CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Clube das Mulheres

Mulheres majoritariamente brancas e jovens, pertencentes em sua maioria à classe média baixa. Esse é o perfil das mulheres que freqüentam shows de strip-tease masculino, os chamados Clubes das Mulheres, foco da pesquisa de doutorado desenvolvida no Instituto de Medicina Social pela pesquisadora Marion Arent. Fruto da pesquisa, seu artigo “Performances de gênero em um Clube de Mulheres” faz parte da coletânea Prazeres Dissidentes, livro organizado pela antropóloga Maria Elvira Díaz-Benitez e pelo sociólogo Carlos Fígari, recentemente lançado pelo CLAM e pela Editora Garamond.

Na entrevista a seguir, Marion fala sobre os enunciados normativos de tais shows e como a masculinidade é manifestada nesses espaços.

A sra. pesquisou o Clube das Mulheres, lugar onde mulheres assistem homens fazendo strip-tease. Poderia comentar a relação deste tipo de show com a expansão do mercado contemporâneo do sexo, principalmente metropolitano?

Os últimos anos do século XX trouxeram, nas sociedades ocidentais, a expansão do comércio do erotismo e da pornografia e a ruptura com muitas das convenções mais restritivas referentes à moral sexual. No centro dessa expansão está um processo de emergência e progressiva hegemonia de uma ética hedonista. Neste cenário, práticas sexuais que já foram objeto de intensa rejeição ou repressão, tais como a masturbação, a sodomia, o homoerotismo, o adultério, a prostituição e a pornografia, são foco de debates e de intensas negociações sociais com vistas à sua “normalização”. O campo investigado ilustra esta expansão, apesar da qual a exposição ao vivo, para mulheres, do corpo masculino com finalidades eróticas, permanece um fenômeno ainda pouco abordado na academia. A carência de estudos sobre o tema contrasta com a crescente importância da indústria pornográfica enquanto um setor economicamente significativo dentre as produções culturais.

Seu artigo menciona uma mudança nas convenções sociais atuais em relação ao passado. O fato de que os espetáculos estejam dirigidos a um público de mulheres e que sejam os prazeres femininos aqueles que se colocam em cena no Clube, poderia ser pensado como deslocamento das convenções?

Neste tipo de espetáculos, onde corpos viris são objetificados com vistas ao deleite feminino, ocorrem transgressões, especialmente pela inversão das normas que colocam no lugar do agente que causa a ação os homens e reserva para as mulheres o lugar da resistência, já que nas sociedades ocidentais comumente delimita-se o campo da iniciativa nos encontros heterogenéricos à procura da mulher pelo homem, cabendo às mulheres a provocação do desejo masculino – conseqüência da exposição cuidadosa de seu corpo – e a proposição de atendê-lo passivamente.

Basicamente calcada na representação do homem enquanto objeto erótico de uma mulher que se permite viver esta fantasia, a inversão operada pelo espetáculo é encompassada pela dicotomia que polariza os gêneros enquanto sujeito / ativo / masculino versus objeto / passivo / feminino. Apesar das palavras de um dos organizadores, ao afirmar que “entrar aqui já é quebrar preconceitos”, a ruptura com os preceitos normativos não vigora hegemônica ou, pelo menos, acontece de modo paradoxal. O quadro que se apresenta é matizado por um colorido sutil. Há uma constante tensão entre ruptura e continuidade, inversão e reafirmação, destas convenções, intensificada ou minimizada a partir da amplitude dos movimentos do pêndulo da atividade / passividade, oscilante entre os pólos masculino e feminino.

Não é possível negar que uma certa revolução simbólica ecoa através do acesso feminino à fruição do prazer sexual per se, ainda que vivido na fantasia. Mesmo que as continuidades com as convenções de gênero e com a moral sexual tradicional sejam flagrantes, há seguramente um processo de transformação em relação às convenções de gênero, pois seria impensável um “Clube das Mulheres” há algumas décadas atrás, ou mesmo atualmente numa pequena cidade de interior, por exemplo. Isso não quer dizer, obviamente que a “evolução” dos costumes seja garantia de bem-estar. Se antes vigoravam restrições, especialmente aquelas direcionadas às experiências femininas no campo da sexualidade, agora, desejar e manter relações sexuais é quase um dever. O preço a pagar, no caso de algumas freqüentadoras deste espaço, consiste em frustrar uma possível demanda de troca afetiva e de desenvolvimento de um vínculo com um homem, para usufruir da orgia com vários. Somam-se ainda a esta contabilidade os estigmas de “puta”, “vagabunda”, “galinha”, “piranha”, “cachorra” ou “velha assanhada” que ameaçam a auto-estima conquistada pelo exercício da sedução.

Quais seriam as principais regras de interação nos shows? E como a partir delas é possível ler enunciados normativos?

Na dinâmica de funcionamento de cada espetáculo, opera um interjogo de permissões e restrições, cujas características essenciais residem na multiplicidade de arranjos, na possibilidade de transgressão e no esforço em prol da satisfação da clientela. Dentre as regras que orientam a atuação dos strippers nos shows, está a de que cada um deve dançar duas músicas longas ou três curtas. É obrigatório levar mulheres ao palco, evitando aquelas que podem prejudicar o espetáculo, como as excessivamente alcoolizadas. É proibido beijar as mulheres na boca em noite que não é a do ‘Beijo na Boca`, bem como desnudá-las. Há tempos atrás os sedutores tiravam as calcinhas delas, algo atualmente vetado. Tirar a sunga no palco às vezes é permitido, às vezes não, mas nunca podem mostrar os genitais. Como disse um sedutor, “às vezes não pode se empolgar muito, fazer algo a mais”, aquilo que um dos organizadores qualificou como “exageros apelativos”. É de inteira responsabilidade dos strippers o controle do que acontece no palco, de modo que eles devem conter as atitudes femininas direcionadas à subversão da ordem, como as tentativas de tirar-lhes a sunga, tocar seu pênis ou beijar sua boca.

