CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Diversidade Sexual e Legislação

Roger Raupp Rios*


O debate público sobre iniciativas legislativas acerca de temas relevantes é dinâmica salutar e imprescindível à vida democrática. O objetivo deste texto é apresentar algumas notas diante da proposta de “Estatuto da Diversidade Sexual” (a seguir referido como PEDS), elaborada no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil, a partir de diálogo acadêmico com advogados, pesquisadores jurídicos e ativistas em direitos humanos e direitos sexuais.

Sem questionar em nenhum momento a urgência e a relevância da iniciativa, almeja-se contribuir para o desenvolvimento dos direitos humanos e fundamentais em nosso ordenamento jurídico, especialmente sob o prisma do direito da antidiscriminação e dos direitos sexuais.

Estas notas são uma contribuição mais imediata e pontual para o debate, sem os rigores acadêmicos pertinentes e sem pretensão de exaustividade. Daí a ausência de indicações bibliográficas e jurisprudenciais.

Nota 1: a estrutura E SISTEMATIZAÇÃO do PEDS

O PEDS divide-se em 18 seções. É de se destacar algumas delas, bem como sua relação.

A Seção I declara os objetivos (promover a inclusão, combater a discriminação e criminalizar a homofobia), aponta os sujeitos protegidos (heterossexuais, homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais) e enuncia sujeitos passivos de deveres jurídicos (o Estado e a sociedade).

A Seção II arrola “princípios fundamentais para a interpretação e aplicação” do PEDS, trazendo uma lista de direitos.

As seções III (direito à livre orientação sexual), IV (igualdade e não-discriminação), V (convivência familiar), VI (direito e dever à filiação, à guarda e à adoção), VII (identidade de gênero), VIII (saúde), IX (direitos previdenciários), X (educação), XI (trabalho), XII (moradia), XIII (acesso à justiça e à segurança), XIV (meios de comunicação) e XV (consumo) cuidam, basicamente, de direitos nos determinados âmbitos que arrolam.

A seção XVI cuida de direito penal, a partir de um tipo penal geral de homofobia e de 3 tipos específicos (indução à violência, discriminação no mercado de trabalho e nas relações de consumo).

A seção XVII trata de políticas públicas, de forma geral.

A seção XVIII enuncia um princípio geral de aplicação da legislação mais benéfica em favor de homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais.

A estrutura do PEDS, de início, revela problemas estruturais e de sistematização. Ao invés de organizar-se de acordo com (1) a enunciação dos conceitos jurídicos próprios para a compreensão e aplicação legislativas, (2) a disciplina dos respectivos direitos envolvidos e (3) a instituição de um sistema de promoção dos direitos, o PEDS carece de sistematização legislativa, comprometendo em muito a clareza de suas normas e a compreensão dos direitos estatuídos, com evidente prejuízo para a efetividade dos direitos envolvidos.

Neste ponto, mais que dificuldade de sistematização, o PEDS revela carência estrutural, divorciando-se daquilo que já se consolidou no direito legislado nacional, por exemplo, no Estatuto da Igualdade Racial, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto do Idoso, diplomas que se estruturam, observadas suas peculiaridades e pequenas variações, de acordo com os três eixos referidos no parágrafo acima.

Estes limites, que podem se relacionar com a dificuldade de compreensão dos direitos envolvidos e com a impropriedade de técnica legislativa, revelam sua repercussão em vários aspectos do PEDS. Alguns deles serão salientados nas notas abaixo.

Nota 2: imprecisões, omissões e critérios sobre o âmbito de proteção do PEDS

O PEDS carece de precisão quanto ao objeto de proteção jurídica que visa a promover.

O artigo inaugural aponta como objetivo do PEDS proteger direitos de todos e salienta a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero. O artigo 2º arrola sujeitos de direito determinados, de acordo com orientação sexual e identidade de gênero. Todavia, não há qualquer definição jurídica sobre gênero, orientação sexual ou identidade de gênero; há, ainda, a menção a heterossexuais, que poucas vezes se encontrará ao longo do PEDS.

