O tema tem sido recorrente na mídia brasileira: reportagens denunciando crimes, rotulados como pedofilia, que envolvem pornografia na internet com adolescentes e crianças. A amplitude de operações policiais tem caracterizado uma espécie de cruzada antipedofilia, que se espraia por diversas instituições e espaços. A rotina midiática revela como a noção de pedofilia é uma construção simbólica, matizada em múltiplos planos que envolvem desde a definição, penal e médica, do que é ser pedófilo, passando pelo trabalho policial e legislativo em relação ao tema, até a configuração que a categoria assume na sociedade. Nessa dinâmica, discursos jurídicos e psiquiátricos se articulam com concepções morais e políticas sobre sexualidade e infância, resultando em uma realidade em que o desejo por si só torna-se potencialmente perigoso.
O processo de elaboração social da pedofilia foi o tema central da tese de doutorado “O monstro contemporâneo: construção social da pedofilia em múltiplos planos” (disponível aqui), defendida no início deste ano no Museu Nacional (UFRJ) pela antropóloga Laura Lowenkron, cujo envolvimento com questões do campo da sexualidade já vinha desde o mestrado, quando estudou os processos de regulação das relações sexuais intergeracionais envolvendo menores no mundo contemporâneo. O período de planejamento e realização da pesquisa de doutorado coincidiu com a operação Carrossel (2007), da Polícia Federal, destinada a combater a pornografia infantil na internet. No início de 2008, foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pedofilia, no Senado, voltada também para a investigação dos chamados “crimes de pedofilia” na rede mundial de computadores e para a busca por alternativas penais para a situação.
Acompanhando in loco os trabalhos da polícia e da CPI, Laura Lowenkron desenvolveu uma etnografia com o intuito de esmiuçar quais os elementos simbólicos e políticos que se articulam na produção da pedofilia enquanto um problema social. O que seria a pedofilia? Qual o papel da pornografia infantil no jogo simbólico de construção deste problema social? Quais as forças e instituições que prevalecem para demarcar as fronteiras conceituais da pedofilia? O trabalho da pesquisadora revela que a pedofilia está longe de ter uma unidade conceitual. Nos tempos atuais, é um termo polissêmico. De acordo com a Laura Lowekron, a pedofilia, atualmente, é uma categoria social englobante, fluida, que congrega distintos sentidos e delitos envolvendo crianças e adolescentes.
Para Laura Lowenkron, nesta entrevista concedida ao CLAM, a definição de pedofilia, nos marcos atuais, e a consequente cruzada contra esta categoria situada entre a patologia e o crime impõem alguns problemas, dentre os quais o fato de que se tem protegido menos as crianças de carne e osso do que um ideal de infância. “Há outras relações de força e desigualdade que atingem adolescentes e crianças que passam despercebidas”, afirma Laura Lowenkron.
Confira abaixo a entrevista.
Em sua pesquisa, que processos você observou na construção dos significados da relação sexual com crianças e adolescentes?
A questão da pedofilia enquanto problema social é um processo genealogicamente construído. Isto é, há uma construção histórica que chegou até os dias atuais e resultou na noção de monstruosidade. Houve uma série de deslocamentos nas concepções sobre infância e também nas formas de regulação social e jurídica da sexualidade.
O que aparece como um problema contemporâneo, independente da categoria ou nomenclatura classificatória, é a violência sexual contra a criança, visto como um problema dramático, extremo. O historiador francês Georges Vigarello, que trabalha com a história do estupro, fala que a violência sexual é a violência do nosso tempo. Ela não existia, ou seja, a questão dos desvios sexuais não era vista como uma questão de violência. Eram desvios morais, que atentavam contra a moralidade pública, contra os valores da família, religião e contra a honra masculina. Era uma ofensa contra os valores da sociedade.
Em determinado momento histórico, durante o Iluminismo, o indivíduo passa a ser o valor central. A concepção do sujeito dotado de autonomia e liberdade foi a condição de possibilidade histórico-filosófica para que emergisse a ideia de violência sexual. No plano político, a ideia de violência sexual se torna mais evidente e passa a integrar a agenda social com a mobilização dos movimentos sociais, especialmente o feminista e o homossexual, nas décadas de 1960 e 1970. Eles passam a dizer que a questão central para definir a legitimidade de um comportamento sexual é o consentimento, que diz respeito à autonomia e à liberdade dos indivíduos. É na esteira desses movimentos que surge, mais recentemente, a concepção de direitos sexuais, um novo regime de regulação jurídica da sexualidade que tem como principal modelo normativo não mais o sexo heterossexual e reprodutivo, mas o sexo responsável, seguro e consentido.
E de que forma crianças e adolescentes foram integrados a tal modelo de regulação?
