CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Aids: falhas na prevenção entre jovens

O Ministério da Saúde brasileiro divulgou esta semana dados sobre a AIDS no Brasil, em função do dia mundial de combate à doença (1/12). O perfil da epidemia mostra que a doença tem aumentado entre jovens gays. Em 1998, para cada 12 gays infectados com HIV havia 10 heterossexuais contaminados. De acordo com os dados atuais, essa proporção chegou a 16 gays para cada 10 heterossexuais. A pesquisa indicou uma estabilização da epidemia e o aumento das transmissões do HIV em relações heterossexuais.

Os números demonstram que há uma dificuldade dos governos e da sociedade civil em lidar com a questão, situação que se justifica, segundo o coordenador da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), Veriano Terto, por causa de barreiras morais e preconceituosas que impedem a aplicação plena de políticas de prevenção.

Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ, Veriano Terto acredita que a prevenção ao HIV torna-se ainda mais difícil em função do que chama de “um olhar paternalista e monolítico” sobre os jovens, que enxerga essa população como se não houvesse diferenças e desigualdades internas.

Em entrevista ao CLAM, o coordenador da ABIA comenta os números da pesquisa do Ministério da Saúde e faz uma reflexão sobre o descompasso na compreensão do direito à saúde no marco dos Direitos Humanos.

Nos últimos anos, o Ministério da Saúde tem concentrado suas campanhas na população jovem e gay. A pesquisa mostra, no entanto, que para cada 16 homens gays com HIV existem 10 heterossexuais infectados. Em 1998, eram 12 gays para 10 heterossexuais. Como entender esse aumento apesar do enfoque do Ministério sobre o segmento?

O crescimento da AIDS entre homens que fazem sexo com homens (HSH) é geral, independentemente do crescimento ou da diminuição da doença entre outras populações. Isso reflete a dificuldade do governo e da sociedade civil em lidar com a questão, sobretudo por causa de valores morais e preconceituosos que dificultam a aplicação de políticas.

Por exemplo, o kit anti-homofobia, material didático produzido por equipe capacitada e especializada que seria distribuído em escolas, foi vetado pela presidente Dilma Rousseff em meados do ano diante da pressão de parlamentares da sua base de apoio ligados à religião. É um exemplo de como a discussão sobre sexualidade e juventude é espinhosa, seja na escola, seja no âmbito público.

É uma situação em que preconceito, conservadorismo e olhares religiosos se articulam para dificultar a implementação dessas iniciativas. A atuação de setores religiosos também reforça o poder deles e dá mais vigor à capacidade de negociação e barganha nas esferas políticas. É um processo que prejudica a prevenção da Aids. No Brasil, temos um arcabouço qualificado, teorias de prevenção, política de distribuição de medicamentos e, no entanto, convivemos com esses números elevados que resultam, em boa medida, do preconceito que dificulta o controle da transmissão do HIV.

Por que essa dificuldade em lidar com a população jovem?

Há um olhar geral da sociedade que acha necessário uma relação paternalista com os jovens. Como se eles não tivessem autonomia e discernimento para lidar com suas vidas sexuais. Assim, fica difícil a discussão e a implementação de políticas para uma população cujos direitos sexuais parecem não ter legitimidade ou aceitação.

Além disso, há também um olhar monolítico sobre os jovens, como se todos fossem iguais. Não são. Há inúmeras diferenças. Existem jovens negros, pobres, brancos, ricos, trabalhadores, desempregados, estudantes, com filhos, solteiros, entre tantas outras possibilidades. Negar essa diversidade significa ainda encobrir desigualdades raciais, de renda, de estudo, de gênero e de orientação sexual que posicionam os jovens em relações hierárquicas de poder. Há desigualdades entre os jovens. Não podemos negar isso. A discussão tem que ter como fio condutor essa noção de diversidade que há entre eles.

O surgimento da epidemia da Aids provocou um intenso debate em torno dos comportamentos sexuais, alertando para riscos e para formas de prevenção. O que os números atuais podem dizer sobre o comportamento sexual dos brasileiros, passadas quatro décadas desde o surgimento da doença no cenário mundial?

Os comportamentos sexuais são variados. Atualmente, temos mais informação e mais instrumentos de controle e tratamento. No entanto, a sexualidade das pessoas é diversa e a abordagem dessa diversidade muitas vezes se complica.

Uso como exemplo dados da ABIA, de 2007 e 2008, que mostram as relações intergeracionais. Notamos que é comum o relacionamento entre homens jovens e gays com homens mais velhos. Penso que a discussão sobre o comportamento sexual esbarra em valores morais que recriminam, nesse caso, a relação entre pessoas com grande diferença de idade. Se já é um tabu discutirmos relações intergeracionais heterossexuais, imagine no universo gay.

Acredito que o discernimento sobre o comportamento sexual e a exposição aos riscos existe. Mas novamente somos impedidos por uma barreira moral de discutir essas questões.

O aumento de casos de AIDS entre mulheres com mais de 50 anos se insere nesse contexto?

