Publicado em 1987 nos EUA, A mulher no corpo é tido como um marco pioneiro nos estudos de gênero e na antropologia. Construindo uma crítica social, a pesquisadora norte-americana Emily Martin (Universidade de Nova York) examina como os processos culturais afetam as concepções das mulheres sobre seus próprios corpos. Agora, quase vinte anos desde sua primeira edição, o CLAM e a editora Garamond lançaram, no dia 24 de agosto, durante o Congresso da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), a primeira tradução para o português da importante obra de Martin. Na primeira metade dos anos 80, recém-chegada de um trabalho de campo em aldeias chinesas de Taiwan, Martin começou a empreender a grande pesquisa que culminaria no livro. Ao longo de três anos, ela entrevistou 165 mulheres de diferentes etnias, idades e classes sociais de Baltimore. Segundo a pesquisadora, uma das motivações que a levou a escrever o livro foi a perspectiva de sensibilizar não só a comunidade científica, mas também o público em geral, a respeito do que seja uma análise feminista da ciência. “Esperava influenciar a auto-percepção das mulheres a respeito de menstruação, menopausa, gravidez e parto. Quando chegou a hora de começar esse estudo nos Estados Unidos, pouca coisa do que aprendi em Taiwan ajudou. As culturas e percepções femininas são muito diferentes”, diz ela.
Ao contrastar as visões da ciência médica com as da mulher americana comum, Emily Martin explora as diferentes formas pelas quais os processos reprodutivos das mulheres são vistos na cultura americana. Nesta entrevista, ela fala dos objetivos que a nortearam a escrever o livro, os estereótipos da medicina em relação ao corpo da mulher e as conseqüências práticas da obra na vida das mulheres ao longo dessas duas décadas.
Que motivações a levaram a escrever A mulher no corpo?
Primeiramente, eu tinha um contrato de trabalho, o que significava que eu estava livre para trabalhar nos EUA, algo que os antropólogos não faziam muito freqüentemente naquela época. O prestígio era conseguir uma bolsa e ir trabalhar o mais longe possível do país, como eu tinha feito na minha pesquisa anterior nas aldeias chinesas de Taiwan. Por outro lado, meu primeiro filho tinha acabado de nascer e essa experiência me estimulou. Eu estava chocada ao perceber até onde o parto tinha se tornado algo controlado pelos rígidos padrões hospitalares de produção e pela complacência dos médicos em relação a esses padrões. Comecei então a usar o meu treinamento antropológico para examinar a conjuntura cultural de então e ver que mudanças históricas tinham ocorrido.
A sra. define seu estudo como uma análise feminista da ciência. A quem esperava atingir, nos anos 80, com a publicação do livro?
Eu me esforçava por obter algum tipo de visão crítica que pudesse usar para descrever as práticas normais de obstetrícia e a linguagem diferente que eu pensava que as mulheres já estivessem usando para descrever suas experiências. Imaginava que o livro deixaria a comunidade médica muito zangada, e foi o que aconteceu. Por outro lado, com a publicação do livro, esperava também que as mulheres pudessem ficar de olhos abertos a partir de então. A obra acabou tendo mais sucesso entre os alunos de graduação da área médica. Muitos me contaram que haviam enviado uma cópia do livro para suas mães.
Que resultados a publicação trouxe para a auto-percepção das mulheres em relação aos temas enfocados, como menstruação, menopausa, gravidez e parto?
Sabia apenas o que as mulheres escreviam sobre o livro e me contavam – como ele tinha influenciado a maneira de ver e pensar seus próprios corpos, na medida em que passaram a perceber o quão negativa era a imagem que tinham de si mesmas. Muitas mulheres disseram que o planejamento de seu parto tinha sofrido influência do livro: elas já sabiam que teriam obstáculos caso desejassem determinar o tipo de parto. É claro que essas dicas de parto já estavam disponíveis nos livros feministas de saúde sexual. O que verdadeiramente A mulher no corpo forneceu foi uma análise cultural que afetou as mulheres ao longo de suas vidas, fazendo com que desconstruíssem as visões negativas da menstruação como um “desperdício” ou uma “falha na produção”; do parto como um evento perigoso que tinha que ser estritamente controlado; ou da menopausa, a qual significava, para muitas, o fim da capacidade feminina de reprodução. A extensão desse processo de denegrir os corpos femininos perturbava muitas pessoas. Os editores da bíblia feminista de cuidados à saúde, Our Bodies Our Selves, revisaram as seções que tratavam de menstruação e menopausa após o lançamento do livro.
