CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Sexualidade na cultura norte-americana

O livro Gays, lésbicas, transgenders: o caminho do arco-íris na cultura norte-americana, lançado pelo CLAM e pela EdUERJ, é uma obra interdisciplinar: ele atravessa décadas de produção literária queer contemporânea, mapeando a história desse gênero nos Estados Unidos e sinalizando o percurso teórico seguido pela autora Eliane Berutti.

Professora de literatura e cultura norte-americana do Instituto de Letras da UERJ, Eliane Berutti seguiu os passos da produção literária queer nos Estados Unidos do final dos anos 1970 até os anos 2000. O trajeto dessas décadas abriu novos caminhos de pesquisa e vivência para a autora do livro, que mudou o seu próprio rumo de pesquisa durante o projeto. “Minha pesquisa sobre contos gays e lésbicos teve início após o meu doutorado, cujo foco envolveu romances norte-americanos da década de 1960, uma época de revoltas, como a contracultura, o movimento pelos direitos civis, a Guerra do Vietnã. História e Literatura sempre me acompanharam”, afirma a autora.

Durante a pesquisa de doutorado, lembra a autora, estavam sendo lançadas nos Estados Unidos algumas antologias de contos gays e lésbicos. “Foi uma identificação muito forte. Eu achei muito interessante essa vertente literária e a elegi como objeto de estudo”, recorda Eliane Berutti, que também conta no livro sua experiência de convívio e a relevância da ativista transgender Sylvia Rivera, falecida em 2002, e que é considerada um mito para o movimento transgender.

Em entrevista ao CLAM, Eliane Berutti fala também sobre o panorama dos estudos sobre homocultura no Brasil.

O que a levou a focar a literatura gay e lésbica norte-americana como objeto de pesquisa?

Eu comecei a fazer essa pesquisa sobre contos gays e lésbicos depois do doutorado em História, no qual me debrucei sobre romances dos anos 1960 nos Estados Unidos, uma época de muitas revoltas: contracultura, movimento pelos direitos civis, Guerra do Vietnã. Fiz um trabalho interdisciplinar entre Literatura e História.

Quando eu estava nos Estados Unidos fazendo minha pesquisa de doutorado, saíram várias antologias de contos gays e lésbicos. Eu achei muito interessante, me apaixonei por esses contos, e elegi como objeto de estudo essa tendência da literatura norte-americana, que cada vez cresce mais.

Como o estudo evoluiu e interferiu na sua trajetória de pesquisa?

Enquanto eu estudava esses contos, percebi que não dava para aplicar nenhuma teoria que eu já conhecia anteriormente. Eu deveria usar a teoria queer, que seria mais adequada para analisar essa produção literária contemporânea. Comecei a trabalhar então com questões de teoria queer e depois, no meu pós-doutorado, eu fui para os Estados Unidos. Fiquei um ano na New York University fazendo pesquisa sobre estudos queer. Lá eu conheci a Sylvia Rivera, falecida em 2002, e considerada a mãe do movimento transgender, a quem eu dedico meu livro. Ela mudou o percurso da minha pesquisa.

Por quê? Fale um pouco mais sobre a Sylvia Rivera.

Sylvia é uma lenda, um mito. Eu tive muita sorte de conhecê-la. Ela morou na rua durante muito tempo e, cinco anos antes de falecer, foi morar numa casa no Brooklin, a Transy House, cuja proprietária era uma mulher transexual. Essa casa destinava-se basicamente a pessoas transgender. A Sylvia foi uma das fundadoras da organização STAR (Street Transvestite Action Revolutionaries). O objetivo delas era acolher os transgenders que viviam na rua. A situação deles é muito parecida com a das travestis aqui no Brasil. São pessoas expulsas pela família e pela escola. A escola (primeiro e segundo grau), por exemplo, não aceita uma pessoa que transita entre os dois gêneros. Tornam-se semi-analfabetos, sem instrução. A Sylvia passou por isso, foi viver na rua e se prostituiu, passando por todos os problemas que a prostituição implica. Viver na rua com um inverno como o dos Estados Unidos é uma experiência dolorosa. Ela fez um movimento para tentar retirar algumas dessas pessoas das ruas. Na época em que ela faleceu, eu visitei uma casa onde elas davam abrigo e comida de graça. Era um trabalho social fantástico.

Ela foi veterana da revolta de Stonewall, que foi o grande marco histórico no movimento político de direitos de gays e lésbicas. Eu assisti a uma palestra da Sylvia na NYU em 2001. Primeiramente, ela se considerava um homem gay. Depois se descobriu uma mulher e se tornou uma drag queen, como ela se intitulava. Quando eu a conheci, depois de um certo tempo de conversa, eu perguntei se ela tinha planos de fazer a cirurgia de transgenitalização. E ela disse: “em hipótese nenhuma, ninguém toca no meu pênis”.

Voltando aos contos gays, as obras analisadas são meramente ficcionais ou englobam motivações políticas? Quais os temas mais frequentes nesses textos?

Em primeiro lugar, nós, pesquisadores de literatura, separamos uma obra literária de manifesto político. São gêneros distintos. Nesses contos, há muito protesto social e político. Por exemplo, os contos dos anos 1980 concentraram-se basicamente na temática da AIDS, textos lindos, escritos principalmente por gays. Existe uma literatura em torno disso. Eu diria que o tema mais importante, nos EUA, é o do coming out, ou seja, o drama pelo qual a pessoa passa para decidir se vai ou não sair do armário, e depois decidir para quem vai contar (família, amigos, colegas de trabalho).

Muitos contos focam também a crise na adolescência. Outro tema frequente é a relação de gays e lésbicas com suas famílias. É uma relação sempre muito tensa. Outros assuntos também se repetem: a descoberta do homoerotismo na adolescência e como o adolescente lida com isso; o comportamento do gay em relação ao casamento heterossexual imposto pela sociedade e ao casamento gay; a relação familiar problemática por causa da sexualidade, considerada desviante.

E em relação à produção ficcional lésbica?

Eu diria que um dos temas mais recorrentes nesta produção é o erotismo lésbico e a questão butch-femme, um casal de lésbicas. A butch expressa seu gênero de forma masculina e a femme, de forma feminina. Os textos tratam do relacionamento, da paquera, dos encontros, dos bares lésbicos que frequentam. Muitas vezes esse relacionamento é tratado de forma cômica, como, por exemplo, em quadrinhos. E há a vertente do SM, o sadomasoquismo, que é uma relação em que esses dois adultos brincam com jogos e representam papéis.

Você mencionou a teoria queer como um recurso utilizado para desenvolver seu estudo. De que forma ela está articulada ao seu método de pesquisa?

A teoria queer é recente, foi fundada nos Estados Unidos nos anos 1980, na academia. Os fundadores resolveram adotar um termo que é extremamente pejorativo para designar um gay ou uma lésbica. Eles resolveram se apropriar desse termo para chocar e chamar a atenção para a homofobia.

A teoria é considerada um guarda-chuva sob o qual estão abrigadas várias tendências, orientações sexuais, identidades de gênero e sexuais. Os trangenders se enquadram nessa teoria, que é diferente de uma teoria gay ou lésbica, que, por exemplo, não aceita a participação de estudos bissexuais. Já a teoria queer aceita, o que foi fundamental para minha pesquisa. A grande diferença da teoria queer é a inclusão da bissexualidade, dos trangenders e também a participação de heterossexuais fazendo pesquisa nesse campo.

Os teóricos alegam que tal teoria não trata apenas de sexualidade, ela tem também um viés político que é muito importante: questionar a norma, o heterocentrismo. A teoria estaria tratando de identidades que se cruzam, como por exemplo, estudar uma bissexual judia.

Qual o panorama dos estudos sobre homocultura no Brasil?

O panorama é positivo. Em 1998, no Congresso da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada), havia oito pesquisadores que estudavam literatura gay e lésbica em universidades diferentes no Brasil. Então, nós decidimos nos reunir para discutir nossas pesquisas e, no ano seguinte, o Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF) promoveu o seminário “Literatura e Homoerotismo”. Já eram quase 30 pesquisadores. Em 2001, nós criamos a ABEH. A ABEH está crescendo, assim como o número de professores e orientandos. Então, podemos dizer que é um movimento que atingiu a academia há mais de dez anos, não ficando apenas nas ruas.