CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

“Ainda há muito a fazer”

Dados divulgados na quarta-feira, 25 de novembro, pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, indicam que a maioria das mulheres que buscaram a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180), entre 2007 e 2009, é negra (43,3%) e que 93% das denúncias foram feitas pelas próprias vítimas. Na análise da médica e pesquisadora Jurema Werneck, coordenadora da ONG Criola e representante do Movimento Negro no Conselho Nacional de Saúde, o quadro é resultado do racismo patriarcal.

“O modelo da sociedade brasileira é racista – brancas e brancos vivem privilégios em relação a todos os demais grupos. Todo mundo sabe a intensidade destas violências, a diferença é que nós, mulheres negras, recusamos a naturalização do quadro”, diz ela, que, em 2007, defendeu a tese de doutorado na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “O samba segundo as ialodês: mulheres negras e a cultura midiática” na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, ialodê é termo apropriado pelo movimento social de mulheres negras brasileiro para nomear atributos de liderança e representação.

Segundo Jurema Werneck, o dia 20 de novembro – no Brasil, Dia da Consciência Negra – é uma oportunidade para a sociedade reafirmar seu compromisso com o anti-racismo. “Para a mulher e o homem negros, a data significa empoderamento e conquista. Se, numa comparação bem simples, considerássemos o racismo como o alcoolismo, a data seria uma oportunidade para agirmos da mesma forma que o alcoólatra faz: assumir que tem o problema e, a cada dia, desenvolver a luta profunda que é reafirmar seu compromisso com a sobriedade. O 20 de novembro é este momento de fazer isto em relação ao racismo”, analisa. Na entrevista a seguir, a pesquisadora (que herdou o nome de uma divindade indígena, a cabocla Jurema) fala dos sistemas de dominação e inferiorização construídos a partir das categorias raça/cor da pele e sexo e explica o que certa vez quis dizer quando afirmou em um de seus textos: “As mulheres negras não existem”.

Que papel representa hoje a mulher negra na sociedade brasileira, tendo em vista que, como a sra. mesmo sinaliza em seus textos, sua ação política – enquanto forma organizacional de luta – vem desde os tempos do Brasil colônia? Qual a sua posição na escala social, levando em conta as disparidades raciais e as desigualdades de gênero e seus efeitos sobre a escolaridade e a saúde?

O racismo patriarcal se apóia na hiper-exploração da produção cultural e econômica das populações, com forte espoliação sobre as mulheres negras. Todo mundo sabe a intensidade destas violências, a diferença é que nós mulheres negras recusamos a naturalização do quadro. Por outro lado, ao explicitarmos a longa trajetória de luta, o que queremos é destacar que mulheres negras não devem ser compreendidas somente pelo viés da subordinação. Mas também por sua capacidade de articulação, liderança e luta, que permitem que estejamos no século XXI posicionadas como interlocutoras para as transformações sociais que necessitamos.

O Brasil tem se destacado no cenário internacional pela adoção de mecanismos institucionais de promoção da igualdade racial e de enfrentamento das disparidades raciais. Essas ações têm sido capazes de transformar as relações raciais ou de alterar as condições de vida de mulheres e homens negros no país? Que desafios ainda se apresentam?

O principal desafio é transformar as relações raciais. No estágio atual das ações estatais, ainda estamos na fase de disputas em relação a que mecanismos a sociedade brasileira deve dispor para esta tarefa gigantesca. Mas há ainda muito o que fazer, pois os diferentes agentes estatais ainda têm importantes focos de resistências – maiores até do que aqueles que existem no conjunto da sociedade.

Em que medida a positivação de raça/gênero ou da identidade “mulher negra” favorece a luta política contra um modelo de sociedade patriarcal, racializado, racista e heterossexista a que as mulheres se opõem?

O modelo da sociedade brasileira é racista – brancas e brancos vivem privilégios em relação a todos os demais grupos. Mas é complexificado por seu viés patriarcal. A positivação tem sido uma estratégia fundamental – e bem sucedida – dos diferentes grupos em desvantagem. Pois permite também fazer circular informações e atitude que confrontem os postulados de inferioridade colocados sobre nós. Ao mesmo tempo, entre nós, positivação não quer dizer inventar possibilidades sobre-humanas para nós, mas sim valorizar aspectos do que somos e que são negados pelas ideologias hegemônicas. As identidades não são necessariamente totalizantes, se são vistas como estratégias políticas. Não existe um desejo fascista de auto-encarceramento nas identidades. Existe uma agrupação de diferenças em favor da construção de lutas comuns para confrontar o racismo patriarcal. O que queremos é mudar o mundo e não criar um pedaço de humanidade só para nós.

A sra. certa vez afirmou em um de seus textos que “As mulheres negras não existem” e que elas “ devem ser compreendidas como uma *articulação de heterogeneidade”*. Poderia explicar esta posição?

Foi um diálogo com a afirmativa de Simone de Beauvoir, de que “não se nasce mulher, torna-se”. Ou seja, não existe uma determinação biológica que nos faça mulheres negras. Mas sim, diferentes sujeit@s que se agrupam na vigência de sistemas racistas patriarcais. Com isso, preciso reconhecer que não somos todas iguais, mas estamos juntas não somente por identidades culturais, mas fundamentalmente, por uma perspectiva política, ideológica de superação do quadro de subordinação.

De que forma se dá a construção do sistema de subordinação e inferiorização de uns indivíduos a partir das categorias raça e sexo?

São processos complexos que, no ocidente e em relação às populações de pele escura, implicam numa construção em que a raça assume relevância principal, estabelecendo patamares inferiores de ocupação de espaços sociais e simbólicos para estas pessoas e grupos. Às estruturas racistas, agregam-se, potencializando suas ações, o sexismo (inferiorizando as mulheres, bem como aquelas cujas identidades de gênero são divergentes da norma). Tal situação pode ser visualizada pelas estruturas de classe social resultantes: como disse Stuart Hall, “classe é o modo como a raça é vivida”, porém com diferenciais entre mulheres e homens destes grupos.