Esse processo faz com que crianças e adolescentes, que não são considerados sujeitos plenamente livres e responsáveis, não fossem vistos como aptos a consentir com discernimento suficiente. Portanto, são merecedores de uma atenção particular que envolve comportamentos sexuais. São sujeitos que devem ser protegidos. São sujeitos de direitos especiais, que, por um lado, tem algum nível de autonomia, mas, por outro, exigem tutela.
O que predomina especialmente no campo da sexualidade é a proteção. No contexto em que há, de um lado, cada vez mais liberalização sexual, e, do outro, maior atenção à sexualidade de crianças como uma questão problemática e potencialmente perigosa, algumas correntes mais conservadoras conseguiram trazer para o plano político a ideia da ameaça das perversões. No plano político, a questão dos direitos da infância e da violência sexual infantil foi se consolidando na agenda internacional. Por causa de movimentos conservadores, a agenda foi invadida pela noção de pedofilia. Eles deslocaram a atenção da questão das desigualdades, do abuso e da exploração, para a noção das perversões.
A pornografia infantil, então, serviu como um dos meios para justificar a lógica das perversões que dão um sentido social à pedofilia?
Sim, embora não seja o único elemento utilizado para definir pedofilia. O combate à pornografia infantil na internet acompanhou o processo de surgimento e desenvolvimento rápido das novas tecnologias. Os órgãos da lei intensificaram as operações, tornando pública a questão da sexualidade infantil e jovem. Isso abriu espaço para novos temores sexuais, novos pânicos sexuais ou morais, manejados por setores conservadores. A sexualidade infantil é uma porta de entrada privilegiada para tais discursos, porque se outras formas de comportamentos sexuais ganharam legitimidade política, a questão da relação com crianças é unânime de que é um problema.
Tais discursos estão articulados a outros eventos e ganham sentido e relevância no contexto histórico. Antes da CPI da Pedofilia, tiveram outras comissões parlamentares que trabalhavam com a temática da infância e da sexualidade. No início dos anos 1990, teve uma CPI da Prostituição Infantil; no início dos anos 2000, houve a CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Desde o final dos anos 1990, o governo e organizações da sociedade civil promovem campanhas nacionais contra o abuso e a exploração sexual infanto-juvenil no país, associadas à agenda política mais ampla dos direitos das crianças e dos adolescentes. Então, outras categorias aparecem para cruzar infância e sexualidade.
A categoria pedofilia é recente, popularizou-se no campo político após a CPI da Pedofilia, cujos trabalhos centraram-se fortemente na pornografia infantil. Dessa forma, novos sentidos para a pedofilia foram articulados, mostrando como seus significados são fruto de contingências e processos históricos.
Que outros elementos dão inteligibilidade social para a pedofilia?
Não é só por meio da pornografia que se conceitua pedofilia. A pedofilia é uma categoria ampla. Muitas vezes eu leio sobre “crimes de pedofilia” na imprensa, mas não sei especificamente do que se trata, se é exploração sexual comercial, abuso sexual ou pornografia de menores de 18 anos na internet.
A pedofilia, originalmente, é uma categoria da psiquiatria utilizada para designar a presença de desejos e fantasias sexuais envolvendo crianças pré-púberes, que podem ou não se atualizar em comportamentos definidos como criminosos. Socialmente, no entanto, de acordo com pesquisa que fiz com material de mídia impressa, vi como a pedofilia surgia associada a abuso sexual infantil quando perpetrado por pessoa de status social elevado ou por estrangeiros. Era assim que abuso sexual se confundia com pedofilia. Eram médicos, advogados, padres, políticos e turistas. Quando o abuso se dava dentro da família, o termo pedofilia não era acionado. Aparecia abuso sexual ou estupro.
Há vários núcleos verbais para definir pedofilia. Podemos falar de um conceito polissêmico, não apenas geracional, mas também relativo a espaços nos quais ocorre?
Sim. E é interessante ver como a pornografia infantil ganha notoriedade tão evidente. As preocupações em torno da pornografia tendem a ser baseadas em um borramento das fronteiras entre representações visuais, fantasias e atos sexuais. A pornografia infantil se destaca por ser um indício de interesse erótico por criança. Quem produz ou consome as imagens teria uma atração sexual por crianças. Ou seja, o olhar do pedófilo já é, em certo sentido, um ato criminoso, concepção que tem a ver com a explicação patológica para a pedofilia – a presença de desejo e fantasia envolvendo crianças pré-púberes. A pornografia é um indício de pedofilia; no âmbito criminal, é um indício de periculosidade, o que justifica a atuação das forças policiais para deter aquele que é potencialmente um abusador de crianças. Essas coisas acabam se misturando e contribuem para uma concepção fluida da pedofilia. Uma categoria que eu chamo de englobante, que, inclusive, não está prevista no nosso Código Penal e nem no Estatuto da Criança e do Adolescente, que estipulam diversos crimes sexuais envolvendo crianças, mas não utilizam a categoria pedofilia.
Houve um projeto de lei que tinha como o objetivo criar o crime de estupro mediante pedofilia, que seria o que hoje é o tipo penal do estupro de vulnerável, que criminaliza práticas sexuais com menores de 14 anos. A proposta desatou uma grande discussão sobre se seria adequada a inclusão da categoria de pedofilia em uma lei penal. Não prosperou, pois haveria problemas jurídicos ao classificar como crime uma categoria da psiquiatria: a lei penal condena comportamentos, atos; não se pode condenar traços da personalidade.
A condenação de traços da personalidade ou de desejos que embasa um dos sentidos da pedofilia é uma noção bastante foucaultiana, não?
Sim, está ligada às diversas formas de controle e vigilância da vida em suas diversas dimensões, como a psiquiátrica e a médica. Tais formas de controle ganham sentido também por meio de classificações jurídicas. Existe todo um esforço para se justificar a criminalização. O argumento é que a pornografia está ligada ao abuso sexual de crianças, que tais imagens alimentam a tara do sujeito. Minha tese é de que o que efetivamente fundamenta as regulações sobre pornografia é o medo dos perigos que certas fantasias e desejos sexuais representam.
Em relação à pornografia infantil, as condutas tipificadas criminalmente são produzir, vender, divulgar, possuir, armazenar pornografia infantil. Na linguagem comum e mesmo no discurso de autoridades públicas, esses diferentes atos são vulgarmente definidos a partir da noção englobante de “crimes de pedofilia”. Por que tais condutas e desejos devem ser penalizados? Fui atrás das lógicas que justificam tais medidas. A produção é mais evidente, porque a produção da pornografia infantil está ligada diretamente ao abuso. Agora, em relação à posse ou armazenamento, entramos no terreno do borramento, em que está se presumindo que possuir tais imagens equivale a enquadrar o sujeito como virtual abusador.
Outro argumento que também entra em cena para punir os consumidores é de ordem econômica. As pessoas que consomem as imagens alimentariam uma cadeia que envolve abuso de crianças. A demanda e a oferta, nesse sentido, se articulam na manutenção de uma rede de abuso sexual infantil e um mercado de exploração sexual comercial de crianças.
Como que se dá a análise das imagens?
Na prática, para afirmar que uma imagem é pornografia infanto-juvenil, é necessário identificar as pessoas que estão na cena. Isso é muito incipiente, pois é difícil localizar as pessoas presentes na cena, já que as operações policiais se baseiam em imagens que circulam na internet, que na maior parte das vezes não se sabe de onde originalmente vieram. A idade dos jovens é definida pela aparência. Este critério tem que ser categórico e mostrar inquestionavelmente que há um jovem menor de idade. Uma possibilidade só possível em corpos impúberes. O que predominantemente se faz é investigar o crime apenas quando as crianças que participam das cenas pornográficas podem ser consideradas inequivocamente como tais pelas imagens.
O que eu fiz foi uma etnografia do olhar, para tentar ver como os policiais analisavam as imagens. Isso é parte fundamental da construção do problema, pois a pedofilia é resultado de operações simbólicas e administrativas cotidianas.
Quais os efeitos que a cruzada antipedofilia, baseada nesse jogo polissêmico de sentidos, tem na prática?
Analisando a genealogia e as agendas relacionadas à questão da violência sexual contra crianças, eu percebi que houve, a partir da problemática da pedofilia pelo viés da pornografia, um deslocamento da atenção política, que antes estava mais direcionada à questão das desigualdades, das vulnerabilidades e à estrutura patriarcal que torna mulheres e crianças mais suscetíveis à violência. No momento atual, com a noção de pedofilia, houve um redirecionamento do eixo simbólico que organiza os sentidos da violência sexual contra crianças para a ameaça das perversões. Entretanto, essa cruzada antipedofilia acaba por proteger menos as crianças de carne e osso do que um ideal de infância. As imagens, muitas vezes chocantes, trazem uma representação poluída da infância, maculando um ideal historicamente construído sobre essa etapa da vida associada à pureza e à inocência infantil. Essas violações são compreendidas, portanto, mais sob a ótica da idealização moral da infância do que dos direitos. Há uma ênfase no aspecto da monstruosidade, e não apenas em relação aos que cometem a violência. As crianças que aparecem como vítimas nas cenas pornográficas também são vistas, de certa maneira, como pequenos monstros, ao serem representadas como infâncias pervertidas e perigosamente sexualizadas. A infância torna-se monstruosa. Talvez não seja esse o caminho mais adequado para se garantir os direitos de crianças e adolescentes.
A ênfase na inocência acaba por aumentar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes em relações sexuais intergeracionais e outras interações assimétricas, tanto por desviar o foco de outras formas de abuso, de outras relações de poder que não passam necessariamente pela sexualidade, quanto por excluir do direito de proteção meninas e meninos que já perderam a “pureza infantil”, como temos visto em algumas decisões judiciais. Dessa forma, acaba-se por aumentar as assimetrias entre adultos e crianças e também entre infâncias.