*Anna Paula Uziel
Nas últimas semanas, volta ao cenário público um debate que teve início nos anos 90 do século passado em diversos países do mundo e que há uma década vem convocando a sociedade brasileira, em suas diversas instâncias, a se posicionar: o direito à parentalidade por casais de mesmo sexo. Uma decisão do STJ favorável à adoção de crianças por um casal de mulheres e o projeto de lei do deputado federal Zequinha Marinho (PSC/PA), que “veda a adoção de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo”, apareceram na mídia concomitantemente.
Em 2001, a morte da cantora Cássia Eller inaugurou de forma ampliada a discussão sobre parentalidade e homossexualidade, quando a Justiça, ao final de um intenso embate, concedeu a guarda de seu filho à sua companheira. Alguns anos depois, em 2005 e 2006, a mídia noticiava decisões inéditas sobre o reconhecimento da parentalidade por casais homossexuais em Bagé e Catanduva.
No final de 2009, o III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) propôs ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos e recomenda ao Poder Judiciário a realização de campanhas de sensibilização de juízes para evitar preconceitos nesses processos de adoção, como aqueles em torno do temor do abuso sexual de meninos por parte de pais gays, o “risco” de que a criança se torne homossexual ou que a diferença entre os sexos não fique clara para aqueles que convivem com dois pais ou duas mães, causando-lhe transtornos psíquicos.
Tais percepções têm mudado. A recente decisão do Tribunal de Justiça gaúcho é um exemplo, ao reconhecer “como entidade familiar merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família”, requisitos valorizados pelas equipes técnicas do TJ quando recebem requerentes, independente da orientação sexual. E este mesmo acórdão é incisivo: “É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (artigo 227 da Constituição)”.
Na justificação do projeto 7018/2010, o deputado federal Zequinha Marinho afirma: “Tais ‘casais’ – por assim dizer – não constituem uma família, instituição que pode apenas ser constituída por um homem e uma mulher unidos pelo matrimônio ou pela estabilidade de sua união”.
Argumentos desse tipo têm a filiação biológica como padrão, não considerando sequer o que a Justiça concebe como outro caminho para a parentalidade, como a adoção. Sugere-se, com esse pensamento, um retorno ao primado da biologia. É preciso afirmar que as dificuldades que se supõe que os filhos poderão enfrentar não são diferentes das que experimentamos em função da cor da pele ou do tipo de cabelo. O bem estar das crianças não está garantido pelo sexo dos pais e mães. Pensar nos filhos significa urgentemente ampliar nossas concepções de família.
*Anna Paula Uziel é psicóloga, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ e pesquisadora associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ).