Em pouco mais de um ano, desde que a neuropediatra Vanessa van Der Linden levantou a suspeita de que o vírus do Zika estava por trás do espantoso aumento de casos de microcefalia em Recife (PE), o conhecimento acumulado sobre o Zika cresceu mais do que em seis décadas.
Apesar de haver ainda lacunas a serem preenchidas pela pesquisa – como saber melhor como o vírus age no organismo do feto –, quem trabalha diretamente nos serviços públicos de assistência às famílias afetadas preocupa-se sobretudo com os impactos sociais do Zika sobre a vida das mulheres e crianças vitimadas pela síndrome.
Nesta entrevista, Tânia Saad, neuropediatra do ambulatório reservado ao atendimento de crianças com a síndrome neurológica associada ao Zika e com outras encefalopatias no Instituto Fernandes Figueira (IFF) – primeiro centro de referência de atenção integral às pessoas com doenças raras do Rio de Janeiro –, fala do cotidiano que vem se construindo na assistência às famílias no IFF, dos impactos da epidemia na vida das mães e crianças atendidas, e dos aspectos clínicos, estruturais e sociais importantes para a garantia da qualidade desse atendimento.
O IFF é um centro de referência que tem se destacado pelo serviço prestado às mulheres e crianças com a síndrome congênita do zika. Como começou o trabalho de assistência às famílias afetadas?
O IFF recebeu mais de 200 crianças desde novembro de 2015, quando ninguém falava ainda de Zika no Rio de Janeiro. Contudo, já tínhamos ouvido falar a respeito no congresso da Sociedade de Neurologia Infantil onde a Vanessa van Der Linden havia falado do aumento de casos de microcefalia associado à doença febril com erupção cutânea em gestantes. Naquela época, quando já estavam sendo relatados os primeiros casos de microcefalia relacionados a um flavivirus, recebemos um menino e uma menina nascidos em dois outros hospitais do Rio. Hoje eles estão com um ano e dois meses. A partir daí os recém-natos das gestantes acompanhadas pela Dra. Patrícia Brasil no ambulatório de doenças febris na gravidez, na Fiocruz, começaram a nascer e em torno de 50% apresentavam microcefalia com grande desproporção craniofacial, com perímetro cefálico (PC) abaixo dos 31 centímetros (PC normal para um recém-nascido à termo = 34/35 cm). Os ossos da parte da frente do crânio pareciam desabados. Se o cérebro pára de crescer, os ossos também param. Começamos então a fazer ultrassom e vimos que tinham alterações do córtex cerebral, como calcificações ou dobras deformadas.
A microcefalia não é nova na literatura médica. O fato novo foi a descoberta de ela também poder ser causada por esse agente. Ela não tem uma única causa. Diversos vírus podem causar microcefalia. O citomegalovírus também pode ser causa de microcefalia, assim como o herpes vírus, o parvovírus, a rubéola. Além disso, há a toxoplasmose, que não se trata de vírus, mas é uma infecção que também pode causar alterações no cérebro do bebê. Quando começamos a atender os primeiros casos, não sabíamos qual o tamanho da situação. Não sabíamos a quantidade, se era algo semelhante a outras microcefalias com as quais já lidávamos no IFF, mas sabíamos que viria a causar danos ao desenvolvimento neuro-psicomotor da criança. Elas apresentavam o cérebro muito malformado. Percebemos que era melhor falar em disrupção do que em malformação. Malformação supõe que o cérebro já estava sendo malformado desde o início, mas no caso da Zika os neurônios vinham crescendo direito, e de repente algo acontece. O neurônio para de migrar para onde ele tinha que ir a partir da entrada do vírus, o que muda o desenvolvimento do córtex cerebral. As crianças afetadas apresentam o córtex muito liso, dobrado anormalmente ou calcificado. No momento em que chegam, precisamos acompanhar o desenvolvimento dessas crianças.
Qual o panorama atual? Há um contexto de novos casos?