Em 1987, ano em que o livro foi lançado, a sra. chamava a atenção para o fato que os conceitos da biologia estavam repletos de estereótipos culturais. Que estereótipos a sra. identificou na época?
Muitos deles diziam respeito à imagem do corpo da mulher como uma máquina de produção, uma máquina que apenas trabalhava bem quando era a hora de parir, tendo em vista os padrões médicos. Menstruar significava uma falha nessa produção; após a menopausa, a máquina não teria mais função.
E como a sra. vê a questão hoje em dia? Estes estereótipos ainda existem ou a situação mudou?
De algum modo, a situação parece ter mudado para melhor. Eu tenho a impressão que as mulheres esperam ter mais escolhas na hora do parto, por exemplo. Sabemos há muito tempo, desde os trabalhos antropológicos de Robbie Davis-Floyd, que especialmente a mulher de classe média valoriza tipos de partos que envolvam alta tecnologia, devido à sensação de controle e de segurança que isto lhes dá. Em geral, a paciente se tornou a consumidora, tanto nos partos quanto em outros campos médicos, e aos consumidores geralmente é oferecida uma gama de escolhas. Entretanto, às vezes, as escolhas são mais imaginárias do que reais. O problema é que são as mulheres brancas de classe media que ocupam os primeiros lugares como consumidoras das novas tecnologias do parto, e freqüentemente as outras mulheres ficam de fora desta equação.
Que análise a sra. faz dos atuais estudos antropológicos relacionados a temática de gênero e ao corpo da mulher? Que mudanças e contribuições ocorreram desde a publicação de seu livro, na década de 1980?
Tenho observado o desenvolvimento da teoria queer e um rápido florescimento dos estudos sociais, tanto na frente teórica como na etnográfica. A teoria queer e a chamada teoria pós-estruturalista geralmente têm colocado em questão temas que pareciam ser bastante estáveis no tempo em que escrevi A mulher no corpo: raça, gênero e classe, por exemplo.
Tem havido inúmeros estudos antropológicos bastante criteriosos sobre as novas tecnologias, por exemplo a ultra-sonografia, a qual tem sido muito mais usada e que influencia em muito o processo da concepção e do parto. Outra importante área que tem florescido é o modo como a seleção genética durante a gestação pode afetar nossas concepções sobre o tipo de feto aceitável ou não.
Que estudos tem desenvolvido nos últimos tempos?
Depois de A mulher no corpo, escrevi Flexible Bodies: Tracking Immunity in American Culture from the Days of Polio to the Age of AIDS. Este livro foi baseado numa pesquisa feita em colaboração com um pequeno grupo de estudantes de graduação. Pesquisamos organizações ativistas de luta contra a Aids, grupos de suporte a pessoas que vivem com o HIV/Aids, aulas de imunologia em faculdades, uma clínica para pacientes com HIV e um laboratório de imunologia. O livro explora os ideais emergentes de flexibilidade e risco em inúmeros domínios da cultura popular americana, locais de trabalho e na ciência. Assim como em A mulher no corpo, estava interessada em ver como estes ideais funcionam diferentemente de pessoa para pessoa, de acordo com suas diferentes identidades, em virtude da sexualidade, gênero, raça ou classe.
Minha pesquisa atual enfoca as mentes, ao invés dos corpos. O livro, ainda no prelo na Princeton University Press, chama-se Bipolar Expeditions: Mania and Depression in American Culture. Trata-se de uma pesquisa etnográfica voltada à mania e depressão na cultura americana e nos seus contextos históricos. Argumentando que a mania e a depressão têm uma “vida” cultural fora do confinamento de um diagnóstico psiquiátrico, o livro desafia a integridade da linha algumas vezes arbitrária entre razão e loucura, e oferece um caminho para que possamos compreender como pessoas diagnosticadas como maníaco-depressivas (que sofrem de distúrbio bipolar) pertencem inteiramente à condição humana.