Sim. Tocar nesse assunto é uma tarefa também espinhosa. Basta notar que a própria existência de dados sobre essa faixa etária, meia-idade e terceira idade, é escassa. Não por acaso, temos os dados quantitativos, isto é, o aumento dos casos de contaminação dessas mulheres. Mas não temos ideia se, de fato, há um crescimento real da contaminação dessas mulheres nos dias atuais ou se isso é fruto do maior acesso aos testes de diagnóstico que detectam o HIV contraído há vários anos. Por isso, a discussão sobre comportamento sexual é complexa e depende de vários aspectos que envolvem políticas de saúde, questões de geração, gênero, raça, entre outros. São lacunas que precisam ser discutias e que têm implicações no planejamento e nas ações de prevenção.

Há poucos dias, foi divulgado que o Ministério da Saúde iria diminuir a verba da campanha do Dia Mundial de Prevenção da AIDS de R$ 6,5 milhões para R$ 1,5 milhão, e que a campanha seria submetida ao crivo da Frente Parlamentar da Família. O governo recuou e negou que isso aconteceria. Qual o impacto que uma proposta como essa teria?

Seria um retrocesso enorme, principalmente porque o HIV está concentrado entre homossexuais, prostitutas e usuários de drogas injetáveis. Seria um perigo colocar a campanha sob o crivo de uma bancada parlamentar controlada por evangélicos.

Mas isso mostra como é importante o controle social sobre o planejamento e a execução das campanhas e das políticas de saúde em geral. A sociedade civil precisa estar incluída e ser um ator determinante nas questões da AIDS, sob o risco constante desse tipo de ameaça, felizmente, por ora, negada pelo Ministro da Saúde.

Qual a sua avaliação sobre a estratégia de prevenção da Aids das campanhas do governo brasileiro?

A mensagem principal de prevenção tem que ser repensada. O foco tem sido prioritariamente o uso da camisinha. No entanto, é necessário ampliar para outras questões. Existem profilaxias pré e pós contato com o HIV; existem procedimentos, como a circuncisão, que dificultam a contaminação pelo vírus.

Tais recursos precisam estar ao alcance de todos. Não são privilégios ou ações de luxo. Constituem um direito. Com o aprimoramento das pesquisas, formas de prevenção vão aparecendo e elas precisam ser divulgadas e oferecidas à população. Apostar preferencialmente no preservativo não funciona, sobretudo com os jovens.

Podemos falar que a AIDS atualmente assusta menos as pessoas?

Não sei se ela assusta menos. Mas é fato que há uma sensação de que a Aids é um problema resolvido, um tema encaminhado, e que deveria haver atenção a outras doenças. É uma ideia equivocada e basta olhar para os números do Ministério da Saúde para se deparar com a gravidade da situação.



O papa Bento XVI afirmou recentemente que a AIDS é um problema ético, o que envolve um julgamento sobre práticas supostamente certas ou erradas que podem levar à contaminação. Acredita que essa ideia ainda é aceita socialmente?

Sim, não tenho dúvidas. Não à toa há um preconceito – que remonta desde o início da epidemia – que associa a infecção a comportamentos moralmente condenados. Quem são as vítimas desse preconceito? Homossexuais, prostitutas e usuários de drogas, populações que concentram os casos de Aids.

Infelizmente, para muitos a Aids é resultado de condutas supostamente erradas. O que nos leva a pensar por que pessoas heterossexuais também são vítimas do vírus. A Aids não é um problema ético, é um problema de saúde que envolve outras instâncias, como a educação. São duas áreas em que estamos em déficit com a população gay.

Seria por causa da dificuldade de compreender aspectos da saúde no marco dos direitos humanos?

Sim, em muitos aspectos direitos humanos e saúde andam em descompasso. Quando olhamos para outras esferas de direitos, como a união civil, a adoção de crianças e a extensão de benefícios sociais, vemos um Brasil avançando.

No âmbito da saúde, entretanto, direitos são dificultados e negados. Estamos na quarta década da epidemia, e vemos que a concentração da infecção se dá entre jovens gays. Não é um cenário casual. Pelo contrário, mostra como predomina uma visão estigmatizante dessa população, vista como maldita, para quem a saúde seria um privilégio. Avançamos em um campo, mas continuamos parados em outros.

Qual a sua expectativa para os próximos anos em termos de planejamento e execução de políticas de prevenção da Aids?

Não sou esperançoso. Vejo uma banalização e uma falta de esforço político para investir na questão da Aids. Menos em relação ao governo federal e mais em relação aos governos estaduais e municipais. Muitas vezes os recursos se perdem por negligência das gestões. Os governos locais parecem não ver a Aids como questão fundamental.

Apesar dos avanços e do reconhecimento mundial do programa de Aids do Brasil, constatáveis pela oferta de testes, pela política de prevenção e tratamento e pela redução da mortalidade, precisamos ampliá-lo para vencer as barreiras burocráticas, aumentar os fundos públicos das ONGs e combater o preconceito que impera.