A punição sofrida pelos sedutores em decorrência da infração às regras é a suspensão do show, definida caso a caso. Mais do que uma suspensão temporária, a aparência efeminada dos strippers pode gerar um afastamento, definitivo ou não, do quadro de sedutores. Aqui a aparência viril é lei.

Há também algumas normas tácitas, especialmente no que concerne à postura feminina vigente neste campo, onde a feminilidade convencional está nitidamente marcada. Dois elementos se associam na configuração deste perfil. Um deles, o fato das mulheres jamais depositarem cédulas na sunga dos sedutores, algo que não é vedado, mas é regra: nunca vi isso acontecer e os depoimentos dos/as informantes confirmaram isso. Outro, os gritos, estimulados pelos organizadores ao microfone: “Quem gostou grita para ele!”. Tais aspectos são coadjuvantes do que melhor caracteriza, neste contexto, a performance feminina: a passividade, ainda que alternada com a conduta ativa em determinadas ocasiões.

No clube, os strippers são chamados de sedutores. Este “apelido” contém ideais de masculinidade. Como é manifesta corporal e ritualisticamente a masculinidade? Qual é o papel da virilidade tanto no show como na organização de significados de gênero nesse espaço e que atitudes e códigos são usados para reforçar uma atmosfera heteronormativa?

Os corpos dos strippers apresentam-se extremamente hipertrofiados, depilados, via de regra tatuados e bronzeados. Há um negro, nenhum oriental.

A masculinidade aqui hegemônica – heterossexual e viril – marca importante presença. Ela aparece representada por uma combinação de elementos: a força física dos strippers, seus corpos hipertrofiados, a postura ativa, o controle corporal (não rebolar no palco, por exemplo), os personagens incorporados (em geral, homens em posições dotadas de algum poder), a constante disposição para o sexo e a manifestação de um desejo incondicionalmente direcionado às mulheres. Além de onipresente, o desejo do “macho” pela “fêmea” é intenso, pois várias delas sobem ao palco a cada espetáculo e eles conseguem satisfazê-las sempre, ainda que no plano da fantasia.

A centralização da atividade enquanto característica masculina aparece nas encenações travadas no palco, desde as performances executadas, onde jamais figura sequer a mais remota referência à passividade simbolizada pela penetração anal masculina – que poderia existir de modo figurado mediante o uso de objetos, por exemplo -, bem como pelo controle da situação, sempre mantido pelos sedutores a despeito das freqüentes iniciativas femininas de transgressão da ordem, como já comentado.

Além disso, a teatralização de uma boa performance (hetero)sexual confere ao sujeito o status de quem detém um saber sobre as artes da sedução e do erotismo e reafirma sua masculinidade enquanto cumpre o papel socialmente atribuído ao seu gênero, de “predador heterossexual” sempre disposto à interação erótica. O homoerotismo está ausente tanto nas cenas travadas no palco quanto no discurso dos/as informantes. A imagem de virilidade está associada à heterossexualidade e a figura do casal heterogenérico supõe o binarismo sexual / genérico.

No Clube das Mulheres, ao mesmo tempo em que algumas freqüentadoras disputam para subir ao palco e contracenar com o stripper, pretendem se colocar em posição de submissão aos dançarinos. Como a sra. interpreta essa ambigüidade ou inversão relativa de valores?

O espetáculo de strip-tease masculino para mulheres parece, em seu aspecto exterior, uma inversão do roteiro sexual tradicional, em cujos termos a mulher figura como objeto sexual passivo e o homem como consumidor e dominante. Apesar desta aparência, esse tipo de espetáculo preserva a dominação masculina. O desejo das consumidoras tem, paradoxalmente, um importante peso nesta preservação, já que elas querem ver ali um homem. Strippers têm a função de seduzir a fim de atender à fantasia deste público, que ao pagar por isso se coloca numa posição ativa: a de exigir ser seduzida. A mulher é simultaneamente ativa (pagando) e passiva (sendo seduzida). Ele, sujeito da sedução, é também objeto, um objeto fetichizado. A posição de objeto – feminilizante – dos sedutores é anulada pela conjunção de dois elementos: a demanda por virilidade e o vínculo heterossexual entre clientela e strippers, cuja masculinidade é assim reforçada.

Já elas podem ser ativas até certo ponto; estão ali por opção e escolhem candidatar-se a subir ao palco ou não, mas lhes é vedado abdicar da passividade à medida que devem assumir uma postura de submissão ao controle do sedutor, transformando-se em um “objeto na mão dele”, como verbalizou um dos organizadores. Entretanto, elas aderem a esta norma voluntariamente, optam por isso. Pagam para estar ali e disputam um espaço no palco. O desejo de ser objeto do desejo daqueles homens destitui em parte o caráter de submissão veiculado nestas cenas, pois elas são donas da sua vontade. Não podem fazer tudo o que querem, mas demonstram querer – muito – tudo o que fazem ali. É um jogo, onde dominação e submissão são intercambiáveis, oscilam entre os strippers e as clientes, com prevalência dos primeiros. Elas querem ser “seduzidas” pelos sedutores, que para cumprir esta fantasia precisam conduzi-las no palco.

Em suas visitas ao Clube, notou algum perfil etário, étnico e social que prevalecesse entre as freqüentadoras?

São mulheres majoritariamente brancas, de todas as idades (com prevalência de jovens), pertencentes em sua maioria à classe média baixa.