CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Outra faceta do femicídio

Aborto inseguro: outra faceta do femicídio na América Latina

por Manuela Picq*

Todos os dias mulheres morrem em razão de abortos ilegais e inseguros. As recentes mortes de Elizângela Barbosa, de 32 anos, e de Jandira dos Santos Cruz, de 27 anos, provocaram revolta no Brasil. Ambas foram vítimas de gangues que tiram proveito da ilegalidade do aborto no país.

Elas não são casos isolados. Aproximadamente 50 mil mulheres morrem todos os anos devido a complicações resultantes de abortos inseguros.Muitas dessas histórias acontecem na América Latina, em países onde os governos de esquerda estão comprometidos com a justiça social e onde mulheres são chefes de estado.

Embora a questão do aborto não tenha sido discutida em sua integralidade no processo eleitoral brasileiro, as recentes mortes de Elizângela e Jandira lançam um desafio para a presidente reeleita do Brasil, Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT).

Por que tantas mulheres estão morrendo no país por causas evitáveis? É fundamental que os governos passem a tratar o aborto como um grave problema de saúde ao invés de um crime. É hora de reconhecer que, se a ilegalidade mata milhares de mulheres, ela constitui uma forma de femicídio.

Os custos dos abortos clandestinos

Pesquisas estimam que uma em cada cinco gravidezes no mundo terminaram em aborto em 2008, metade deles realizados de forma insegura. O maior índice de abortos inseguros é registrada na América Latina. De acordo com o Instituto Guttmacher, na região são feitos 32 abortos por cada mil mulheres, de idades entre 15-44 anos. Pelo menos um milhão de abortos são praticados no Brasil. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 98% dos abortos inseguros acontecem em países em desenvolvimento.

Abortos inseguros constituem a segunda causa de mortalidade maternal no Equador, a quinta do Brasil. Muitas das mulheres que sobrevivem acabam hospitalizadas. Estima-se que cinco milhões de mulheres são hospitalizadas por ano no mundo por complicações de abortos clandestinos a nível mundial.

Além do alto risco de morte, manter o aborto ilegal custa dinheiro. No Brasil, doze mulheres foram hospitalizadas por hora em razão de complicações resultantes do aborto inseguro em 2010–mais do que do câncer de mama. Tais complicações custam anualmente US$ 60 milhõesao Sistema Único de Saúde (SUS).

A contracepção ajuda, mas é um remédio ineficiente. Na América Latina, apenas uma em cada dez mulheres tem acesso a métodos contraceptivos.

É necessária uma legislação que assegure o acesso ao aborto e ao cuidado pós-aborto. O aborto deve ser encarado como um problema de saúde pública, e não usado para criminalizar mulheres.

Criminalizando as mulheres pobres

O Aborto permanece como prática ilegal na maior parte dos países latino-americanos. Quando não é totalmente proibido(como no Chile, em Honduras, El Salvador, Nicarágua, Haiti, Suriname ena República Dominicana), é autorizado somente em casos extremos, como risco de morte à mulher (Brasil),estupro (Colômbia) ou estupro de incapaz (Equador).

As mulheres são criminalizadas de múltiplas maneiras. Além de serem forçadas a procurarem clínicas clandestinas, onde muitas perdem suas vidas – como Jandira e Elizângela – as que sobrevivem correm risco de ser processadas, como aconteceu no estado brasileiro do Mato Grosso do Sul em 2008, onde mais de mil mulheres foram processadas depois que uma clínica de planejamento familiar que realizava abortos clandestinamente foi estourada. Em El Salvador, onde o aborto é proibido sob qualquer circunstância,17 mulheres foram encarceradas pela prática do aborto, seis delas tinham menos que 17 anos.

Em muitos casos, os abortos são justificados por violência sexual sofrida pelas mulheres. Agências ligadas às Nações Unidas estimam que mais de 50% de agressões sexuais em todo o mundo são cometidas contra jovens menores de 16 anos. No Equador, uma em quatro mulheres são vítimas de violência sexual, 30% delas acabam grávidas. No Peru, país que apresenta o maior número de casos relatados de estupro na América do Sul, 80% das vítimas são menores de idade. Onde a prática do aborto é proibida, essas jovens induzem o aborto pulando do telhado ou bebendo substâncias tóxicas.

No entanto, existem exceções. O aborto é legalizado em Cuba, na Guiana e na Guiana Francesa. O Uruguai legalizou a prática há um ano. Na Cidade do México, ela é descriminalizada desde 2007, mas o procedimento ainda é proibido no restante do país. O governo peruano recentemente publicou um guia reconhecendo sua responsabilidade em assegurar o acesso de mulheres ao aborto terapêutico, mas a lei ainda obriga os médicos a denunciar mulheres pelo crime alegado de aborto.

Parte do problema se deve à iniquidade de acesso. Mulheres de classes sociais mais altas têm acesso ao aborto seguro. Mulheres pobres não. Elas são as mais vulneráveis aos meios perigosos de abortos induzidos e a indivíduos não qualificados que praticam o aborto em locais insalubres.

O problema tem como pano de fundo a criminalização do aborto. Enquanto o governo fecha clínicas que realizam abortos ilegais mas seguros, a milícia está tomando conta do negócio. A criminalização alimenta as clínicas clandestinas controladas pela máfia, onde a impunidade e a falta de suporte médico levam a resultados letais.

É um paradoxo o fato de que os processos regionais de democratização observados na América Latina na última década não têm diminuído a violência estrutural contra a saúde das mulheres. Os governos de esquerda comprometidos com a justiça social têm se omitido quando se trata de direitos reprodutivos. Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega sancionou uma lei anti-aborto para ganhar o apoio eleitoral da Igreja Católica. Por conta disso, uma menina de 12 anos que havia sido estuprada pelo padrasto foi forçada a ser mantida sob “proteção do Estado”até dar a luz, em 2012.

A chegada de mulheres à presidência da Argentina, do Brasil e do Chile foi inútil no que tange à reforma na legislação do aborto nestes países. Cristina Kirschner, Dilma Rousseff e Michele Bachelet ainda não asseguraram o direito das mulheres ao aborto legal e seguro.

Talvez o paradoxo político mundial fosse resolvido se os governos compreendessem o paradoxo do aborto. Proibir a prática não evita que ela aconteça. Somente empurra o problema para a clandestinidade, colocando as vidas das mulheres em risco e expandindo os custos para a sociedade.

Mais de 80% dos abortos no mundo acontecem em países em desenvolvimento onde as leis criminalizam a prática. Os índices de aborto diminuem significativamente onde ele é legal, tal como aconteceu na Romênia e nos Estados Unidos. Na Europa Ocidental, onde o procedimento é legal e seguro, os índices de aborto são muito menores do que na América Latina.

O aborto inseguro é uma forma extrema de violência de gênero relativo à discriminação e ao desempoderamento econômico que resulta no assassinato de mulheres e inclui mutilação, crueldade e violência sexual. A morte de mulheres e meninas baseada no gênero é legitimada e facilitada pelos Estados.

O aborto inseguro constitui um desrespeito sistemático aos direitos humanos das mulheres. Tal crime tem nome: femicídio.

* Manuela Picq é historiadora e professora de relações internacionais na Universidad San Francisco de Quito (Equador)