CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O seqüestro de Santo André: questão pública e de gênero

*Aparecida Fonseca Moraes

O seqüestro que vitimou duas jovens amigas, motivado pelo inconformismo de um ex-namorado com a separação e que resultou na morte daquela que seria o seu “objeto de amor”, voltou a pautar na imprensa a questão da violência contra as mulheres. Mais do que isso, o caso coloca em debate as dificuldades do Estado, representado pela instituição policial, e da sociedade brasileira em geral, para tratar como crime e como questão de segurança pública aquelas situações de violência envolvendo homens e mulheres que mantiveram ou mantêm relações amorosas e quaisquer outras de intimidade afetiva. Além da tragédia que marcou o episódio, estiveram em cena as dificuldades das nossas instituições para operar de acordo com normas e valores universais.


Uma expectativa não explicitada, porque assentada em nossas práticas culturais, orientava boa parte das ações e a lógica da negociação com o seqüestrador até o desfecho final: a expectativa de que a solução do conflito poderia vir dos próprios atores nele envolvidos. Afinal, todos conhecidos e no caso da vítima do ex-namorado, no passado, ligados por relações de afeto. Em alguns dos momentos mais tensos com o invasor e ex-namorado, a vítima era submetida a agressões físicas, mas ainda assim, parecia se acreditar que o uso de tecnologias e de uma ação policial mais sofisticada não se justificava mediante um problema que poderia encontrar desfecho menos traumático pela via da negociação privada e informal entre conhecidos. Tal lógica, subliminarmente, transformava o crime, a transgressão, em um problema interpessoal, de caráter privado e com grandes chances de ser resolvido através de uma conversa entre amigos. Dessa forma, a proteção estatal, representada pela instituição policial, acabava por atuar na mão inversa à da negociação pública, impessoal e normativa na medida em que o principal caminho para a solução do crime retornava à cena privada, à casa e aos personagens que nela se encontravam.

Pesquisas qualitativas sobre casos de violência conjugal e entre parceiros íntimos que chegaram a percorrer o fluxo do sistema de justiça-criminal no Brasil mostram, através de diferentes nuances, que os encaminhamentos dos casos tendem a ser tratados por uma perspectiva de conciliação que tem conseqüências singulares, e por vezes dramáticas, nos casos específicos dessa violência. Mostram também que, apesar de se tornarem públicos, através do registro policial, os casos de violência contra as mulheres nas famílias e entre parceiros íntimos se deparam com muitos desafios para ser interpretados como questão de segurança a ser resolvida pelo Estado. São tipos de casos que entraram no universo das políticas públicas, mas que ainda geram um desconforto moral frente à visão de que as polícias e a justiça têm tarefas e prioridades significativamente mais complexas na prevenção e combate ao crime.

No caso do seqüestro em Santo André, especialistas e a opinião pública em geral vêm elencando um conjunto de “falhas” que teriam contribuído para acabar invertendo o papel de proteção da polícia. Dentre estas, o fato da polícia não ter valorizado suficientemente a tipologia passional do seqüestro, casos recorrentemente empreendidos por agentes “mentalmente perturbados” e cujas ações são “imprevisíveis”. No que se refere à discussão sobre a preparação e formação das nossas instituições policiais, defendo que existe uma questão mais significativa. Não se trata da polícia ter sido surpreendida com os atributos individuais do criminoso, não levando em conta o tipo lombrosiano passional, destituído de razoabilidade e lucidez. Aliás, é importante lembrar, no Brasil a tese do crime passional se tornou assunto político e alvo de críticas de influentes segmentos, como os movimentos feministas, no início dos anos 80 e hoje não encontra mais atenuantes em muitos dos nossos Tribunais. A questão é que se este, desde o início, fosse interpretado como um crime que envolve relações de gênero, as ações levariam em conta, preventivamente, a alta probabilidade do desejo de posse do autor transformar em vítima fatal aquela que ele via como sua propriedade e destituída de escolhas. Tal possibilidade de desfecho é, portanto, previsível, quase um comportamento padrão em situações de transgressão onde os autores radicalizaram a sua posição de poder. Não se tratava, com isso, dos atributos patológicos e imprevisíveis do indivíduo, mas do curso de uma ação motivada e orientada pela lógica da dominação de gênero, uma ação com desfecho anunciado.

As “falhas”, portanto, parecem estar profundamente enraizadas numa cultura que permanentemente reforça o particularismo das situações e o status privado da violência que vitimiza mulheres, no contexto de suas experiências amorosas. O problema é que, assim como se ressentem muitos policiais que trabalham em delegacias especializadas de atendimento à mulher, do ponto de vista da formação, tanto profissional quanto em toda base educacional, não estamos suficientemente preparados para identificar e agir sobre a violência que se funda nas relações de gênero.

*Aparecida Fonseca Moraes é socióloga, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero (Neseg/IFCS/UFRJ)


Clique aqui e leia também o artigo “Eloá – a morte anunciada”, escrito pela Secretária-Executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Analba Brazão Texeira.