Além de inexistir definições sobre os conceitos de orientação sexual e de identidade de gênero, o PEDS nada esclarece quanto àquilo que diz regular (“diversidade sexual”), nem contém definições, para efeitos jurídicos, do que seja “sexo” e “gênero”, apesar de referir-se, em alguns pontos do texto, a “desigualdade de gênero” e a “discriminação por motivo de sexo”.

Não se trata de buscar consenso acadêmico sobre temas tão polêmicos nas ciências humanas, o que seria inadequado e inexigível para um texto legal. No entanto, é necessário ter clareza destes termos, como conceitos operativos, para que seja possível a efetividade das normas jurídicas estatuídas, seja para a proteção dos direitos sexuais e da diversidade sexual, seja para a segurança jurídica de todos.

Diversamente das dificuldades conceituais (que não impedem, ao contrário, reclamam, a adoção de conceitos jurídicos operativos!) quanto aos termos “sexo”, “gênero”, “orientação sexual” e “identidade de gênero”, há consenso jurídico e definição constitucional quanto ao conceito de discriminação. De fato, tanto no âmbito do direito da antidiscriminação, quanto pela incorporação, como emenda constitucional, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto º 6.949, de 2009), o direito brasileiro conta com um conceito jurídico preciso de discriminação que, todavia, necessita de melhor tratamento e compreensão pelo PEDS.

A nota seguinte traça alguns elementos para este debate específico. Antes de a desenvolver, é fundamental salientar outro elemento estrutural, do ponto de vista conceitual, a ser superado no PEDS.

O PEDS diz proteger a diversidade sexual. A par de nada esclarecer sobre o que entende como “diversidade sexual”, o texto proposto adota a técnica de elencar potenciais sujeitos de direito protegidos, sem nada dispor sobre condutas sexuais, que se incluem na diversidade sexual, que não se qualificam como identidades sexuais.

Não há qualquer menção a práticas sexuais, cuja verificação independe dessa ou daquela identidade sexual (como, por exemplo, práticas sexuais sadomasoquistas entre adultos, de modo consensual, independente de orientação sexual), ou sobre atividades artísticas ou profissionais relacionadas à sexualidade.

Mesmo dentro da enunciação identitária, o PEDS nada se preocupa sobre critérios geracionais e sexualidade, cuja interseccção, como se sabe, é ocasião de discriminação e violência, como se dá, por exemplo, quanto a direitos sexuais de adolescentes e de idosos.

Uma alternativa a esta dificuldade, que implica em alteração substancial e estrutural, a exigir a elaboração de outra proposta legislativa, poderia tomar como ponto de partida o âmbito de proteção disciplina pela Lei nº 11.872/2002, do Estado do Rio Grande do Sul, cujo texto reza:

Art. 1º – O Estado do Rio Grande do Sul, por sua administração direta e indireta, reconhece o respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidadãos, devendo, para tanto, promover sua integração e reprimir os atos atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade, preferências sexuais, exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuízos a terceiros.

§ 1º – Estão abrangidos nos efeitos protetivos desta Lei todas as pessoas, naturais e jurídicas, que sofrerem qualquer medida discriminatória em virtude de sua ligação, pública ou privada, com integrantes de grupos discriminados, suas organizações ou órgãos encarregados do desenvolvimento das políticas promotoras dos direitos humanos.

§ 2º – Equiparam-se aos órgãos e organizações acima referidos a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, e sem personalidade jurídica, que colabore, de qualquer forma, na promoção dos direitos humanos.

Ainda quanto ao âmbito de proteção, o PEDS é omisso quanto à proteção de pessoas jurídicas e de coletividades de pessoas que colaborem na promoção dos direitos humanos relacionados à diversidade sexual.

Nota 3: “sexo”, “orientação sexual” e “identidade de gênero”: necessidade de clareza conceitual e relação com a proibição constitucional de discriminação

A ausência no texto do PEDS de conceitos jurídicos operativos torna dificílimas, quando não insuperáveis, as barreiras para a compreensão e aplicação de normas jurídicas que pretendem regular uma esfera da vida humana tão rica e delicada, como a sexualidade.

