CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

A hierarquia continua

Autor de mais de uma dezena de livros, entre eles “Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira” e “O que é Homossexualidade”, o antropólogo inglês Peter Fry, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), lembra que, quando chegou ao Brasil, há 35 anos, pensar em paradas de orgulho gay era algo fora de discussão. “Quase tudo era a portas fechadas”, diz ele, até o início do movimento homossexual, na década de 1970. “Nesta época, ‘assumir’ era palavra de ordem das mais importantes”.



Nesta entrevista, o antropólogo, que acaba de participar da 57ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza, na qual proferiu a conferência “Homossexualidade e Sociedade: mudanças e continuidades”, fala dos avanços alcançados pelo movimento GLBT no cenário brasileiro e o que precisa avançar. Segundo ele, a “velha obsessão” pelos dois paradigmas (ativo/passivo) continua a dominar o imaginário erótico do mundo gay, o que ele já tinha observado há mais de três décadas. “A hierarquia persiste no imaginário e na performance”.



– O Sr. é autor do livro “O que é homossexualidade”. Como definir homossexualidade? O termo ainda faz sentido frente a essa explosão de identidades dentro do movimento homossexual?



O termo homossexualidade vale para descrever relações sexuais e eróticas entre pessoas do mesmo sexo. Mas você tem toda razão. As identidades proliferam cada vez mais e obedecem à lógica política e cultural local. Mas sempre foi assim. Houve e há rapazes que transam por dinheiro com pessoas do mesmo sexo, mas não se consideram homossexuais nem gays. São rapazes apenas. Regina Facchini descreve o recente processo de proliferação de identidades e siglas no seu livro “Sopa de Letrinhas”. Às vezes penso que essas identidades são, no fundo, variações sobre o tema da relação entre masculinidade e feminilidade no imaginário mais geral e no imaginário mais particular do grupo GLBT.



– Na sua visão, como está a relação homossexualidade x sociedade no Brasil? Quais as mudanças e os avanços alcançados, já que hoje temos homossexuais nas novelas, vencendo o Big Brother etc



Trinta e cinco anos atrás quando cheguei ao Brasil, pensar em paradas enormes e vencedores de Big Brother era impossível. Na década de 50 e 60, quase tudo era a portas fechadas. Na década de 1970 começou o movimento homossexual, já público e “assumido”. Aliás, “assumir” era palavra de ordem das mais importantes. A vitória de Jean no BBB significa um passo enorme para a mudança de preconceitos na sociedade. A única maneira de eliminar o sofrimento das tais “minorias” é atacar os estereótipos, transformando as representações. Mesmo assim, continua difícil fazer mudar a legislação, sobretudo por causa da oposição das igrejas em geral. Marcelo Natividade está documentando os mitos e atos das igrejas protestantes, determinadas a “curar” a homossexualidade. Apesar da medicina não mais tratar a homossexualidade como doença ou desvio, certas igrejas ainda pensam assim. E, creio, é assim que continua pensando grande parte da população (apesar de votar em Jean no BBB). Afinal, as pesquisas do CLAM e da Datafolha mostram que a grande maioria dos que vão às paradas são certa elite cultural e econômica!



– Como o Sr. enxerga essa visibilidade atual?



A visibilidade sempre foi uma opção para as pessoas com vontade de manter relações homossexuais. No passado os “veados” e “bichas” se fizeram muito visíveis, inclusive para poder achar parceiros. A sociedade reservou territórios onde essa visibilidade era marcada: carnaval, candomblé, salões de beleza, o mundo da moda etc.



Na década de 1970, o movimento homossexual nasceu com vontade de tornar a homossexualidade mais visível para a sociedade e mais aceitável para os homens e mulheres em questão.



A AIDS veio para aumentar ainda mais a visibilidade. Os homossexuais eram vistos como “grupo de risco”. Começou uma indústria de pesquisas, uma vontade de saber, que foi escrutinando a privacidade da homossexualidade, escancarando todo um mundo de prazeres conhecido antes apenas pelos participantes. A campanha contra a AIDS fomentou também os grupos organizados em Ongs. Gláucia Almeida na sua recente tese de doutorado defendida no IMS/UERJ, demonstra como a campanha contra AIDS foi importante para a consolidação de Ongs lésbicas.



Com as paradas gay a visibilidade aumentou ainda mais. A visibilidade positiva da homossexualidade ajuda muitas pessoas (inclusive aquelas que não se distinguem na sua performance de quaisquer outras pessoas) a se sentirem confortáveis com a sua homossexualidade. Isso é bom para o bem estar das pessoas que gostam de pessoas do mesmo sexo, bem como para a sociedade como todo. Menos neurose para todos! Mais criatividade e mais presença.



– O que mudou e avançou em todos esses anos?



O que mudou é a visibilidade, a “normalização” da homossexualidade. Também a proliferação de identidades e gostos. A internet revolucionou a vida dos gays também. Pesquisa de Julio Simões em São Paulo mostra como mudou radicalmente a vida dos mais velhos, não mais acuados, mas presentes no mundo público. Isso aponta para mais uma mudança de enorme importância: o crescimento do mercado para gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. Bares, saunas, restaurantes, boates, hotéis, turismo, etc. Foi a aliança entre uma parte do movimento homossexual e o comércio que fez possíveis as paradas. E não devemos esquecer o Estado. Por mais que a legislação avance lentamente, os governos federais, estaduais e municipais apóiam eventos como as paradas. Parece bom negócio para eles!



A AIDS também teve um efeito ainda difícil de avaliar. No inicio estimulou uniões mais estáveis. Estimulou também a formação de Ongs GLBT. Fortaleceu identidades e a sociedade dita civil. Que ironia! O estado financia a sociedade civil!!!.



– E o que continuou ou ainda não foi tocado? O que ainda precisa avançar?



Bem, acho que a velha obsessão com “ativos” e “passivos” continua a dominar o imaginário erótico do “mundo gay”. E por mais que a homossexualidade ganhe aceitação, há um preconceito que continua contra os mais efeminados. Há uma celebração dos valores da masculinidade, sobretudo na performance social. Sérgio Carrara tem escrito sobre isso com base em pesquisas feitas nas paradas gay.



As pesquisas de Luiz Mott mostram que a extrema violência continua a permear as relações homossexuais e mais de metade dos participantes das paradas gay de São Paulo e Porto Alegre afirmam ter sofrido agressões. Luis Mott tem razão quando afirma que a homofobia é a mais acirrada das minoriafobias.



– Em seu artigo “Da hierarquia à igualdade” o Sr. organiza as práticas homossexuais no Brasil segundo dois modelos: o tradicional (hierárquico) e o modelo moderno (igualitário). Ainda é válida essa classificação, essa leitura sobre o mundo homossexual no Brasil?



Sim, acho que sim. Quando escrevi esse artigo não fiz muito além de enxergar o princípio sociológico geral (bastante desvendado pelos antropólogos do Museu Nacional da época) na sociabilidade homossexual. O que vi na década de 1970 era a emergência da importância do individuo como valor, uma rejeição das velhas hierarquias entre os gêneros e as orientações sexuais e entre a categorização entre “ativos” e “passivos”. O que identifiquei como o modelo igualitário adquiriu força e visibilidade. Na luta para os direitos há todo um esforço de reduzir os empecilhos hierárquicos. Ao mesmo tempo, como falei acima, a hierarquia continua no imaginário e na performance. Os dois paradigmas continuam presentes, permitindo a produção de identidades híbridas; identidades essas que convivem nas paradas gay.