CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Autonomia como meta

As comemorações pelo 100º Dia Internacional da Mulher, em 2011, coincidiram com o início do governo da primeira mulher a presidir o Brasil. O governo da presidente Dilma Rousseff terá como meta prioritária promover a autonomia econômica, política e social das mulheres brasileiras, conforme afirma em entrevista ao CLAM a ministra da Secretaria de Política para as Mulheres, Iriny Lopes, sucessora de Nilcéia Freire no cargo.

Índices elevados de violência doméstica, restrição de direitos sexuais e reprodutivos, pobreza, baixa representatividade feminina nos espaços políticos e diferenças salariais em relação aos homens são alguns dos problemas que o Brasil apresenta. Na entrevista ao CLAM, a ministra lista ações e traça planos para enfrentar esse cenário.

A senhora afirmou recentemente que a feminização da pobreza é um problema concreto no Brasil. Que ações e medidas estão nos planos da Secretaria de Políticas para as Mulheres para incrementar a situação econômica das mulheres, tendo em vista que elas ainda recebem salários menores do que os homens?

Quando assumimos a Secretaria de Políticas para as Mulheres, recebemos da presidenta Dilma a tarefa prioritária de promover a autonomia econômica, política e social das mulheres brasileiras, pois enfrentar as desigualdades de gênero passa por erradicar a pobreza. O Brasil tem hoje 8,9 milhões de miseráveis, a maioria são mulheres, e dentre elas estão as negras com seus filhos e filhas. Portanto, a pobreza e a miséria têm sexo e cor. Essa iniquidade tem que acabar. Isso é pressuposto de um Brasil com igualdade, solidário e verdadeiramente democrático.

O primeiro passo foi dado pela presidenta Dilma, ao dar reajuste de 45% aos beneficiários do Bolsa Família com filhos de até 15 anos de idade (o aumento médio ficou em 19,4%). A maioria dos usuários do cartão Bolsa Família (93%) são mulheres. Estamos atuando em frentes que se complementam, na perspectiva de erradicar a pobreza e a miséria, seja na ampliação do acesso das mulheres ao mercado de trabalho formal em empreendimentos de infraestrutura, como as obras do PAC II, Copa de 1014 e Olimpíadas. Paralelamente, trabalhamos com ações para possibilitar formação e qualificação profissional para as mulheres, através de cursos de qualificação nos institutos federais e no sistema S (Sesi, Senai, Sesc, Sebrae, Senar, Sest Senat etc.). Nesta mesma direção, vamos ampliar a estrutura de apoio que facilite a presença das mulheres no mercado de trabalho, ampliando o número de creches, além de aumentar o tempo de permanência das crianças nas unidades de educação infantil. A instalação de restaurantes, cozinhas e lavanderias comunitárias para que elas possam permanecer no trabalho sabendo que seus filhos estão acolhidos e bem tratados é outra medida, e vem atender especialmente a população em situação de vulnerabilidade. Ainda nesta perspectiva, estamos articulando a criação de linhas de créditos específicos, destinados às micro e pequenas empreendedoras, cooperativas e associações de mulheres.

Na área de saúde, está sendo articulada a rede de atendimento ao parto (Rede Cegonha) e a ampliação da rede de diagnóstico e tratamento do câncer de mama e de colo uterino, dentre outras ações articuladas com todos os setores do governo de forma transversal. São ações de políticas públicas que devem ser institucionalizadas e incorporadas em todas as instâncias em nível federal, nos estados e municípios.

O número de mulheres com título de doutorado ultrapassou o de homens, segundo dados divulgados ano passado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Essa qualificação, no entanto, contrasta com outro dado: o de que as mulheres predominam nas estatísticas sobre desemprego no país e de baixos salários. Qual a sua avaliação sobre essa contradição?

As mulheres representam 41% da força de trabalho, mas ocupam somente 24% dos cargos de gerência. O rendimento delas, em média, é 63% menor do que dos homens. Embora as mulheres sejam mais qualificadas intelectualmente, considerando que têm mais tempo de estudos, elas não possuem as mesmas oportunidades no mundo do trabalho. Reverter essa realidade é um desafio para toda a sociedade. É necessário superar valores, práticas e posturas que estão enraizadas na cultura machista, sexista e discriminatória em relação às mulheres. E um dos espaços importantes para romper com essas posturas é a educação. Vamos qualificar meio milhão de professoras e professores no programa Gênero e Diversidade na Escola. No mundo do trabalho, vamos incentivar e promover programas de equidade de gênero nas empresas e instituições públicas, ampliando a cobertura das ações já existentes. E, no campo da cultura, queremos promover a expressão cultural e de identidades das mulheres, assim como a visibilidade das diferenças e diversidades.

O país vive um momento inédito com a eleição da presidenta Dilma Rousseff e a nomeação de 9 ministras para seu governo. Nunca o Brasil teve tantas mulheres nos postos mais altos do Executivo. A sra. acredita que haverá repercussões na cultura política de poder masculino dos partidos e que os debates sobre a participação política das mulheres terão mais importância na reforma política?

Elegermos uma Presidenta é um marco histórico sem precedentes, especialmente em se tratando de uma mulher que chegou à Presidência não trazida por uma história política ‘agregada’ à elite ou a uma tradição oligárquica. Sua eleição vem por mérito próprio, com uma biografia de afirmação da liberdade, da igualdade e defesa da democracia e direitos. Ela vem suceder um operário oriundo das lutas populares. É um marco simbólico, político e histórico que põe luz sobre a força da mulher brasileira e sua capacidade para acabar com um conjunto de práticas discriminatórias, a começar com a pobreza, a violência, a ausência de participação política e autonomia econômica.

