CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Corporeidade transgressora

A educadora Nilma Lino Gomes acha que pensar a relação entre gênero, corpo, identidade negra e sexualidade pode ajudar a aprofundar e dar outras interpretações a questões como a dos direitos reprodutivos e contracepção versus religiosidade.

Em junho de 2002, Nilma defendeu sua tese no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), a qual apresentava uma etnografia em salões étnicos na cidade de Belo Horizonte, espaços, segundo ela, onde corpo e cabelo são tomados como expressões da identidade negra. A pesquisa destacava o importante papel desempenhado pela dupla cabelo e cor de pele na construção dessa identidade e na maneira como o negro se vê e é visto pelos outros.

“Penso que o cabelo do negro é um dado da corporeidade que nos ajuda a compreender o conflito racial vivido por negros e brancos no Brasil. A expressão ‘cabelo ruim’, ‘cabelo bom’ tão usada em nossa sociedade é um dos exemplos de como o cabelo crespo expressa a tensão estrutural das relações raciais no Brasil”, diz ela. Algumas reflexões decorrentes da tese estão no artigo “Salões étnicos como espaços estéticos e políticos de identidade negra”, integrante da coletânea Movimentos Sociais, Educação e Sexualidades (CLAM / Editora Garamond), lançada recentemente em Florianópolis.

Nilma é coordenadora do programa Ações Afirmativas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo a pesquisadora, “a importância do programa é o fato de comprovar que é necessário e possível o investimento na permanência bem sucedida de alunos negros na universidade. Não dá para pensar que a assistência estudantil oferecida pela universidade atinge a todos os alunos da mesma forma e nem dá para reduzir a questão do negro no ensino superior à idéia de assistência”, afirma nesta entrevista.

Em sua tese, a sra. define os salões étnicos como espaços estéticos e políticos de identidade negra, lugares em que corpo e cabelo são tomados como expressão da identidade negra. Qual a importância desses dois ícones identitários?

No que se refere à questão do negro, destaco que para se entender o corpo e o cabelo como símbolos identitários é preciso compreendê-los no contexto da cultura, ou seja, a forma como ambos são vistos por nós, dizem respeito a uma construção cultural. