* Regina Facchini
Ativistas e pesquisadores vêm chamando atenção para as maneiras pelas quais a sexualidade de mulheres e, mais especialmente, os desejos e as condutas erótico-afetivas que envolvem parceiras do mesmo sexo são pensados e vividos na nossa sociedade, bem como para a relação que isso tem com o que é chamado de invisibilidade. Um dia para a “visibilidade lésbica” é uma estratégia do movimento social, que faz sentido dentro de uma proposta política de atuar pela via da afirmação de sujeitos políticos e de suas necessidades na esfera pública, e que mobiliza reflexões e ações na direção de intervir nessa situação. Penso que este dia é válido e importante, tomando em conta as estratégias adotadas historicamente pelo movimento LGBT no Brasil e o fato do que a afirmação de especificidades e de bandeiras de luta compartilhadas são dois lados de um mesmo processo político de ampliação de direitos.
As bandeiras de luta do movimento LGBT e do movimento de lésbicas estão bem estabelecidas desde a primeira década de atuação desse movimento no Brasil. As demandas mais intensamente trabalhadas estão relacionadas ao combate à discriminação e à violência e ao reconhecimento das relações e direitos associados à conjugalidade e à parentalidade. A intersecção entre questões relacionadas a gênero e à sexualidade, bem como à classe, cor/”raça” e geração, trazem matizes específicos a essas demandas. Há uma longa lista de demandas levantadas no processo de construção da I Conferência Nacional LGBT, tanto demandas gerais que incluem lésbicas quanto aquelas especificamente pensadas em relação às lésbicas. Penso que as dificuldades não estão tanto na explicitação de demandas, mas no processo de reconhecimento político das mesmas. A maior visibilidade do movimento LGBT nos últimos 15 anos tem sido acompanhada recentemente de uma forte reação conservadora, que intensifica a disputa social acerca do reconhecimento de pessoas LGBT como sujeitos de direitos. No entanto, se parece haver relação entre visibilidade de sujeitos políticos e reação conservadora, a menor visibilidade do sujeito político lésbicas não o isenta dos efeitos do acirramento das tensões sociais em torno do reconhecimento de direitos. Daí a ênfase na visibilidade como bandeira.
Nos últimos seis anos, tenho me dedicado a olhar mais diretamente para a diversidade dos sujeitos que poderiam ser incluídos sob o L da sigla LGBT a partir de pesquisas, realizadas na cidade de São Paulo, com mulheres que têm relações erótico-afetivas com outras mulheres. Num primeiro momento, em parceria com Regina Maria Barbosa, me voltei para questões de saúde, e, posteriormente, na pesquisa de doutorado, para as relações entre práticas eróticas, identidades, corporalidades e relações sociais de poder. Essas experiências de pesquisa indicam que talvez haja mais que um L world. Tenho me deparado com uma considerável multiplicidade de classificações e com uma certa rejeição de boa parte dessas mulheres à categoria lésbica, o que já vem sendo relatado por vários outros pesquisadores. Nesse sentido, é preciso demarcar a diferença entre identidades coletivas produzidas para a ação política e as identidades individuais.
No campo da política tem havido um processo que chama atenção para as especificidades de sujeitos como lésbicas negras ou as lésbicas de periferia. No campo da vida cotidiana das pessoas que estariam representadas pelo movimento social, as coisas se dão de uma outra maneira. Nos dois casos, há uma gama de relações sociais de poder (associadas à sexualidade, gênero, classe, cor/”raça”, geração e regionalidade, entre outras) que se entrecruzam. No campo da política, é preciso lançar mão de categorias mais cristalizadas para identificar determinado sujeito político, e a incorporação da diversidade tem se dado pela via de operações de “soma” ou de “justaposição” de sujeitos políticos. No cotidiano, essas relações de poder atravessam o modo como as pessoas se distribuem no espaço físico da cidade e produzem lugares; organizam suas redes de relações sociais; administram suas relações com familiares, amigos, vizinhos, colegas e superiores na escola e/ou no trabalho, com religiões e com parceiros/as; como se percebem e classificam a si mesmas e a outras; e como se apresentam em termos de corporalidade, gestualidade e indumentária.
O modo como as classificações se distribuem no conjunto de entrevistadas para minha pesquisa variou significativamente com relação à classe e à geração, marcadores que também se relacionam com a maneira como as entrevistadas percebem suas trajetórias, práticas e desejos sexuais com homens e/ou com mulheres, como se distribuem pelo espaço da cidade e como lidam com o estigma. Os maiores contrastes aparecem ao compararmos mulheres acima de 30 anos de estratos populares e mulheres com menos de 30 anos de estratos médios e médios altos.
Entre as mais velhas de estratos populares, entendida é a categoria mais usada e, diferentemente do que ocorre em outras faixas de idade ou estratos sociais, não se usa termos específicos para designar mulheres que têm ou tiveram sexo com homens. Entre as mais jovens de estratos médios ou médios altos, ganham espaço estratégias de valorização e afirmação daquilo que é estigmatizado, como no caso do uso de termos como dyke ou sapatão (entre as minas do rock), sapa (corrente entre jovens de estratos médios) e a autoclassificação como bissexual, além da recusa de rótulos (especialmente entre parte das modernas).
A popularização da categoria entendida coincide com o que parece ser seu quase banimento do estrato social que lhe deu origem, dando lugar a outras categorias que se multiplicam. Essa multiplicação parece tomar categorias de referência à sexualidade como linguagem para a expressão de outras diferenças. Assim, categorias como
É importante dizer que, ao olharmos para mulheres de diferentes gerações, nota-se o impacto da mudança da homossexualidade como lugar social e isso se deve não apenas, mas especialmente, à ação do movimento social organizado e à resposta de várias instituições sociais. Entre as mais jovens, sem dúvidas, há indícios de um campo maior de possibilidades de manejo das convenções sociais e começam a emergir iniciativas que remetem à distinção entre movimento e movimentação social. Trata-se da presença visível na universidade, na literatura, na música, em blogs ou sites da internet ou em estilos juvenis. Tais presenças e iniciativas têm diferentes graus de proximidade com o movimento social organizado, mas acabam por diversificar as vozes e imagens levadas ao espaço público. Tanto no campo do ativismo, por meio da luta pelo reconhecimento como sujeitos de direitos, quanto no cotidiano, manejando convenções por meio de categorias de classificação e estilos, essas mulheres têm, pelos diversos meios que estão ao seu alcance, procurado fazer algo daquilo que lhes parece ter sido feito delas.
Não gosto muito de pensar a relação entre igualdade e diferença a partir da noção de especificidades, especialmente porque tende a cristalizar essas relações, mais complexas e dinâmicas, entre várias relações sociais de poder. No interior do L da sigla LGBT há diversidade, igualdade e diferença conjugadas, assim como em qualquer outro sujeito político ou recorte populacional que possamos tomar da realidade. Nos últimos anos, temos convivido com noções como segmentos populacionais e especificidades, mas talvez precisemos pensar que nenhum sujeito político descreve uma realidade homogênea e que a tendência a delimitar especificidades pode fazer com que caiamos numa fragmentação política excessiva, incapaz de nos dar aquilo que promete. Isso não significa abrir mão do L da sigla. Ao contrário, trata-se de tomá-lo de modo a compreender que é apenas uma ferramenta para expressar as demandas por direitos de pessoas que guardam similaridades, mas também diferenças entre si, e que essas diferenças não estão dadas de antemão, podendo ganhar diferentes contornos em contextos variados.
* Regina Facchini possui graduação em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1995), mestrado em Antropologia Social (2002) e doutorado em Ciências Sociais (2008) pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é pesquisadora colaboradora do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP.