Muitos projetos e planos, mas pouca efetividade. A pesquisa Políticas públicas para a população LGBT no Brasil: um mapeamento crítico preliminar, desenvolvida pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Goiás (Ser-tão/UFG), revela um país que, apesar das inúmeras discussões e propostas voltadas para a ampliação dos direitos da população LGBT, ainda não consegue dotá-los de maior proteção ou igualdade de direitos.
O estudo levou aproximadamente dois anos para ser concluído. O propósito foi mapear políticas públicas para esse segmento populacional em áreas como educação, saúde, segurança e trabalho, assistência e previdência social. Foram realizadas também 95 entrevistas, com representantes da sociedade civil e gestores públicos.
Em entrevista ao CLAM, o sociólogo Luiz Mello, coordenador da pesquisa, comenta o panorama das políticas públicas brasileiras em nível federal, estadual e municipal e analisa as perspectivas políticas diante da eleição de um novo governo, a ser iniciado em 2011.
Quais os setores e áreas que o senhor considera mais carentes e mais avançados? Qual a avaliação geral que o senhor faz a respeito das políticas públicas brasileiras voltadas para o segmento LGBT?
Nunca se teve tanto e o que há é praticamente nada. Essa talvez seja uma boa fórmula geral para mostrar o paradoxo da situação dos direitos da população LGBT no Brasil hoje. Já existem, desde 2002, planos e projetos a partir dos quais se tem pensado políticas públicas para estes segmentos, como o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNPCDH-LGBT), elaborado a partir das propostas aprovadas na I Conferência Nacional LGBT (2008) e o Programa Nacional de Direitos Humanos III, ambos de 2010. Todavia, a falta de efetividade das poucas políticas públicas voltadas para a população LGBT ainda se manifesta em praticamente todas as áreas da atuação governamental, nos três níveis do Poder Executivo (federal, estadual e municipal), especialmente em face de quatro fatores fundamentais, entre outros: a) ausência de respaldo jurídico que assegure sua existência como políticas de Estado, livres das incertezas decorrentes das mudanças na conjuntura política, da LGBTfobia institucional e das pressões LGBTfóbicas de grupos religiosos fundamentalistas; b) dificuldades de implantação de modelo de gestão que viabilize a atuação conjunta, transversal e intersetorial de órgãos dos governos federal, estaduais e municipais, contando com a parceria de grupos organizados da sociedade civil; c) carência de previsão orçamentária específica, materializada no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA); e d) reduzido número de servidoras públicas especializadas, integrantes do quadro permanente de técnicas dos governos, responsáveis por sua formulação, implementação, monitoramento e avaliação.
Nas seis áreas de atuação privilegiadas na pesquisa, talvez se possa dizer que há carências profundas de ações nas áreas de trabalho, previdência social e assistência social, ao passo que as ações de maior alcance estão no âmbito da saúde, seguramente por influência do histórico de pressão do movimento LGBT em decorrência da epidemia de hiv-aids e, mais recentemente, das demandas de travestis e transexuais por atendimento médico especializado que viabilize as modificações corporais que tornem suas escolhas de gênero mais confortáveis em termos físicos e existenciais. Por outro lado, nas áreas de educação e segurança já se começa a contar com algumas ações importantes, especialmente no âmbito da capacitação de profissionais para o combate à LGBTfobia, embora ainda sejam incipientes, pontuais e sem uma política que assegure sua continuidade.
Como avalia iniciativas municipais voltadas para esta população?
Ainda são raras, pouco transversalizadas e intersetorializadas e com efetividade reduzida, da mesma maneira como ocorre nas esferas estadual e federal. A título de ilustração, vale destacar que a última Pesquisa de Informações Básicas Municipais – MUNIC, realizada em 2009 e divulgada em 2010 pelo IBGE, mostra que dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 130 desenvolvem ações e programas voltados para a população LGBT, o que corresponde a 2,3%, do total, embora alcance aproximadamente 24,9% da população brasileira, considerando que as ações são implementadas na maior parte das vezes em municípios mais densamente povoados. Por outro lado, a mesma pesquisa também aponta que, no âmbito das unidades da federação que integraram o recorte geográfico da pesquisa realizada pelo Ser-Tão (Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Pará, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo), os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e Ceará são os que possuem um número mais expressivo de municípios com iniciativas voltadas para a população LGBT, ainda que tal número seja quase insignificante em termos absolutos. Por fim, note-se que, ainda segundo a MUNIC, 0,43% dos municípios possuem centros de atendimento especializado para a população LGBT e apenas quatro dos 5.565 municípios brasileiros contam com Conselho de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Nos últimos anos, em nível federal, houve iniciativas ou tentativas consideráveis de discussão e de implementação de medidas voltadas para a população LGTB: uma Conferência Nacional LGBT e um programa de Direitos Humanos (PNDH-3) que buscaram ampliar direitos desse público, e iniciativas como a recente permissão de inclusão do companheiro ou companheira gay como dependente no Imposto de Renda. No entanto, muitas decisões, como a adoção de crianças por casais homossexuais, ainda são alcançadas por meio da Justiça. De que forma o senhor analisa esse processo de avanços no qual os direitos ainda são em grande medida facultados por um juiz?
É uma tragédia – não existe outra palavra – que os direitos civis de milhões de pessoas estejam à mercê da boa vontade, liberalidade e humor de juízes. Além disso, recorrer ao Poder Judiciário é uma experiência longa, cara e que pressupõe dos demandantes uma capacidade de assumir sua homossexualidade a ponto de terem coragem – esta é a palavra, por mais que possa parecer exagero – para reivindicar pela via judicial seus direitos. O Judiciário não foi feito para legislar, mas tem sido obrigado a cumprir este papel diante da incapacidade do Legislativo brasileiro de, a partir do pressuposto de que homossexualidade não é crime ou doença, assegurar a igualdade na esfera pública entre todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, o que significa direito de acesso ao casamento, à união estável, à adoção, à reprodução assistida, à proteção de sua integridade física e psíquica, entre tantos outros direitos que hoje lhes são negados legalmente ou de maneira tácita.
Em quais estados houve mais avanços?
Essa é uma pergunta complicada de ser respondida, já que a noção “avanço” não é capaz de traduzir a dinâmica da realidade de cada estado. Por exemplo, em termos ideais, a existência de um órgão governamental responsável pelas questões LGBT, de um plano estadual que assegure diretrizes e princípios para a atuação governamental e de um conselho composto por representantes do governo e da sociedade civil que monitore as ações poderia significar uma situação onde a probabilidade de atenção efetiva aos direitos da população LGBT e de combate à homofobia seria vista como promissora. Todavia, se o referido órgão não tem orçamento, se o plano estadual é uma “peça literária” – para usar a expressão de um de nossos entrevistados – e se o conselho não tem poder de efetivamente influenciar as ações do governo, de quase nada adianta a existência da estrutura governamental antes referida. No momento atual, apenas o estado de São Paulo e o município de São Paulo dispõem, simultaneamente, de órgão específico responsável pelas demandas da população LGBT, de um plano de governo de promoção dos direitos e de um conselho que prevê a participação de governo e sociedade civil na formulação, monitoramento e avaliação de diretrizes de ação e de políticas públicas para LGBT. Nos demais estados e capitais contemplados em nossa pesquisa, um ou mais desses três elementos não se fazem presentes, com os casos extremos do Paraná e do Rio Grande do Sul, que não possuem, em nível estadual, órgão, plano ou conselho direcionados às demandas da população LGBT.
Já no que diz respeito à existência de atos normativos relativos à população LGBT, no âmbito das unidades da federação contempladas na pesquisa do Ser-Tão, a tabela abaixo é ilustrativa e mostra que os estados do Pará, Piauí e São Paulo, além do Distrito Federal, contam com um número maior de instrumentos jurídicos.
Deve ser ressaltado, porém, que a ausência de proteção legal em nível federal fere de morte a efetividade de várias iniciativas no âmbito dos governos estaduais e municipais, já que estes não possuem respaldo legal para legislar sobre temas que, no Brasil, são de competência privativa da união, como é o caso de direito civil e penal.
A última eleição não apenas representou um aumento significativo da chamada bancada religiosa (de 43 para 71 para parlamentares), como trouxe à superfície um discurso notadamente conservador e moralista. O senhor acredita que, apesar de o atual governo ter garantido mais 4 anos de mandato de um projeto em sintonia com a causa LGBT, haja espaço para a ampliação de mais direitos? Qual a sua expectativa sobre a relação entre Legislativo e Executivo para os próximos anos?
