CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

As transformações de um campo

Objetivando mapear o campo profissional da sexologia em seis países da América Latina – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru – numa perspectiva comparativa, a pesquisa Sexualidade, Ciência e Profissão na América Latina é fruto de uma parceria entre o CLAM e o Inserm (Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica), da França. O estudo foi inspirado em pesquisa similar empreendida pelo psicossociólogo Alain Giami, do instituto francês, em seis países europeus – Inglaterra, Itália, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega, entre 2003 e 2005. Na maioria desses países, constatou Giami, a sexologia não é necessariamente uma profissão médica – é composta por psicólogos, educadores, enfermeiras e também por alguns médicos. E a maior parte dos sexólogos são mulheres. “Apenas na França detectamos que os sexólogos, em sua maioria, são médicos (homens), o que significa que lá a sexologia é muito mais medicalizada que em outros países”, lembra o pesquisador francês.

O primeiro volume da pesquisa latino-americana será lançado no dia 13 de maio e apresenta o trabalho da equipe brasileira, coordenada pelas pesquisadoras Jane Russo (IMS/UERJ) e Fabíola Rohden (UFRGS) e composta por Livi Faro, Igor Torres e Marina Nucci. Comparativamente, no contexto latino-americano, percebe-se algumas particularidades, em linhas gerais: uma impressão é que, enquanto no Brasil e na Argentina a tensão entre médicos e psicólogos é importante na estruturação do campo, isto não é importante no México. No Chile, o campo se apresenta pouco estruturado. No Peru e da Colômbia a sexologia seria um fenômeno hoje em declínio. Na Colômbia e no México parece haver uma articulação forte do campo com o movimento dos direitos sexuais e com a educação sexual, e a sexologia se apresenta de alguma forma articulada com o controle da natalidade, diferentemente do Brasil.

No Brasil, a formação do campo começa no final dos anos de 1970, sendo a ginecologia e a psiquiatria/psicologia as vertentes mais fortes nesta constituição. Até que no final dos anos 1980 entram no campo os urologistas. “Eles entram com um outro olhar e um outro viés, muito mais biomédico, evidentemente ligados à indústria farmacêutica, com o advento dos remédios para a disfunção erétil, como o Viagra. Um dado interessante é que, enquanto a sexologia clínica dos ginecologistas tinha mais força no Rio de Janeiro, durante as décadas de 70 e 80, os urologistas ligados à medicina sexual – essa força mais recente ligada aos laboratórios – são, sobretudo, paulistas. E mais de 90% destes urologistas são homens, ou seja, observa-se que a sexologia no Brasil começa composta por uma maioria de mulheres e vai se masculinizando e se biomedicinizando com o passar dos anos”, relata a pesquisadora.

Segundo a coordenadora do estudo, o campo se ramifica entre as vertentes da saúde sexual e da medicina sexual nos anos 90 e 2000, sendo esta última totalmente ligada à ideia da disfunção sexual masculina e aos medicamentos.

“É importante observar que não é somente o gênero dos profissionais do campo que se masculiniza, mas também o gênero dos pacientes, e são as concepções tradicionais de gênero que sustentam essa dualidade ou essas vertentes da sexologia. Segundo tais concepções, a saúde reprodutiva e a psicologizaçao da sexualidade têm mais a ver com a mulher, enquanto a saúde sexual, mais ligada à fisiologia e à endocrinologia, mais a ver com o homem”, analisa Alain Giami.

“Acredita-se que o homem seja mais sexual, mais físico do que a mulher. Então, o advento dos remédios para disfunção erétil – termo usado hoje para se referir à antiga impotência sexual masculina – deslocou o campo e o masculinizou. No Brasil, o campo se deslocou inclusive geograficamente, tornando São Paulo mais atuante do que o Rio de Janeiro”, afirma Jane Russo.

A pesquisa mostra como o surgimento de medicamentos para a disfunção erétil, como o Viagra, impulsionou fortemente o campo. “Especialmente no que diz respeito ao financiamento de pesquisas, congressos, conferências, publicações etc. Hoje em dia, para a SBRASH (Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana) – integrante da FLASSES (Federação Latino-americana de Sexologia e Educação Sexual) e da WAS (Associação Mundial da Saúde Sexual) – fazer um congresso é uma dificuldade, já que eles não têm nenhum financiamento de laboratório. Já a ABEIS (Associação Brasileira de Estudos das Inadequações Sexuais) – vinculada à SLAMS (Sociedade Latino-americana de Medicina Sexual) e à ISSM (International Society of Sexual Medicine) – é completamente financiada. Ou seja, hierarquicamente falando, o poder da vertente da medicina sexual, que tem o apoio da indústria farmacêutica, é maior”, observa Alain Giami.

Os pesquisadores ressaltam, entretanto, que a categoria dos urologistas e a especialidade medicina sexual ganham força no Brasil no contexto de um processo mundial, anterior ao surgimento dos remédios para disfunção erétil. A primeira instituição precursora da medicina sexual – chamada International Society for Impotence Research – trouxe para o Brasil um congresso internacional sobre impotência, realizado em 1990 em São Paulo pela recém-criada Associação Brasileira de Estudos sobre a Impotência (ABEI). Mais tarde, com a mudança na nomenclatura de “estudos sobre a impotência” para “medicina sexual”, com o intuito de incluir as mulheres, a ABEI vira ABEIS (Associação Brasileira de Estudos das Inadequações Sexuais).

“Porque se percebeu que, nos estudos sobre impotência, 50% dos seres humanos estavam de fora. Ela primeiramente se transforma em uma especialidade masculina, e depois se percebe que isso vai restringir a clientela do campo”, conclui Jane Russo.

A partir desse levantamento comparado, os pesquisadores pretendem discutir o peso diferenciado de cada uma das vertentes da sexologia, em especial a vertente clínica e a vertente ligada à educação sexual. No caso da vertente clínica, a ideia é investigar o peso relativo das diferentes profissões (notadamente as diferentes especialidades médicas e os psicólogos), sua relação com gênero e, sobretudo, com a indústria farmacêutica. As equipes de pesquisadores buscaram entrevistar os personagens mais relevantes do campo de cada país.

O relatório brasileiro encontra-se disponível para download. (Clique aqui para baixá-lo)

No dia 13 de maio, às 10h, será realizada no Auditório do Instituto de Medicina Social da UERJ a mesa redonda “Sexualidade, Ciência e Profissão”, na qual as coordenadoras da pesquisa no Brasil, Jane Russo e Fabíola Rohden (UFRGS), abordarão os temas “Da sexologia clínica à medicina sexual” e “Medicina sexual – a produção de novos diagnósticos”, respectivamente. A mesa será coordenada pelo antropólogo Sergio Carrara (CLAM/IMS/UERJ).