Nesta quarta-feira, 11 de abril, o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a constitucionalidade da antecipação terapêutica do parto nos casos de anencefalia, ao julgar a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 54, Ação apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) em 2004. Publicado em 2009, o estudo “Aborto e legislação: opinião de magistrados e promotores de justiça brasileiro”, realizado pelo Cemicamp (Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas) e pela Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp com magistrados e promotores do país, aponta que, dos 1.493 juízes e 2.614 promotores ouvidos, em todas as regiões do país, 78% aprovam uma ampliação das possibilidades de interrupção da gravidez, especialmente na lei sobre a anencefalia (Clique aqui para acessar o artigo em pdf).
Os resultados da pesquisa demonstram como nesse particular o sistema judiciário brasileiro tem atuado de forma relativamente progressista. Em Campinas, por exemplo, cidade de mais de um milhão de habitantes que conta com serviço de aborto legal instalado, foram mais de 300 pedidos deferidos na 1ª Vara do Júri nos últimos 15 anos, relata o juiz titular José Henrique Torres, que tem apreciado pedidos de interrupção de gravidezes não apenas por anencefalia, mas também por acrania (ausência parcial ou total dos ossos do crânio), agenesia renal bilateral (ausência dos dois rins), Síndrome de Patau, Síndrome de Edwards e outras anomalias fetais que inviabilizam a vida extrauterina.
“O que pesa em minhas decisões é a ausência de exigibilidade de conduta diversa. No caso da anencefalia, especificamente, concordo que não há vida no sentido de exigência de uma proteção jurídico-penal. Assim, não se pode exigir da mulher uma conduta diferente que não seja a de interromper a gravidez, diante do sofrimento físico e psicológico ao qual ela está exposta”, justifica o magistrado, professor de Direito Penal na PUCCAMP, membro da Associação Juízes para a Democracia e da Federação das Associações dos Juízes para a Democracia da América Latina e Caribe.
No Brasil, cujo Código Penal de 1940 estabelece que o aborto praticado por médico somente não seja punido quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou quando a gravidez for resultado de estupro (todos os demais casos são passíveis de punição, com penas que variam de um a dez anos de prisão para a mulher e para a pessoa que realiza o aborto), foram mais de 25 mil autorizações para a interrupção de gravidez de anencéfalos embora, em muitos casos, apesar de o diagnóstico de anencefalia por meio de ultrassom ser 100% seguro e realizado com 12 semanas de gravidez ou até menos, o trâmite processual faça com que a autorização chegue quando a mulher já está para dar à luz. Foi o que aconteceu com Severina, uma agricultora pobre e analfabeta da cidade de Chã Grande, no interior de Pernambuco. Em 2004, ela estava internada em um hospital público da capital Recife para interromper a gestação de um feto anencéfalo na mesma tarde em que o STF cancelou a liminar que autorizava o procedimento. Grávida de 14 semanas de um feto sem cérebro, teve que voltar para o sítio em que vivia, iniciando uma longa jornada por tribunais e hospitais. Foram três meses de idas e vindas para o novo alvará autorizando o aborto sair, até que em janeiro de 2005 Severina deu à luz um feto natimorto. (Assista abaixo ao documentário “Uma história Severina”, da antropóloga Débora Diniz)
“O grande problema é que não há uma determinação especifica de competência habilitada de juiz para deferir isto. Vai depender muito da interpretação individual de cada juiz. Pelo Brasil afora, os pedidos têm sido apreciados tanto por juizes da Vara do Júri como de Varas Cumulativas (cível e criminal), não há uma definição objetiva da competência do juiz”, afirma José Henrique Torres.
No entanto, diferentemente do que ocorre em outras cidades do país – especialmente as das regiões mais pobres –, em Campinas, localizada no bem estruturado estado de São Paulo, a decisão judicial é tomada em 48 horas.
“A despeito das divergências, tem-se entendido ser cabível a interrupção da gestação nesses casos. Como no Código Penal brasileiro existe o permissivo legal do abortamento em caso de risco de morte da gestante, alguns juizes entendem que a mulher sofre riscos maiores durante a gravidez de um anencéfalo e ampliam essa proteção legal. Outros entendem esta interrupção como uma necessidade da mulher, e outros, como eu, levam em conta a ausência de exigibilidade de conduta diversa. Não há como exigir conduta diversa em razão da absoluta inviabilidade fetal e do sofrimento físico e psicológico da mulher”, avalia o juiz.
Em sua análise, este deverá ser o argumento que mais pesará na decisão dos juízes da Suprema Corte.
“A argumentação específica da ADPF 54 é que, no caso da interrupção da gravidez de um feto anencéfalo, não se pode falar em vida no sentido de proteção jurídico-penal. Não há o bem ‘vida’ a ser protegido, então não haveria aborto. Há uma interrupção do processo gestacional sem que isso seja chamado aborto. O que vai pesar mesmo é a opção diante de todo o sofrimento da mulher”, analisa Torres.
Segundo ele, se o STF acolher a Ação, o país dará um grande passo no sentido da discussão sobre a descriminalização do aborto, receio maior das correntes pró-vida que têm se mobilizado para que o Supremo indefira a questão.
“Espero que isto seja efetivamente deferido, que seja considerado constitucional e possa ser estendido para ao demais casos de mal-formação fetal, como uma garantia do direito da mulher, e que elas posam ser atendidas nos serviços públicos de saúde”, afirma o magistrado, explicando que uma decisão favorável do STF no julgamento deste 11 de abril não vai obrigar as mulheres a interromperem suas gravidezes por estarem carregando um feto sem cérebro, ou seja, a constitucionalidade do procedimento não significará a imposição da interrupção deste tipo de gravidez.
“Se ela quer levar esta gestação a termo, o Estado tem o dever de prover toda a assistência necessária. O que pesa é o sofrimento ao qual a mulher é exposta quando se vê nestas circunstâncias. Aí sim ela está sendo obrigada a suportar este sofrimento. Acima de tudo está o direito da mulher”, finaliza o juiz, lembrando que o sistema internacional de direitos humanos tem acolhido essa petição e já condena a criminalização do aborto em caso de anencefalia ou outra inviabilidade fetal extrauterina. Recentemente, o Peru foi condenado internacionalmente por não garantir esse direito a uma mulher.