Uma mulher na Presidência muda a forma de entender e de operar as políticas, especialmente para as mulheres. Abre perspectivas e as estimula a ampliar sua presença nos espaços de poder e decisão e aponta para as possibilidades de qualificar os marcos jurídicos ainda discriminatórios, como a Legislação Eleitoral, que não contempla a equidade de gênero. Estamos vivendo um momento muito especial na história da luta das mulheres por igualdade e equidade de gênero. Nesse sentido, a presidenta Dilma é uma referência sem precedentes, que repercute na vida das mulheres em todas as áreas, com um sentido profundo de afirmação dos seus valores, de que as mulheres podem.

Apesar da eleição da primeira mulher presidente na história do país, na Câmara dos Deputados a bancada feminina encolheu de 47 para 43 parlamentares em relação ao pleito de 2006. No Senado, foram eleitas 8 mulheres, que se juntaram às 4 que já estavam na Casa. O que pode ser feito para aumentar a representação da mulher na política nacional?

A presença das mulheres na política não é uma questão de número ou de comparação entre homens e mulheres, mas de igualdade de gênero, requisito necessário para alcançarmos a democracia plena e o desenvolvimento com justiça. E é também uma questão de qualidade, pois as mulheres na política trazem com mais profundidade o debate sobre questões importantes para o desenvolvimento, como a erradicação da pobreza e miséria, a promoção do pleno emprego e renda, saúde, educação, o enfrentamento à violência e às desigualdades, segurança alimentar, dentre outros. Elegemos uma presidenta, subimos para nove o número de ministras, e a nomeação de mulheres para os cargos do segundo escalão cresceu 75%. Mas, apesar dos avanços, as mulheres ainda têm pouca presença: se formos comparar com os dados dos Legislativos, que têm em média 10% de presença feminina, e o Judiciário, com apenas 15%, veremos que estamos ainda muito longe de alcançar a equidade e a igualdade de gênero nos altos escalões. Reverter essa situação passa pela reforma eleitoral, que contemple a equidade de gênero nas listas de candidatos, possibilitando às mulheres as mesmas oportunidades. Estamos dialogando neste sentido com a bancada feminina no Congresso Nacional.

Assim que foi escolhida para o cargo, no final de dezembro do ano passado, a senhora afirmou que não via obrigação de uma mulher ter um filho que ela não se sentia em condições de ter. Houve forte reação de setores conservadores (inclusive na classe política), demonstrando mais uma vez que o tema do aborto está inserido em um contexto de permanente embate político e ideológico. Como a senhora pretende lidar com esse cenário para ampliar os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres?

Estamos tratando com serenidade e tranqüilidade essa questão. Por orientação da presidenta Dilma Rousseff, a questão do aborto será tratada de acordo com a lei. E nenhuma mulher deve correr o risco de morte por falta de atendimento. Para isso, a rede de atenção à saúde integral da mulher tem a atribuição de acolher e atender as mulheres que necessitam de atendimento nesses casos. Ampliar e defender os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres não é só atribuição do Estado. Toda a sociedade deve debater a questão ouvindo as diversidades e a pluralidade de opiniões, opções e culturas, de forma a contemplar todos os setores.

A violência contra a mulher permanece como um fenômeno freqüente e grave. A aplicação da Lei Maria da Penha, passados mais de cinco anos de sua implementação, ainda está vulnerável à interpretação dos juízes, que muitas vezes tomam decisões que deixam desprotegidas mulheres vítimas de agressões. O que o Executivo federal pode fazer para garantir o cumprimento pleno da lei?

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que tipifica e pune os atos de violência contra a mulher, é uma vitória para os direitos das mulheres. A lei incorporou o avanço legislativo internacional e se transformou no principal instrumento legal de enfrentamento à violência doméstica contra a mulher no Brasil. É uma legislação reconhecida internacionalmente. A presidenta Dilma afirmou que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada com rigor, e é assim que o governo federal está tratando a questão. A tentativa de revisão de alguns dos artigos e o questionamento da lei pode representar um retrocesso na sua implementação e aplicabilidade. Após estes cinco anos de existência, é necessário ampliar o seu alcance, assegurando todos os mecanismos e instrumentos nela previstos e garantindo que todas as mulheres em situação de violência tenham seus direitos e sua cidadania respeitados.

Nesse processo de mobilização em defesa da Lei Maria da Penha, a SPM conta com grande apoio dos Ministérios Públicos Federal e Estaduais, que têm defendido a aplicabilidade da lei. Firmamos uma parceria com o Ministério Público Federal, o Ministério da Justiça e o Colégio dos Procuradores Gerais da Justiça, através de um Protocolo de Cooperação para aprimorar a proteção às mulheres que são vítimas de violência doméstica e para efetivar a punição dos seus ofensores, nos termos da Constituição e da Lei Maria da Penha.

Segundo pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas. A cada dia, 10 mulheres são assassinadas. Somente nos últimos 12 meses, um milhão e trezentas mil mulheres acima de 15 anos foram agredidas. Por esses dados podemos avaliar que a Lei Maria da Penha não só é importante para punir com rigor os agressores, mas é um instrumento de reconhecimento histórico de que mais da metade da população do Brasil, composta por mulheres, deve ter sua integridade protegida. O Estado reconhece que a violência doméstica, uma face cruel das desigualdades entre homens e mulheres na sociedade, deve ser erradicada. É o reconhecimento de que as mulheres brasileiras têm quem as proteja. Modificar essa lei, ou negá-la, é um retrocesso em relação aos direitos das mulheres e negação da sua condição de igualdade.