Sérgio Carrara*
Paradas do orgulho de lésbicas, gays, transgêneros e bissexuais se multiplicam pelo país e começam a merecer a devida atenção dos institutos de pesquisa. Na última parada paulistana, o Datafolha investigou manifestantes e opiniões através de um “survey”. Começa a ser também divulgada pesquisa conduzida em 2004, na parada carioca, pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Grupo Arco-Íris e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Universidade Candido Mendes). Na pesquisa do Datafolha, chamou a atenção o fato de 76% dos entrevistados concordarem, total ou parcialmente, com a idéia de que “alguns homossexuais exageram nos trejeitos, o que alimenta o preconceito contra os gays”. A pesquisa do Rio revelou que, entre os homens homossexuais, 44,6% preferem parceiros “mais masculinos”, contra apenas 1,9% que os preferem “mais femininos” (para íntegra dos resultados ver www.clam.org.br). Para alguns, por aumentar o preconceito, a feminilidade parece politicamente incorreta nos homens. Para outros, deve ser cuidadosamente policiada pelos que se aventuram no mercado dos afetos e paixões.
Devemos concluir que a androginia perdeu seus poderes de contestação (tão caros à contracultura) e que sua beleza está sendo destruída em infindáveis sessões de musculação? Resultados de pesquisas quantitativas devem ser analisados com cautela, antes de se propor qualquer interpretação. Eles desenham tendências ou mapeiam diferenças sociologicamente relevantes em dada população, mas raramente desvendam seu significado mais profundo. Nessa tarefa, apenas auxiliam os sociólogos a construir hipóteses interpretativas.Como compreender então essa espécie de condenação política dos “trejeitos” femininos e a contemporânea valorização erótica de certa aparência viril?
“Inversão sexual”
É certo que, nas últimas décadas, a emergência pública do fenômeno “gay” tem mostrado que homossexualidade masculina não é sinônimo de “efeminação”. E para muitos a afirmação de uma homossexualidade viril é de fato questão política, pois desestabiliza o paradigma da “inversão sexual”, no qual a homossexualidade masculina aparece como resultado do aprisionamento de suposta alma feminina em um corpo masculino. Assim, por muito tempo e ainda hoje para várias pessoas, homossexuais devem ser considerados, senão pecadores ou doentes, ao menos desajustados ou desviantes: uma alma “errada” em um corpo “certo” ou vice-versa.
A necessidade política de afirmação de uma homossexualidade viril pode não explicar inteiramente a rejeição da feminilidade nos homens, detectadas pelas duas pesquisas nos planos erótico e político. É mais provável que estejamos frente a uma complicada resposta à discriminação, também presente em outras populações estigmatizadas. Nela, a rejeição da feminilidade reflete uma tentativa de desviar o preconceito, que ameaça a todos, para um subgrupo ainda mais vulnerável, para quem as conhecidas acusações de “mulherzinha” ou “mariquinhas” seriam adequadas e até aceitáveis. Recusa-se o estigma, mas, ao atribuí-lo ao “outro”, perpetuam-se os termos sobre os quais ele se constrói.
Os limites a essa estratégia estão dados dentro do próprio universo homossexual, no qual assistimos nos últimos anos à crescente organização e visibilidade política dos -ou das- transgêneros (travestis e transexuais), para quem a incorporação da feminilidade é fundamental no processo de construção de suas identidades. Porém, mesmo nesses casos, não temos mais a afirmação política da androginia, e sim a reiteração das fronteiras simbólicas de gênero que separam homens e mulheres, independente de seu sexo biológico.
Trata-se de hipótese e apenas novas pesquisas, especialmente as qualitativas, podem ou não confirmá-la. Se ela é plausível frente aos dados disponíveis, devemos começar a nos perguntar até que ponto a adequação às normas de gênero vigentes é, para muitos, o preço para ingressar no universo da cidadania ou da conjugalidade bem sucedida. Afinal, apenas os homossexuais viris, discretos e bem comportados merecem o paraíso?
*Sérgio Carrara é antropólogo, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.
Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1906200509.htm.