O atual governo não conseguiu promover uma boa articulação com o Congresso Nacional de maneira a assegurar a discussão e muito menos a aprovação de projetos de lei voltados à garantia de direitos da população LGBT e ao combate à LGBTfobia. Considerando que a base de sustentação do atual Governo inclui partidos claramente comprometidos com princípios ideológicos cristãos fundamentalistas, os quais se estruturam a partir de uma visão sexofóbica de mundo, o Presidente da República e seus ministros, por mais que digam apoiar demandas do movimento LGBT, não tiveram a determinação política de colocar os direitos sexuais como uma prioridade de seu governo, diferentemente de outros países, como a Espanha e mais recentemente a Argentina, onde o Presidente do Governo José Luis Zapatero e a Presidenta Cristina Kirchner, respectivamente, estiveram pessoalmente comprometidos com a aprovação das mudanças legais que permitiram uma reformulação da concepção jurídica de casamento e de adoção, facultando-os também aos casais de pessoas do mesmo sexo.
Em relação ao próximo governo, pessoalmente sou muito cético quanto a uma eventual mudança no cenário das relações entre Executivo e Legislativo no que diz respeito às reivindicações políticas da população LGBT. Se ainda resta alguma esperança de curto prazo, talvez esta se encontre no Supremo Tribunal Federal, que em breve deve apreciar duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, que, se aprovadas, permitirão a extensão do alcance dos direitos da união estável também aos casais de pessoas do mesmo sexo e a possibilidade de mudança de nome e sexo nos documentos civis de pessoas transexuais, sem terem que se submeter a cirurgias de redesignação sexual. Tomara que os Ministros do STF sejam menos vulneráveis aos apelos do fundamentalismo religioso, que advoga uma concepção excludente de cidadania e de humanidade, do que os parlamentares do Congresso Nacional.
Como surgiu a idéia de fazer um mapeamento dessa magnitude? Quantos profissionais estiveram envolvidos?
A proposta de realização da pesquisa surgiu a partir da constatação de que o foco de atenção do movimento LGBT brasileiro, a partir de 2004, com a divulgação do Programa Brasil sem Homofobia, estava se deslocando do âmbito dos poderes Legislativo e Judiciário para o Executivo. Não que a aprovação de leis ou de decisões de tribunais superiores tenha deixado de ser vista como prioritária. Aliado a essas bandeiras de luta já históricas, passou-se a demandar que o Poder Executivo também atuasse de maneira mais direta no combate à LGBTfobia e na garantia da cidadania de transexuais, travestis, lésbicas, bissexuais e gays, incluindo a formulação e implementação de políticas públicas. Em verdade, desde 2002, com a aprovação do PNDH 2, as demandas do momento LGBT, ao menos formalmente, já haviam sido incorporadas à pauta das reivindicações reconhecidas pelo Governo Federal como passíveis de formulação de políticas públicas, embora nada tenha sido feito antes do Brasil sem Homofobia, à exceção da área de prevenção do hiv-aids. Com a realização da Conferência Nacional LGBT, em 2008, a própria definição de seu tema de atenção prioritária – Direitos humanos e políticas públicas: o caminho para garantir a cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT) – mostrava que as políticas públicas para a população LGBT haviam se tornado uma prioridade na arena política. Daí o interesse da equipe do Ser-Tão na realização desta pesquisa.
Quanto à equipe responsável pela realização do trabalho, o grupo inicial contava com cinco pessoas, que, posteriormente, teve o apoio, em momentos específicos, de consultores que realizaram atividades diversas, como produção do sítio na internet onde os resultados foram divulgados (www.sertao.ufg.br/politicaslgbt), sistematização do banco de dados, análise de entrevistas e documentos, redação de textos, entre outras. Deve ser destacado, por fim, que a realização da pesquisa contou com apoio financeiro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg).
Que tipo de desdobramento o senhor vislumbra a partir desses dados?
Creio que a principal contribuição da pesquisa é colocar na ordem do dia a necessidade de refletir sobre a efetividade das políticas públicas governamentais para grupos subalternizados no Brasil, especialmente para a população LGBT. Também pode contribuir para dar visibilidade para as dramáticas condições de LGBTfobia que prevalecem em diversas esferas da vida social, como saúde, educação, segurança, assistência, previdência e trabalho, além de mostrar como são inúmeros e significativos os obstáculos a serem superados com vistas a garantir condições de vida mais dignas para os que vivem à margem da norma heterossexual, com destaque para a homofobia de Estado, o fundamentalismo religioso e a ausência de um arcabouço jurídico que reconheça igualdade na esfera pública entre todas as pessoas, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero.