Trânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo (CLAM/EdUerj)
De Adriana Piscitelli (Pagu/Unicamp)
A inserção de brasileiras nos mercados internacionais do sexo tem adquirido crescente destaque no debate público, especialmente depois que o assunto – infelizmente associado exclusivamente ao tráfico de pessoas – virou tema central de uma telenovela exibida em horário nobre no Brasil. A inquietação da antropóloga Adriana Piscitelli em relação ao assunto, no entanto, começou bem antes do tema se tornar inspiração – mesmo que longe da perspectiva da autonomia e da livre escolha feminina – de uma obra ficcional. Na década de 1990, ao observar o aumento da prostituição voltada para turistas estrangeiros e o deslocamento de mulheres brasileiras de diversas regiões para trabalhar como prostitutas em países europeus ou nos que fazem fronteira com o Brasil, Piscitelli iniciou pesquisas em países do sul da Europa para compreender os diferentes aspectos do fenômeno. Os principais resultados desses estudos estão reunidos no livroTrânsitos: Brasileiras nos mercados transnacionais do sexo, publicado pelo CLAM e pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (EdUerj) na coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade.
Como uma obra ficcional lança mão do melodrama para atrair a atenção de seu receptor, as trajetórias das protagonistas vítimas do tráfico mostradas na telenovela são diferentes da saga das protagonistas reais mostradas no livro. E é aí que está o mérito da obra de Piscitelli. O livro desconstrói conceitos e associações – entre os quais tráfico internacional de pessoas e migração – e revela como suas protagonistas (as da vida real) ressignificam seu capital social (o corpo) e os estereótipos de brasilidades em busca de seus sonhos.
Logo no início do livro o leitor percebe a diferença entre deslocamentos no mercado de sexo – objeto de estudo da autora – e o alardeado tráfico de pessoas, e é apresentado aos problemas que podem advir dessa associação. O livro mostra como a vinculação entre mobilidade (ou migração) de mulheres para exercer a prostituição e o tráfico internacional de seres humanos tem tido efeitos de diferentes alcances: como a promulgação de leis que, visando “proteger potenciais vítimas”, acabam por incidir sobre a atuação de pessoas no trabalho sexual e na migração, atingindo particularmente os/as migrantes não documentados/as.
Um aspecto a ser destacado é o da agência feminina – termo identificado com expressões como autonomia, livre escolha e livre arbítrio –, que distancia a imagem da mulher que se desloca para se dedicar a atividades no mercado transnacional do sexo a fim de melhorar de vida daquela imagem de “mulher-vítima traficada”. Uma parte das mulheres que relatam suas experiências no livro circula entre o Brasil e a Europa. De acordo com os relatos apresentados, na maior parte das vezes, é a irregularidade dos documentos ou a meta de acumular recursos que limita a possibilidade deste trânsito. Como quaisquer outros/as migrantes brasileiros/as, elas mantêm estreitos laços com o Brasil. Seus projetos de futuro, sustenta a autora, incluem o retorno, em algum momento distante, ao país de origem e revelam o projeto de investimento em um modo de proteção social individual e familiar que se manifesta na aquisição de bens no Brasil e, muitas vezes, na formação de uma poupança que lhes garanta uma velhice tranqüila.
Uma delas adquiriu terras e gado em sua cidade natal no Brasil, através do dinheiro ganho em seu trabalho na indústria do sexo na Espanha. Seus planos para quando voltar incluem ter uma renda de 5 mil reais por mês da venda de leite e alugar casas para ter a aposentadoria assegurada.
A maioria das mulheres retratadas no livro reconhece e honra as obrigações familiares. Os envios de dinheiro e presentes são feitos a pessoas com diferentes graus de parentesco, que podem variar de filhos a sobrinhos. ”Envio dinheiro todos os meses. Sustento todos os gastos da casa, onde moram minha mãe, meu pai e minha irmã. Além disso, pago uma casa que comprei. Como mínimo, envio 800 euros. 600 para pagar o aluguel, os gastos deles, essas coisas e 200 euros para a casa que comprei, são parcelas de pouco valor”, diz uma das entrevistadas.
À época da pesquisa da autora, o contato telefônico era o meio mais utilizado para interferir na vida dos familiares do outro lado do oceano. Por meio dele, destaca Piscitelli, elas faziam parte da vida cotidiana no lugar de origem, interferindo regularmente na vida das pessoas que ajudavam. Um exemplo disso é o relato da entrevistada que comprou uma casa para que sua mãe, a filha e a irmã morassem juntas:
”Minha mãe se juntou com um homem mais jovem que ela. Obriguei ela botar ele para fora da casa. Eu comprei a casa!!! E disse a ela, um dia ele acorda, te olha, que você já é velha e olha para minha irmã ou minha filha, que são novinhas, e o que acontece? Quem é que ele vá querer?”
As narrativas remetem a ganhos que vão além da dimensão material e familiar. Os deslocamentos femininos na indústria do sexo no exterior também conferem a essas mulheres a ampliação do seu universo cultural, o que lhes possibilita, de acordo com os relatos do livro, uma revalorização pessoal no Brasil. ”Você fazendo a prostituição aqui você aprende muita história, muita cultura diferente (…) Porque você convive também com os franceses, com os ingleses, com alemães, com os gregos. Então, quando eu saio daqui e vou para o Brasil e você começa a conversar com as pessoas, você vai vendo a grandeza que você tem em termos de cultura, entende? Que você aqui fora, você aprende muito”.
A experiência nos contextos migratórios lhes confere também a possibilidade de ocupar novas posições na hierarquia de gênero. Isso fica claro no relato de uma entrevistada que oferecia serviços sexuais nas ruas de Barcelona: ”Agora não vou querer ter só um homem, agora eu vou querer ter o que eu queira… Que a gente lava, passa, cuida e eles sempre estão atrás de busca de outras. Não, eu agora quero que ele lave, passe para eu usar. Agora minha cabeça mudou, eu agora já disse a ele, agora aquela que tu conheceu é outra. Agora quem dá as cartas sou eu”.
Com a crise na Europa, várias das mulheres retratadas em Trânsitos já voltaram ao Brasil. As que permanecem na Europa têm preferido oferecer seus serviços sexuais em outros países que não a Espanha, em função da crise econômica do país. Ao final do livro, a autora se pergunta se, na nova configuração da economia mundial, o Brasil poderá atrair fluxos de trabalhadoras estrangeiras, em função de sua importância como uma das principais economias emergentes do mundo e dos eventos internacionais que o país sediará, como a Copa do Mundo de 2014.