Por exemplo, quanto ao conceito de “sexo”. A lacuna indicada traz o risco de diminuir, com efeitos deletérios para os direitos sexuais, a compreensão do conceito de “sexo” comprometendo a proteção jurídica que os tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição prevêem. Isto porque, quando o ordenamento jurídico se utiliza destes termos, especialmente o termo “sexo”, não se alcança somente a distinção entre “homens e mulheres”, considerados biologicamente, como também toda a discriminação motivada pelo gênero (vale dizer, as representações culturais, da masculinidade e da feminilidade).

Tanto assim que, por exemplo, um homem heterossexual, por ser considerado “afeminado”, poderá sofrer discriminação por motivo de sexo (aqui englobando, logicamente, o gênero, isto é, repita-se, as representações culturais associadas ao sexo biológico). Esta compreensão, a propósito, está presente desde o final dos anos 1950 na jurisprudência da Corte Européia de Justiça.

Ainda que não pareça querer restringir a idéia de gênero ao campo da “identidade de gênero”, o PEDS praticamente só faz menção ao gênero em tal contexto, o que pode induzir a interpretações restritivas, que protegem de modo insuficiente contra a discriminação.

No que se refere à “orientação sexual”, o PEDS não esclarece qual elemento qualifica, para fins de aplicação da lei, nem quem são os destinatários da proteção antidiscriminatória. É necessário definir de modo mais claro quando alguém ou alguma situação configura discriminação em relação à “homossexualidade”, “heterossexualidade” e “bissexualidade”.

Pergunta-se: trata-se de proteção de alguém que se identifica como tal ou que é identificado por terceiros, esteja este sujeito de acordo ou não com a identificação alheia? Por exemplo: se Pedro é discriminado por um agente público, em virtude deste atribuir-lhe a identidade homossexual, apesar de Pedro só se interessar sexualmente pelo sexo oposto, configura-se a hipótese protegida contra discriminação? Se algum agente privado percebe troca de amabilidades entre dois heterossexuais e os discrimina por este fato, incide o comando legal? Se Maria tem uma conduta sexual dirigida a outra mulher, e se declara heterossexual, está protegida? Estas hipóteses deixam claro que é necessário definir “orientação sexual” de modo mais claro e preciso, tanto para propiciar segurança jurídica, quanto para tornar mais efetiva a legislação.

Considera-se, para início do debate, que não é tarefa da legislação nem da ciência jurídica definir o que são “sexo”, “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Tais definições são totalmente inapropriadas para a ciência jurídica, sendo objeto de outros campos do saber e da dinâmica social e cultural.

Ao invés disso, a lei andará muito melhor se definir o âmbito de proteção antidiscriminatória, a partir do conceito jurídico constitucional de discriminação. Nos seus termos, pode-se assim sugerir:

“Para os fins desta lei, constitui discriminação qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, motivada por motivo de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, que tenha o propósito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública.

A seguir, pode-se inserir um artigo explicitando hipóteses de discriminação conforme os critérios listados, do seguinte modo:

– Para os efeitos do artigo anterior, consideram-se “discriminação por motivo de sexo” as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas a referências biológica, morfológica, genética, hormonal ou qualquer outro critério distintivo que importe nas designações sexuais relativas a homens e mulheres; “discriminação por motivo de orientação sexual” as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas a identidade, comportamento, preferência, conduta, ou qualquer outro critério distintivo, que importe na atribuição da homossexualidade, heterossexualidade ou bissexualidade; “discriminação por motivo de identidade de gênero” as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas a identidade, comportamento, preferência, conduta, ou qualquer outro critério distintivo, que importe na atribuição da condição travesti ou transexual.

Parágrafo único: a proteção às discriminações referidas alcança as distinções, exclusões, restrições ou preferências relacionadas ao gênero, não importa o sexo, a orientação sexual ou a identidade de gênero dos envolvidos.

Por fim, ainda quanto a este ponto, é necessário explicitar, na linha dos tratados internacionais de direitos humanos e do direito antidiscriminatório, que ações afirmativas que considerem sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, por não constituírem discriminação, mas, ao contrário, medidas de combate à discriminação, não configuram discriminação.

