vai ser a responsável pela interdição da inseminação artificial em casos de divórcio ou post-mortem, mesmo se esse for um desejo do casal antes da morte de um dos cônjuges. Na visão do legislador francês, não é o projeto marital que conta, mas a imitação do processo natural é o fator mais importante. Tudo é justificado em nome da proteção à dignidade da mulher, paradoxalmente o mesmo argumento que levou à descriminalização do aborto no país”, concluiu.
Para Borrillo, só a volta de um paradigma contratualista da família no plural, nas suas diversas definições contemporâneas, permitirá recuperar um dispositivo democrático e pluralista na França em matéria de filiação assistida clinicamente. Este é, para ele, o maior desafio hoje no Direito francês.