Passado o período pré-eleitoral, em que temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos ficaram um tanto “suspensos” no campo político brasileiro, um debate, organizado pela professora Vera Helena Siqueira e a pesquisadora Naara Luna, do NUTES (Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde), na Universidade Federal do Rio de Janeiro, reuniu especialistas no dia 7 de novembro para discutir o tema “Aborto de fetos anencéfalos” e as questões médicas, éticas e jurídicas implicadas. Além do debate, o evento exibiu o premiado curta-metragem Uma vida Severina, dirigido por Débora Diniz e Elaine Brum, que conta a história de uma mulher, já internada no hospital, impedida de interromper a gravidez de anencéfalo porque o Supremo Tribunal Federal havia revogado a liminar que autorizava esse caso.
Participaram do debate Maria Lúcia Fernandes Penna, professora do Instituto de Medicina Social da UERJ, e a advogada Maíra Costa Fernandes, pós-graduanda em Direitos Humanos e Relações do Trabalho na UFRJ, que proferiram palestras a um público composto por docentes e alunos do NUTES, estudantes dos cursos de medicina, enfermagem, biologia, psicologia, antropologia e comunicação social.
Em sua exposição, Maria Lúcia Penna comparou a anencefalia à morte cerebral, isto é, ausência de vida neurológica, pois o feto nasce sem cérebro e não há tronco encefálico para ativar o córtex cerebral. O Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que, comprovando-se a morte encefálica, os órgãos do morto podem ser doados. Esse raciocínio se estende às regulamentações do CFM sobre o nascido anencéfalo, denominado de natimorto cerebral, daí se permitir a doação de órgãos do bebê. Segundo a expositora, se o anencéfalo é considerado morto no nascimento, poderia ser considerado morto em qualquer fase da gestação, o que justificaria a interrupção da gravidez nesses casos.
Por sua vez, a advogada Maíra Costa Fernandes argumentou que o Código Penal vigente no Brasil – que permite o aborto em casos de risco de vida materna e de estupro – foi formulado na década de 40, em que não havia técnicas de diagnóstico pré-natal, como a ultra-sonografia, que permitissem a identificação de anencefalia. Segundo ela, as restrições ao aborto no Direito visam a proteger o bem da vida e, no caso de aborto de anencéfalo, não haveria crime, porque não há ofensa à vida dada a inviabilidade do feto e à impossibilidade de sua sobrevivência. Foi ressaltada a necessidade de se separar questões religiosas e jurídicas.
Discutiu-se também como a questão é abordada em países onde o aborto é proibido. Ao contrário do Brasil, a grande maioria já possui encaminhamentos jurídicos específicos sobre o aborto de fetos quando há anomalia incompatível com a vida.
“Acreditamos na relevância da abordagem dessas temáticas na Universidade. De forma geral, existe uma falta de oportunidade para os alunos e demais membros da comunidade universitária refletirem sobre assuntos que, como este, necessitam mobilizar opiniões para serem finalmente legislados. Alunos e professores de medicina, enfermagem e de outras áreas da saúde estão diretamente implicados com essas questões”, afirma Vera Helena Ferraz de Siqueira. Doutora em Educação pela Columbia University (EUA) e professora do NUTES/UFRJ, sua atuação como docente e pesquisadora recai sobre os temas da educação em saúde; mídia, gênero e sexualidade; deslocamentos culturais e formação identitária de alunos e profissionais da saúde; e da tecnologia educacional em saúde.
Vera Helena dividiu a organização do evento da semana passada com a antropóloga Naara Luna, pesquisadora no Laboratório de Estudos da Ciência (LEC) do NUTES, onde desenvolve um projeto que mapeia as pesquisas com células-tronco adultas e embrionárias, além de terapias celulares, analisando representações e práticas científicas, um enfoque inserido na linha de “mediações sócio-culturais nas ciências e na saúde”. Naara é doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), onde teve como objeto de pesquisa as novas tecnologias reprodutivas e a clonagem.
Nesta entrevista, Vera e Naara falam da importância do debate em torno da legalização do aborto de fetos anencéfalos na universidade, especialmente entre alunos e professores de medicina, enfermagem e de outras áreas da saúde.
No período pré-eleitoral o assunto “aborto” esteve suspenso. Por que retomar o debate após a eleição, especialmente tratando de aborto de fetos anencéfalos?
É importante debater o problema do aborto de feto anencefálico em uma unidade da UFRJ, o Centro de Ciências da Saúde, que reúne os cursos voltados para a área da saúde e para o estudo da vida, pois os profissionais ali formados vão se deparar com essas questões éticas. Outra motivação foi o documentário “Uma vida severina”. O tema do aborto é quase sempre debatido de forma abstrata sem referência às experiências de sofrimento das pessoas envolvidas. A exibição do filme permitiu trazer a questão para a realidade concreta.
Quanto às eleições, a oposição ao aborto tem sido bandeira de políticos identificados com os segmentos conservadores da Igreja Católica e da bancada evangélica. A defesa do direito ao aborto, ou de ampliação dos permissivos tem custado a eleição de políticos progressistas.
Embora no Brasil o aborto seja um assunto interdito, o debate em torno da interrupção da gravidez em casos de fetos anencéfalos tem ganhado força. Em 2004, uma liminar autorizava a interrupção da gravidez de feto anencefálico, concedida pelo Supremo Tribunal Federal e, de lá pra cá, um número maior de juízes têm se mostrado sensíveis às demandas das mulheres, concedendo-lhes autorizações para a interrupção voluntária da gravidez nesses casos. Como as sras. analisam esse contexto?
A gestante de feto anencéfalico fica à mercê da opinião pessoal dos juízes. Somente se ela tiver assessoria que a encaminhe para solicitar a autorização de interrupção de gravidez a um magistrado sensível à demanda, a gestante terá seu pleito atendido. Mesmo assim, corre o risco de ter a liminar que autoriza a interrupção revogada em instância superior caso haja recurso, como já ocorreu aqui no estado do Rio de Janeiro. Uma exceção é o Ministério Público do Distrito Federal que aceita e encaminha os pedidos de autorização para a interrupção da gravidez.
A sras. acreditam que debates, como o realizado pelo NUTES, podem vir a contribuir para uma maior flexibilização na legislação restritiva do aborto no país?
Achamos que a mobilização da opinião pública é essencial. Instituições educacionais têm o dever de proporcionar espaços como esse, de debate, ou seja, de formar a cidadania. Existe a expectativa de ampliação dos permissivos. A autorização para a interrupção de gestação de anencéfalo é um caso limite. Como não houve mudança na legislação sobre o aborto no Brasil desde a década de 40, talvez haja a possibilidade de inserir aos poucos algumas alterações, mediante a informação e um mínimo consenso da sociedade.
Atualmente, no Brasil, qual o maior obstáculo à autorização legal do aborto em casos de anomalias fetais graves, como a anencefalia?
Um aspecto se refere à falta de informação. Existe a confusão entre anencefalia, uma condição em que a sobrevivência do nascido é impossível, e outros casos de alterações congênitas nos fetos que não afetariam sua viabilidade. Há aqueles que confundem anencefalia com deficiência mental, uma condição completamente diferente.
A influência da Igreja Católica no nosso contexto, sem dúvida, é um dos maiores obstáculos. A constituição estabelece um Estado laico onde as leis não deveriam se pautar por questões de fé. Sabemos, por exemplo, que Estados majoritariamente católicos como a Itália, já avançaram nessa questão, sendo que lá o aborto é permitido.
Um enfoque interessante, por exemplo, seria sob o ponto de vista da antropologia, que analisa a cultura e os valores de uma sociedade. A formação religiosa da maior parte da população brasileira é católica. Mesmo entre os católicos não-praticantes e os adeptos de outras religiões se preza a vida como valor absoluto. Muitos acreditam que qualquer aborto seja um atentado contra a vida. O aborto é um ato que, além de criminalizado no Brasil, ocorre em âmbito clandestino. Como se trata de atitude que ameaça valores relacionados à vida e à família, em particular ao papel esperado de mãe, parece haver um acordo social tácito de fechar os olhos diante da questão do aborto e suas conseqüências e preservar os ideais inatingíveis. É como se qualquer liberdade nesse sentido viesse a permitir a derrocada das instituições. O tópico é polêmico e atrai a impopularidade. Além de sua adesão a valores religiosos das religiões hegemônicas no país, os parlamentares se vêem pressionados pela possibilidade de desgaste frente aos eleitores quando se trata de debater e votar leis que diminuam as restrições ao aborto.