Neste sentido:

“Para os efeitos desta lei, não são consideradas discriminação as medidas especiais, tomadas com o objetivo de assegurar a progresso adequado de grupos discriminados, bem como o enfrentamento da discriminação por eles experimentada, a fim de propiciar a proteção necessária para o gozo e o exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais.”

NOTA 4: aspectos penais do PEDS

Ponto de extrema importância é o tratamento legislativo separado por proposto para a homofobia. O PEDS cria um regime legislativo que aparta a proteção jurídica penal em face da homofobia diante de outras formas de discriminação, cuja proteção jurídica penal se insere na Lei 7716/1989 (que trata dos crimes decorrentes do preconceito por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional). Este limite, com efeito, é o mesmo apresentado pelo substitutivo anteriormente proposto para o PLC 122. A redação do PEDS, neste ponto, é idêntica ao anterior substitutivo, com o acréscimo de um tipo penal geral de “homofobia”.

Do ponto de vista jurídico, não há motivo para esta separação legislativa. Ao contrário, ela prejudica o desenvolvimento e a efetividade do direito antidiscriminatório brasileiro, não trazendo nem segurança jurídica, nem coerência ao sistema jurídico e à aplicação da lei.

Além disso, as esferas jurídicas protegidas estão aquém da proteção propiciada pela Lei 7716/89, caracterizando um tratamento desigual e discriminatório em face dos diversos grupos sujeitos à discriminação, a princípio, vício de inconstitucionalidade. Isso sem se falar na proteção jurídica insuficiente, dada a omissão em áreas onde o enfrentamento da discriminação homofóbica é imprescindível, o que também compromete a constitucionalidade do substitutivo.

Neste contexto, a opção pelo tratamento da homofobia de modo apartado à lei geral antidiscriminatória não é mera opção legislativa, mas aponta para uma desvalorização da proteção jurídica quando o assunto é homofobia.

A limitação da proteção penal somente para as esferas do mercado de trabalho, das relações de consumo e para hipótese de incitação de violência é inadequada e deixa faltando, do ponto de vista penal, toda a proteção contra discriminação que a Constituição exige em muitas outras esferas essenciais da vida.

Basta um rápido olhar sobre o direito já existente, especialmente as Leis nº 7.716 (com as redações das Leis nº 9.459/1997 e 12.228/2010) e a nº 7.437/1985:

a) na oferta e prestação de serviços públicos (comparar com a Lei nº 7.716, art. 12);

b) no âmbito educacional, público ou privado (comparar com a Lei nº 7.716, art. 6º);

c) nos meios de comunicação (comparar com a Lei nº 7.716, art. 20, p. 2º), inclusive pela internet (art. 20, p. 2º, III);

d) nos serviços de saúde, públicos ou privados;

e) nas relações de família (comparar com a Lei nº 7.716, art. 14);

f) em diversos espaços de convívio social (comparar com a Lei nº 7.716, arts. 9º e 11);

g) nas Forças Armadas (comparar com a Lei nº 7.716, art. 13);

Ainda mais: a seção que trata da criminalização da homofobia, no PEDS, abre sua redação com o seguinte artigo:

Art. 100 – Praticar condutas discriminatórias ou preconceituosas previstas neste

Estatuto em razão da orientação sexual ou identidade de gênero,

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

§ 1º – Incide na mesma pena toda a manifestação que incite o ódio ou

pregue a inferioridade de alguém em razão de sua orientação sexual ou de identidade de gênero.

O texto proposto é bastante problemático e aponta para intensa e grave polêmica jurídica. Os regimes democráticos consagram, na formulação do direito penal, a técnica do direito penal do fato, em oposição aos regimes ditatoriais e autoritários, que tendem a criminalizar determinados sujeitos (direito penal do autor). A redação proposta aproxima-se perigosamente do direito penal do autor, na medida em que não enuncia quais as condutas que configuram crime de homofobia, fazendo uma remessa indiscriminada a outros artigos do PEDS, sem dizer quais, nem graduar a gravidade de tal ou qual conduta objeto de criminalização, em desatenção flagrante à proporcionalidade.

