Por conta da epidemia de Zika registrada no Brasil, às vésperas das Olimpíadas do Rio a Organização Mundial de Saúde reiterou o conjunto de recomendações a atletas e turistas que vêm ao país para os jogos, que inclui o uso de repelentes e roupas que cubram o máximo possível o corpo e a prática do sexo seguro com o uso do preservativo, já que o aumento no número de países que registraram casos de contágio sexual pelo vírus potencializou a hipótese da sua transmissão sexual. A OMS recomenda ainda que se evite visitas às áreas mais pobres da cidade, devido à falta de saneamento básico, o que poderia aumentar o risco de ser picado pelo mosquito vetor da doença.
No entanto, especialistas questionam o fato de ainda não se ver em ação mecanismos de proteção social às famílias brasileiras afetadas pela epidemia desde o ano passado, a despeito da preocupação das autoridades com o risco de infecção pelo vírus da Zika no marco da Olimpíada, a ser realizada em um grande centro urbano. Os jogos olímpicos acontecem no mesmo mês em que os bebês mais velhos, nascidos na primeira geração de gestantes infectadas, completam um ano de vida apresentando uma série de malformações e neuropatias (que afetam a visão, a audição e seus movimentos dos membros inferiores e superiores) que vão além da microcefalia. Embora esta última condição neurológica tenha sido usada desde o início como metonímia para descrever os efeitos do vírus no feto — por ser o diagnóstico mais facilmente visível por imagem ou para a medição do cérebro do recém-nascido –, a epidemia da “síndrome congênita do zika” engloba tanto os casos de microcefalia como outras alterações do Sistema Nervoso Central associadas à infecção, conforme explica a antropóloga Débora Diniz em artigo.
Comprovada a associação entre a infecção e essas malformações e neuropatias, a relação entre gravidez e zika vírus trouxe à tona o debate em torno da autonomia reprodutiva das mulheres e de seu direito em optar por levar adiante ou interromper a gestação. O debate teve como porta-vozes especialistas que atuam na defesa dos direitos reprodutivos das mulheres, que ocuparam os meios midiáticos e fóruns mais restritos de discussão, como as universidades e ONGs. Mas que significados teria a interrupção da gestação para a primeira geração de mulheres afetadas pela infecção, como aquelas do interior do Nordeste brasileiro retratadas no documentário Zika, produzido pela organização Anis?
Em tempos em que a mídia volta seu olhar para outros temas, como a crise política do país e as Olimpíadas, e o Estado não lhes oferece respostas, essas mães se tornaram ainda mais invisíveis. “A maioria daquelas mulheres não são as que nós estamos acostumadas a falar sobre aborto. São mulheres que querem ser mães, que convivem com a hiper-maternagem, de pouco acesso à informação sobre planejamento familiar e sem poder de negociação com seus parceiros. Recebem ajuda do governo através de programas de transferência de renda, inscritas num marco de pobreza e de miserabilidade. É um exercício de igualdade dizer que a epidemia está afetando todas as mulheres, mas não está”, afirmou a pesquisadora da ANIS (Instituto de Bioética) Sinara Gumieri no debate “Aborto e Síndrome Congênita do Zika”, realizado no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) do Rio de Janeiro no dia 25 de julho, e que incluiu a exibição do documentário. “Não se vê na fala das mulheres que ouvimos na cidade de Campina Grande a expressão feminista ‘Meu corpo me pertence’”.
Como a restritiva legislação brasileira relativa ao abortamento não contempla casos de malformações fetais decorrentes da infecção do Zika, o debate acerca do direito ao aborto para essas mulheres esteve bastante presente em artigos dos principais veículos de notícias no ápice do surto no Brasil (ocorrido especialmente nas áreas mais carentes da Região Nordeste do país). Mas, mesmo quando há a articulação dos atores envolvidos (ciência, mídia, agências internacionais e governamentais), em que medida esse debate chega ao alcance do público que ele diz respeito e envolve aqueles a quem pretende beneficiar?
Em Sex and the state: abortion, divorce, and the family under Latin-American dictatorships and democracies (Cambridge University Press, 2003), Mala Htun chama a atenção para como as reformas das leis do aborto ocorridas na década de 1940, vigentes sem ampliações no Código Penal brasileiro até os dias atuais, foram resultado de deliberações entre elites, onde o público “quase não esteve envolvido”, nem mesmo o movimento feminista. Nos anos de 1990 o Ministério da Saúde editou uma Norma Técnica estabelecendo as diretrizes para o atendimento a vítimas de violência sexual, o que levou à criação de serviços de aborto legal e à não obrigatoriedade das vítimas em apresentar o boletim de ocorrência para acessá-los. Porém, lembra a pesquisadora Thaís Medina de Camargo (USP) em artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, isto não envolveu participação pública massiva. Tampouco instâncias como o Ministério da Saúde podem ser consideradas fóruns especialmente democráticos para a tomada de decisão.
Diferente de outros países com altas taxas de transmissão do vírus, como Colômbia e El Salvador, o governo brasileiro não adotou a postura oficial de recomendar às mulheres que não engravidassem. Mas tampouco colocou em prática medidas de proteção social necessárias e políticas de planejamento familiar adequadas. "Persiste a negligência estatal em políticas de saneamento básico e em promover ações eficazes de controle do vetor, que vem sendo uma ameaça há décadas", assinalou Sinara Gumieri no debate “Aborto e Síndrome Congênita do Zika”, realizado no IAB.
Nos três primeiros meses da epidemia — quando só no estado de Pernambuco foram registrados quase 300 bebês com a malformação — o Ministério da Saúde ressaltou a necessidade de os indivíduos discutirem a conveniência de uma gestação. Mas ainda que a não recomendação de adiamento da gravidez pelo governo se coadune com a lei de planejamento familiar de 1996, que estabelece que a gravidez se constitui em escolha livre do casal, as medidas oficiais ignoram as profundas desigualdades sociais. Em março de 2016, o Ministério da Saúde publicou diretrizes relacionadas à Zika através do Protocolo de Atenção à Saúde e Resposta à Ocorrência de Microcefalia, que, apesar de destacar a importância do acesso à informação e aos métodos contraceptivos, ignora os desafios que boa parte da população enfrenta para obter e usar métodos contraceptivos. Embora de acesso gratuito no Brasil, aproximadamente metade de todas as gravidezes no Brasil não é planejada.
"O Protocolo reconhece que o uso de métodos contraceptivos desempenhará um papel importante no controle do impacto da epidemia de Zika. No entanto, ele não reconhece os obstáculos que muitas mulheres enfrentam, principalmente aquelas com pior situação socioeconômica, jovens, negras e pardas, no acesso e uso desses métodos, tais como: desigualdades sociais persistentes, desde unidades de saúde com baixo recursos materiais e humanos e a falta de educação sexual adequada em escolas públicas até dinâmicas de poder desiguais em relações íntimas; custo e dificuldade de locomoção até as unidades de saúde; acesso limitado a informações e serviços sobre a ampla variedade de métodos, incluindo a contracepção de emergência; e a falta de treinamento adequado para os profissionais de saúde", destacam, em artigo, pesquisadores da Global Health Justice Partnership.
Desde a década de 1980, a OMS tem promovido o autocuidado como estratégia sanitária central nos sistemas de saúde. "O movimento feminista brasileiro e internacional tem se empenhado em evidenciar os laços intrínsecos entre autonomia reprodutiva e Estado. Para este movimento, engravidar ou evitar uma gestação, ou mesmo interrompê-la, deveria integrar a agenda de direitos individuais e da saúde pública de todas as nações", assinala a socióloga e cientista política feminista Jacqueline Pitanguy em artigo nos CSP.
Porém, mesmo reconhecendo que as práticas de autocuidado sejam parte de uma estratégia central em saúde, no caso da Zika tem sido evidente um deslocamento da responsabilidade do Estado para as mulheres no que diz respeito ao manejo da epidemia, tendo em vista a demora do governo em controlar o vetor e de implementar as ações de melhoria em suas políticas de saúde reprodutiva. Neste debate, o Estado só não lhes transfere a responsabilidade ou lhes outorga a autonomia quando se trata de decidir por interromper a gestação.
Sem poder recorrer ao aborto, muitas das mulheres infectadas da primeira geração foram abandonadas por seus companheiros após o diagnóstico — quando a relação causal entre a infecção e as malformações ainda era hipótese — e ainda estão aprendendo com seus bebês. ”Há uma relacionalidade entre mulheres e filhos, o que facilita a sujeição delas às demandas crescentes de cuidado”, chama a atenção a antropóloga Débora Diniz (ANIS) em artigo publicado nos CSP.
Ainda não se sabe o nível de comprometimento que esses bebês vão ter ou a real extensão dessas anomalias, nem se as mulheres da segunda geração infectadas pelo vírus Zika vão decidir pelo aborto clandestino e inseguro, o que certamente poderá causar custos ao sistema público de saúde. A cada ano, complicações em decorrência de abortos inseguros respondem por 250 mil atendimentos de emergência, além das inúmeras mortes (o aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país). Apesar das restrições legais, são realizados aproximadamente 860 mil abortos por ano no país.
Em um vácuo de informação, as pessoas já adotaram a linguagem biomédica da microcefalia, mas não a da síndrome congênita, nem a consciência plena acerca de direitos fundamentais como o direito do acesso à informação e ao planejamento familiar. Cabe ao Estado melhorar o nível da informação e do diálogo, e considerar uma política mais ampla de saúde sexual e reprodutiva, que englobe educação, acesso a serviços e a todos os métodos contraceptivos, incluindo os de longa duração (hoje não previstos na política de saúde brasileira) e a anticoncepção de emergência, além de ampliar as possibilidades de aborto legal. Esse parece o maior desafio diante de um contexto político conservador, aliado a uma crise econômica que tem justificado a possibilidade de retração de direitos sociais, incluindo a universalidade do acesso à saúde.