Não temos recebido casos novos, mas a situação das mães e das crianças está ficando cada vez mais difícil. Temos tanto pacientes de muito baixa renda, quanto de perfil socioeconômico melhor. Contudo, as famílias de baixa renda têm maior dificuldade em aderir ao tratamento, têm um cotidiano de muita dificuldade, com problemas de locomoção, muitas crianças não conseguem o Benefício de Prestação Continuada porque pai e mãe trabalham. [O BPC é garantido pela lei 13.301 de 2016, que estabelece ajuda financeira de R$ 930 e acompanhamento por três anos às famílias afetadas] A renda per capita da família tem que ser irrisória para que o governo libere o benefício. A falta dele e as dificuldades enfrentadas pelas famílias acabam por impactar no tratamento.
Em apenas um ano produziu-se muito mais informação em pesquisa sobre o vírus do Zika do que a acumulada nas últimas seis décadas. Nos últimos meses, porém, temos observado um silenciamento em relação ao tema na mídia. Quais as lacunas e desafios ainda existentes, não somente no plano da pesquisa, mas também com relação aos impactos sociais, que dizem respeito sobretudo às mulheres e crianças afetadas?
A questão do mecanismo do vírus no feto precisa ser melhor compreendida pela pesquisa. Mas ainda que todas as lacunas da pesquisa fossem respondidas, não podemos esquecer que o dano é irreversível, ou seja, as crianças que nasceram com a encefalopatia decorrente da infecção viral continuarão a ter necessidades especiais, demandas crescentes. Independentemente de terem saído do foco da mídia, as crianças precisam ser acompanhadas, para sabermos como elas vão evoluir, se existe a possibilidade do efeito tardio no bebê que não nasce microcefálico, isto é, aquele que nasce com perímetro cefálico normal e de repente o cérebro para de crescer, podendo começar a apresentar um atraso no desenvolvimento e ter crises convulsivas. Precisamos descobrir se existem outras alterações associadas (oftalmológicas, ortopédicas, gástricas, urológicas), como nas outras microcefalias que acabam por acarretar um quadro de paralisia cerebral. Entre as crianças que são microcefálicas, é necessário acompanhar melhor a reabilitação, isto é, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, para ver como será o seu desenvolvimento, sobretudo, o cognitivo – irão sorrir afetivamente, desenvolver linguagem, aprender na vida, na escola? A criança microcefálica convulsiona muito, tem hipertonia, atraso de desenvolvimento global e dificuldade de sustentar a cabeça, sentar e andar, coisas que com um ano já era para estarem fazendo. Nossa preocupação é de como essa geração vai se desenvolver.
Outra questão é saber o quanto o serviço de assistência precisa ser ampliado. Há questões prementes com relação a isso, como a falta de medicação e de centros de reabilitação. A estimativa é feita de acordo com as demandas dos anos anteriores. Com a chegada da Zika houve uma demanda maior por medicamentos anticonvulsivantes e para refluxo gastresofágico. Não é simples substituir uma medicação por outra pois terminou na farmácia do hospital. Precisamos ter tudo prospectado. Necessitamos de mais recursos e de pessoal para a assistência dessas crianças, e conhecer quem é a nossa clientela para evitar hiatos. O IFF é um hospital de doenças graves e raras, para as quais essa assistência já era canalizada. Já havia uma demanda reprimida para crianças com paralisia cerebral por outras causas, virais ou por asfixia, causas genéticas dentre outras.
Além dos aspectos clínicos e estruturais, há a preocupação com relação aos impactos sociais da Zika sobre a vida das famílias afetadas: como vai ser a escolaridade dessas crianças, uma vez que não temos no Brasil um ensino inclusivo que funcione de verdade? Com relação às mães, muitos pais abandonam as famílias ao descobrirem que a criança tem uma encefalopatia irreversível. São limitações que essas mães têm enfrentado, que lhes podem causar sofrimentos emocionais e psíquicos. Se essas questões trazidas pela nova epidemia não forem enfrentadas, a Zika vai acabar indo para debaixo do tapete com todas as outras que já estavam lá.