Nesta linha, é de se notar que a pena para o tipo penal geral de homofobia é maior que as penas previstas para os tipos penais específicos dos artigos seguintes (artigos 101 a 103).

Não bastasse repetir todas as limitações já apontadas no anterior substitutivo ao PLC 122, a redação da seção criminal do PEDS (art. 100) apresenta vagueza e indeterminação tão elevadas que comprometem a constitucionalidade da norma penal proposta.

Nota 5: sobre a diversidade de matérias e necessidade de sistematização

O exame inicial do PEDS revela proteção jurídica insuficiente ou inadequada para vários domínios jurídicos específicos. Abaixo são elencados alguns itens, a título exemplificativo.

De um lado, há insuficiência em face de diversas manifestações da sexualidade e de variadas violações aos direitos sexuais. É o que já foi referido, por exemplo, quando acima foram mencionadas práticas e condutas sexuais que não se confundem com a lista de sujeitos sexuais preconizada pelo PEDS, bem como com fases da vida e o exercício da sexualidade. Defeito do mesmo teor se apresenta pela omissão quanto a esferas da vida onde a homofobia está presente de modo muito intenso, recorrente e violento, como as relações intrafamiliares, mormente nas relações entre pais e filhos (para tanto, deve-se ir além da regra do artigo 31).

Por outro lado, há inadequação e insuficiência quanto a determinadas previsões sobre diversos ramos do ordenamento jurídico, tais como:

a) direito processual civil (nada há sobre procedimentos coletivos e legitimidade processual, por exemplo; conflito entre o art. 80 e o art. 5º,LX, da CF/88);

b) direito à saúde (há conflitos, tais como entre o artigo 48 e 50, parágrafo único, bem como incongruências: art. 52 e 53);

c) direito à educação (o artigo 59 é muito restrito, pois se resume a identidades; repetições desnecessárias: arts. 60 e 61; contradições com políticas universalistas típicas: art. 64);

d) direito do trabalho (indefinição comprometedora do significado e da eficácia das medidas: art. 73);

e) direito da comunicação (ausência de regulamentação específica sobre direito de resposta);

f) direitos de personalidade (contradição entre a garantia constitucional da privacidade e dever de quesito sobre orientação sexual: art. 48);

g) direito internacional privado (a determinação do artigo 18 pode ser flagrantemente contrária à proteção dos direitos fundamentais sexuais, na hipótese de o domicílio familiar ser regido por legislação mais restritiva, e até explicitamente discriminatória, que a lei brasileira).

Outro aspecto é a mistura de temas e áreas do direito, freqüente na redação do Estatuto (por exemplo, direito militar e identidade de gênero; direito de família, direito à identidade de gênero e direito à saúde).

Mesmo quando trata de direitos fundamentais, o PEDS enuncia direitos em um momento (art. 5º), apesar de tratar dos mesmos, em outro momento, não como direitos, mas como princípios de interpretação (art. 4º).

CONCLUSÃO

Esta nota é somente uma contribuição para o debate jurídico desencadeado a partir da proposição do PEDS, onde alguns pontos são destacados. Muitos outros requerem exame e atenção, que, por espaço e tempo, aqui não foram objeto de atenção.

O que estas notas apontam, além dos conteúdos jurídicos imediatamente vinculados, é (a) a necessidade de avaliar-se a adequação e a oportunidade da legislação que ora se apresenta como projeto, cujo caráter compreensivo traz tantos aspectos tão díspares e carentes de maior precisão; (b) a necessidade de amadurecimento quanto às prioridades políticas e legislativas envolvendo a diversidade sexual, na medida em que projeto tão vasto acaba por diminuir, mais e mais, as chances de aprovação de legislação que criminalize a homofobia, nos termos do PLC 122; (c) o alerta para que, acaso adotada a formulação estatutária, que se apresente projeto mais robusto, coerente e consistente, do ponto de vista jurídico.

*Juiz Federal, Mestre e Doutor em Direito Público (UFRGS), Professor do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter (Porto Alegre). Autor de diversas publicações sobre direito da antidiscriminação e direitos sexuais (Em Defesa dos Direitos Sexuais e Direito da Antidiscriminação, ambos pela Editora Livraria do Advogado)