Autora do Projeto de Lei n. 4403/2004, que isenta de pena a prática de “aborto terapêutico” em caso de anomalia do feto (como a anencefalia, por exemplo), a médica e ex-deputada federal Jandira Feghali acredita que a descriminalização do aborto no Brasil seja uma questão de tempo. Em 2005, foi relatora do Projeto de Lei n. 1135/91, cujo texto retira do Código Penal brasileiro os artigos relacionados ao aborto consentido pela mulher. Para ela, o debate está avançando mais na sociedade do que no Congresso (o PL continua na Comissão de Seguridade Social e Família), graças a posicionamentos de peso, como o do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e de outros gestores públicos. O grande entrave, segundo a médica, é a influência religiosa.
Na terça-feira, 7 de agosto, Jandira Feghali participou do debate “Aborto: saúde pública, descriminalização e direitos sexuais e reprodutivos”, ocorrido na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Rio de Janeiro, promovido pela Comissão OAB Mulher, onde falou da relação entre o Movimento Nacional de Reforma Sanitária e o Movimento Feminista (Clique aqui e leia seu artigo “SUS: uma bandeira feminista”). “A qualificação de serviços é essencial na área dos direitos sexuais e reprodutivos, e o Sistema Único de Saúde precisa funcionar adequadamente para dar conta dos serviços necessários a esses tipos de direitos”, avaliou. A ex-parlamentar concedeu a seguinte entrevista ao CLAM:
O PL 1135 encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados. Como a sra. avalia o atual debate do aborto no país? Acredita em avanços a curto prazo?
O debate está avançando mais do lado de fora, na sociedade, do que dentro do Congresso Nacional. As forças congressistas mais atrasadas estão se articulando mais rapidamente do que as progressistas. Na sociedade, o debate se ampliou porque protagonistas de peso, como o ministro da saúde e gestores públicos, começaram a se expor de forma mais intensa, e isso criou debates nos meios de comunicação, facilitando a discussão na sociedade. É difícil falar em prazo, mas acho que de fato a descriminalização do aborto é uma questão de tempo. A sociedade precisa se movimentar, os setores organizados precisam tomar a liderança no processo, para que isso repercuta dentro do Congresso de forma mais organizada.
O que mais impede a descriminalização do aborto no Brasil?
A influência religiosa principalmente. A questão de quando começa a vida, sustentada pelos grupos religiosos, é o pior debate, porque nem mesmo a teologia é uniforme ou unânime. Atualmente a legislação e as resoluções do Conselho de Medicina dizem, inclusive, quando termina a vida, que é na morte cerebral. Então, se essa é a definição de quando termina a vida – para permitir a doação de órgãos -, poderíamos talvez dizer que a vida começa quando o tecido cerebral está pronto, o que acontece, no mínimo, em 20 semanas de gravidez. Hoje em dia, com a definição de morte cerebral, pode-se tirar os órgãos de uma pessoa para transplantar em uma outra. Percebe-se que o debate em torno do princípio da vida não leva a lugar algum. O problema é como tratar a questão dentro dos termos democráticos e da saúde pública, e como reduzir o número de abortos e a mortalidade materna para, a partir daí, definirmos a eficácia da legislação e fazer nosso país avançar, a exemplo dos portugueses e mexicanos que mostraram que legalizar, dar permissivos legais, é a melhor forma de defender a vida e reduzir a mortalidade materna.
Como médica, por que a sra. diria que é importante descriminalizar o aborto?
Porque precisamos combater a mortalidade materna. O aborto no Brasil, exceto em dois casos, é ilegal, mas ele é feito de forma abrangente, e quem morrem são as mulheres pobres. São feitos mais de um milhão de abortos anualmente, os quais causam 200 mortes e, se aplicarmos o fator de correção, esse número chega a 700 mortes todos os anos. São quase três acidentes aéreos, na proporção do que aconteceu em São Paulo recentemente. Só que, como essas mulheres são invisíveis, não há o mesmo impacto de mídia ou de dramaticidade visível no acidente aéreo acontecido.
Como política, como a sra. avalia os projetos que estão sendo apresentados que tentam até mesmo derrubar os permissivos legais?
Não acredito que isto seja uma ameaça. Embora o debate não tenha avançado muito em termos de legislação, ele também não retrocedeu. Mas a tendência é avançar, não retroceder, principalmente em caso de má formação fetal. Ampliar mais que isso, porém, talvez ainda não seja possível.
Em Portugal, o aborto foi recentemente descriminalizado através de um referendo e, no Brasil, até mesmo o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, pronunciou-se a favor da possibilidade da realização de um plebiscito para definir a questão. Esse seria o caminho?
Diferentemente de Portugal, que tem uma população menor que a do Rio de Janeiro, um plebiscito no Brasil seria absolutamente inoportuno. Se uma mulher tem dentro de seu útero um feto anencéfalo, ninguém deve decidir por ela se ela deve abortar ou não. É uma gravidez que tem riscos. Um plebiscito não deve decidir questões que são absolutamente de foro íntimo. Essa é a primeira reflexão que devemos fazer. Outra questão é entender o que são os meios de comunicação no Brasil, qual a influência das religiões nesses meios de comunicação e qual é a correlação de forças, no caso de um plebiscito hoje, entre nós, defensores do direito ao aborto, em nosso grau de organização atual e os segmentos contrários. Existem no momento no Brasil 700 emissoras de rádios católicas e muitas outras emissoras de rádios evangélicas, e três redes televisivas de concessão religiosa. Então, além do tempo que cada grupo terá para falar, esses setores terão toda essa estrutura própria de mídia para se pronunciarem. E qual a correlação de forças para um plebiscito hoje no Brasil? Qual a unidade existente no Brasil – um país de 180 milhões de pessoas – para o debate, a exemplo do que houve em Portugal? Então, para além da reflexão do tema, qual é a democracia de comunicação existente no Brasil hoje em dia para fazermos um debate desse porte? Este, sem dúvida, não é um tema para se colocar em plebiscito, porque envolve questões de decisão de foro absolutamente íntimo. A democratização dos meios de comunicação é bandeira estratégica para qualquer tipo de debate que envolve tamanha polêmica. Por isso, neste momento, o plebiscito é temerário.
Leia o artigo “SUS: uma bandeira feminista”, de Jandira Feghali