CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Números estratégicos

Por Fábio Grotz

O Ministério da Saúde brasileiro divulgou no final de maio pesquisa que apontava uma redução de 21% na mortalidade materna de 2010 para 2011. De acordo com os dados, de janeiro a setembro de 2010, houve 1.317 óbitos, enquanto que no mesmo período de 2011 foram registradas 1.038 mortes.

Os números foram apresentados em reunião da Comissão Intersetorial da Saúde da Mulher (Cismu/Conselho Nacional de Saúde) pelo ministro Alexandre Padilha. Segundo o ministro, a marca é um fato histórico e deve ser creditada ao Programa Rede Cegonha, lançado ano passado e cujo alvo é a saúde materno-infantil. De acordo com o ministério, a Rede Cegonha atende atualmente a 36% das gestantes atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e no ano passado, 1,7 milhão de mulheres realizaram pelo menos 7 consultas de pré-natal.

A mortalidade materna no Brasil tem apresentado queda nos últimos anos, diante da crescente atuação do Estado, que expandiu os serviços de atendimento à gestante. No ano 2000, o Brasil comprometeu-se com as metas do milênio propostas pela Organização das Nações Unidas (ONU). A iniciativa estabelece que, até 2015, o Brasil reduza para 35 mortes de parturientes para cada 100 mil nascidos vivos. De 1990 a 2010, o país experimentou redução de 120 para 56 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos, conforme relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No entanto, a pesquisa divulgada pelo Ministério, apesar da política de enfrentamento da morte materna, deve ser vista com reservas, segundo a médica e demógrafa Sandra Valongueiro, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPe). “É uma redução muito alta para tão pouco tempo. Parece estar antes de tudo ligada a uma estratégia política do governo federal”, critica Valongueiro, que integra o Comitê Estadual de Mortalidade Materna de Pernambuco.

Em entrevista ao CLAM, Sandra Valongueiro chama a atenção para os problemas existentes no gerenciamento de informação dos óbitos e para o modelo de saúde da mulher idealizado e promovido pelo governo federal.

O que os dados do Ministério da Saúde dizem?

Em primeiro lugar, os dados referem-se a números absolutos cotejados entre 2010 e 2011. São informações quantitativas que não nos permitem tirar conclusões consistentes. O que os números dizem é uma queda no número absoluto de óbitos, não uma queda no indicador de mortalidade materna.

Então, a comemoração do governo deve ser vista com reserva?

Sim, não podemos tomar estes números da maneira que nos foi apresentada. Parece que há uma estratégia política do governo, que, de forma ufanista, tem tentado atrelar índices às suas políticas públicas. Antes de comemorar, é preciso olhar mais atentamente a realidade para ver o que realmente acontece com as mulheres pelo país.

E o que acontece?

Temos um modelo de gerenciamento dos dados e das investigações sobre morte materna deficiente. Nos últimos anos, melhoramos a qualidade da informação, mas a administração do fluxo dos registros é lenta. Quando morre uma mulher, de acordo com a portaria 1.119/28, o hospital deve informar o óbito à secretaria municipal de saúde, que então repassa ao Ministério da Saúde, em até 48 horas. No entanto, não vemos isso acontecer plenamente.

Há, então, um problema de registro das mortes na ponta do sistema?

Sim, embora a abrangência do sistema de acompanhamento dos óbitos tenha melhorado. Penso que o problema principal é a lentidão como tais dados são repassados ao Ministério. Em municípios menores, muitas vezes tais dados nem chegam a ser transmitidos. Isso é um problema grave, que compromete o mapeamento da mortalidade materna. Os dados vêm, sobretudo, de municípios maiores. E os menores? O Brasil não é feito apenas de centros urbanos. Há milhares de cidades que ficam à margem do sistema de registro dos óbitos maternos. Portanto, comemorar redução de mortalidade materna no Brasil é uma questão delicada, pois não há um acompanhamento pleno sobre o que ocorre na imensidão do país.

O governo federal tem privilegiado suas ações na área da saúde da mulher através da Rede Cegonha. Inclusive, o ministro associou a queda de 21% ao programa. É uma explicação razoável?

No entendimento do ministro, faz sentido tal associação, se levarmos em conta que o governo tem na Rede Cegonha o carro-chefe para a questão da saúde da mulher. Mas, na minha opinião, é uma explicação imprecisa, pois a Rede Cegonha ainda não está presente em muitos municípios no país.

A mortalidade materna no Brasil tem caído nos últimos anos. É um processo lento e, sobretudo, conforme vai caindo, torna-se ainda mais difícil reduzi-la. Os investimentos têm aumentado ao longo dos anos, assim como a abrangência dos serviços de pré-natal. A diminuição da fecundidade também é um fator importante, pois quanto menos gravidezes, menos exposição das mulheres aos riscos. Mas temos alguns problemas no modelo de saúde voltado à mulher que colocam em dúvida o ufanismo do governo federal.

Que tipo de problemas?

Nosso modelo de assistência obstétrica está centrado no médico. E, como é de conhecimento público, não apenas faltam médicos como eles estão distribuídos irregularmente no país. Eles estão concentrados nos centros urbanos, o que prejudica a qualidade do atendimento nas cidades menores. A mulher do interior muitas vezes precisa ir para a cidade grande para parir. É uma trajetória complicada que aumenta os riscos de morte materna.

Além disso, o fato de apenas o médico ser a figura responsável pelo parto é uma questão para reflexão. Deveríamos ampliar o pessoal apto para o parto, como as enfermeiras. E, mais do que isso, nosso modelo de assistência ao parto está centrado no hospital, o que é uma questão problemática. Temos muitos problemas para tanta comemoração.

O governo federal tem apostado na maternidade como o elemento central da saúde da mulher, o que tem gerado muitas críticas do movimento feminista quanto à negligência a outros eventos da vida sexual e reprodutiva da mulher. Como tal orientação do governo reflete-se na vida das brasileiras?

É uma maneira reducionista de encarar a questão da saúde reprodutiva que torna ainda mais vulnerável a situação das mulheres. O ministro Alexandre Padilha tem continuamente batido na tecla da redução da morte materna face às metas do milênio. Para reduzirmos os índices atuais, que estão longe das metas, o governo precisa se esforçar mais. Tenho certeza de que uma redução consistente da mortalidade materna passa antes pelo resgate da visão integral da saúde da mulher do que pela comemoração de números. A vida de uma mulher não se reduz ao papel de mãe. Como fica a questão do aborto para o governo?

É um tema que o governo tem evitado, não?

Sim, e faz parte desta estratégia do governo de focar a saúde da mulher na questão da maternidade. É uma orientação conservadora. Não sou contra o governo incrementar os serviços de saúde materno-infantil. Mas não podemos ficar apenas nisso. O Ministério da Saúde, é preciso reconhecer, tem dado atenção à saúde feminina. O foco, entanto, precisa ser ampliado. Do contrário, penso que enfrentaremos muitas dificuldades e uma longa trajetória na redução da mortalidade materna.