CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Intervenção contraditória

Ao longo dos cinco anos que levou para desenvolver sua tese de doutorado em sociologia pela Universidade de Brasília (UNB), a pesquisadora Marlene Teixeira, professora do Departamento de Serviço Social daquela universidade, observou a prática e o discurso da polícia do Distrito Federal para poder então analisar a intervenção policial no campo da prostituição, seu alvo de interesse. Na pesquisa, intitulada Polícia e Prostituição Feminina em Brasília – um estudo de caso, Marlene constatou que, no caso da prostituição, especialmente a denominada “prostituição pública”, o que se vê no Brasil é que a intervenção policial freqüentemente é solicitada devido ao fato da atividade ir contra os padrões de comportamentos morais sancionados socialmente, e não necessariamente pela existência de eventos considerados crimes pelo Código Penal brasileiro.



Segundo a pesquisadora, embora a legislação relativa à prostituição no país condene apenas a exploração sexual, isto é, a venda de serviços sexuais feita por cafetões e cafetinas e não a prostituição e as prostitutas, na prática, são as mulheres que se dedicam à atividade os principais alvos (e vítimas) das ações repressivas. Nesse contexto, ela entende que as políticas públicas devam ser orientadas no sentido da descriminalização do comércio do sexo. “Penso que essa questão deveria ser tratada na perspectiva de garantir a cidadania das mulheres prostitutas, envolvendo de modo integrado as áreas da saúde, do trabalho e da justiça e não sob o enfoque da regulamentação ou repressão pura e simplesmente”, defende.



Nesta entrevista, a pesquisadora analisa as motivações, características e impacto da intervenção policial na esfera da prostituição, fala da necessidade de se garantir a cidadania plena das mulheres prostitutas e do papel do Estado frente a esta questão.



Em sua tese a sra. analisa como se dá a atuação da polícia do Distrito Federal em relação à prostituição feminina. Essa relação é sempre complexa e conflituosa, não?



A relação contínua e sistemática entre polícia e prostituição é determinada por vários motivos, e assume diferentes características e contornos em virtude da situação que a fomenta. Isto ocorre porque, embora a prostituição não seja considerada crime, em nosso Código Penal, seu exercício produz “incômodos” muitas vezes enquadrados como atentatórios contra a ordem pública – esta sim uma contravenção penal, passível de ser coibida legalmente. O mesmo ocorre com a exploração da prostituição que, juntamente com a promoção da prostituição e a obstaculização da saída de quem nela se encontre, constitui o que a legislação penal define como crime de lenocínio. Ou seja, a distinção entre uma e outra situação não está dada a priori. Ao contrário, se estabelece na mediação realizada pela polícia – num primeiro momento – e pela justiça, em definitivo, e é fonte permanente de conflito entre policiais e prostitutas. Neste contexto, a polícia pode aparecer como protetora ou algoz para as mulheres que exercem a prostituição. Este lugar – ou papel – varia em função de uma série de fatores, assim como varia também a percepção acerca do significado da ação policial – proteção ou agressão – na perspectiva de prostitutas e de policiais, envolvidos num mesmo evento.

A polícia brasileira, assim como a polícia norte-americana, é instada a atuar em uma série de questões que, embora não tenham relação com crimes sérios, habitualmente exigem a intervenção policial porque afetam a ordem pública e o sentimento de medo da comunidade. No caso da prostituição, especialmente a denominada “prostituição pública”, o que se constata no Brasil é que a intervenção policial freqüentemente é demandada devido à atividade ir de encontro aos padrões de comportamentos morais sancionados socialmente, ainda que ela não se inclua entre os eventos considerados crimes pela legislação criminal. Ou seja, a intervenção da polícia brasileira no âmbito da prostituição está associada tanto à suspeita de existência do crime de lenocínio quanto a conflitos relacionados à perturbação da ordem pública que, embora não se caracterizem como crimes, estão em sua esfera de atuação.

O que a sra. pôde constatar através da pesquisa?



Com a realização do trabalho foi possível constatar que a intervenção dos policiais se dava, freqüentemente, em virtude de conflitos interpessoais, não relacionados, necessariamente, à existência de qualquer delito. Ou seja, o alvo da intervenção policial, muitas vezes, na prática, era a prostituição em si e não sua exploração – que o Código Penal Brasileiro tipifica como crime de lenocínio. A atuação da polícia estava marcada pela discricionariedade, a qual era fortemente influenciada, entre outros fatores, pelo imaginário de gênero e pela abordagem moralista da prostituição. A pesquisa mostrou que eram esses valores e não a definição legal dos delitos relacionados à prostituição, melhor dizendo, ao lenocínio, que orientavam fundamentalmente a prática policial. Como parte desse exercício discricionário, os policiais tinham adicionalmente a possibilidade de construir o crime e o criminoso. Entretanto, tal poder se esvaía concomitantemente ao encerramento do inquérito policial e a transferência da ação para o âmbito do Judiciário. Há que se destacar, por fim, que os contornos assumidos pela prática da polícia na esfera da prostituição são influenciados também e sobremaneira pelo estigma e abjeção que atingem policiais e prostitutas e perpassam tensamente essa relação.



No Brasil, são cada vez mais freqüentes as operações policiais de repressão à exploração sexual. Em seu trabalho, a sra. questiona que essas ações repressivas acabam por vitimizar exclusivamente as mulheres que se dedicam à atividade da prostituição. Essas ações são discriminatórias? O que fazer para garantir a cidadania das mulheres prostitutas?



Ao reservar lugar de destaque ao sistema de justiça criminal e dentro deste, ao aparato policial, até os dias atuais, a ação do Estado Brasileiro referente à prostituição revela que prevalece em larga medida a perspectiva do controle e da administração da atividade, embora sem desaguar propriamente na formulação de uma política pública. Essa tendência associa-se em grande medida à prevalência da percepção da prostituição enquanto um “mal” – necessário, é bem verdade, mas um mal que deve ser mantido sob estreita vigilância e controle para não colocar em perigo a sociedade. Essa situação, além de negar o reconhecimento das prostitutas como cidadãs de direitos e contrapor-se frontalmente ao quadro construído no âmbito das políticas de saúde, vai de encontro às alternativas construídas mais recentemente que, em consonância à “abordagem pragmática, guiada pelo princípio de custo-benefício”, buscam organizar um sistema político baseado na tolerância e compromisso.

É fundamental distinguir quando o que se reprime é a prostituição e quando o foco é a exploração sexual. Porque, no dia a dia, a ação policial nessa esfera, embora se ancore no discurso de combate à exploração sexual, resulta em prejuízos fundamentalmente para as mulheres e homens que exercem a prostituição – independente de se configurar a existência ou não do crime. Seja pelo constrangimento de serem mantidos por horas a fio em Delegacias insalubres, a fim de serem ouvidos na ocorrência, seja pela inutilidade legal da ação policial, decretada pelo judiciário em seus posicionamentos nos processos dessa natureza. Creio que há que se fazer uma discussão pautada em outras premissas, nas quais as mulheres prostitutas e suas entidades representativas participem efetivamente enquanto cidadãs e sujeitos de direitos e não objeto de ações pretensamente salvadoras.



O Ministério Público analisa a possibilidade de propor uma ação civil pública pedindo o fechamento de estabelecimentos nos quais a atividade é realizada. Qual seria, em sua opinião, o verdadeiro papel do Estado frente a essa discussão? Cabe ao Estado reprimir o “sexo comercial”?



Para mim não cabe ao Estado reprimir ou regular o sexo comercial. Ao Estado cabe prover políticas sociais que garantam às mulheres condições para se constituírem autonomamente. No caso daquelas que exercem a prostituição, o direito a um tratamento digno assim como à segurança devem ser reconhecidos como deveres das instituições públicas – assim como o são para os demais cidadãos. Além disso, é fundamental existir oportunidades concretas para que a saída da prostituição, caso seja desejada, se torne realmente possível. O que implica, como pré-condições básicas, o acesso à educação, formação profissional, inclusão produtiva e inserção laboral.



Muitos acreditam que a repressão esconde, na verdade, motivações macropolíticas, e que estas operações estariam relacionadas à influência do governo Bush entre nós, através dos programas financiados por agências governamentais americanas. A sra. acredita que exista algo mais por trás dessas ações, criadas a priori com o objetivo de combater a exploração sexual de crianças e adolescentes?



Não acredito em análises desse tipo. O que me parece relevante é fazer essa discussão sem falsos moralismos ou perspectivas simplistas. A existência de uma indústria do sexo é real, movimenta bilhões e, muitas vezes, está associada à organizações ou práticas de crimes. O tráfico para fins de exploração sexual, muitas vezes envolvendo crianças e adolescentes, assim como a pedofilia e outros crimes no ciberespaço são também parte dessa realidade. Não se pode ignorar, entretanto, as mulheres e homens adultos que, em diferentes países, reivindicam o direito de exercerem a prostituição como “um trabalho como outro qualquer” e ser respeitados em seus direitos de cidadãs e cidadãos trabalhadoras/es. Há uma série de questões que se articulam e que, por outro lado, não podem ser tomadas como sinônimos. Do meu ponto de vista, esta é, em verdade, a questão central posto que, em grande medida, falar sobre a prostituição na atualidade ainda é falar sobre o bem e o mal, continuando a questão a ser permeada pelo moralismo.

O cenário que determina a inserção social estigmatizada das prostitutas se caracteriza pela continuidade de práticas e relações sexuais e sociais desiguais e opressivas e inclui ainda a pauperização crescente das mulheres, as desigualdades nas relações de gênero, a violência masculina e o acesso diferenciado de homens e mulheres à educação, saúde, emprego, renda, e oportunidades de qualificação profissional.

De igual modo é fundamental atentar para a diversidade em que a prostituição se concretiza. Isto por que as diferentes modalidades de prostituição acarretam uma série de diferenciais nas condições encontradas pelas mulheres que se dedicam à atividade. Há que se considerar, entretanto, que se a inserção diferenciada das mulheres, em uma ou outra modalidade de prostituição, determina sua maior ou menor exposição à discriminação e ao preconceito, a revelação da condição de prostituta tende a igualá-las em termos do estigma a que são submetidas. Nesse sentido, todas as mulheres que se dedicam à prostituição se defrontam em maior ou menor intensidade com tal situação, independente de qual modalidade se inserem. Ou seja, se de um lado se registrou uma mudança no cenário e entre atores presentes no debate acerca da prostituição, a situação de discriminação e violência policiais e a exclusão social das mulheres que viviam da atividade são questões e desafios a serem enfrentados. Esperamos que isso ocorra, numa perspectiva distinta daquela que se deu entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX.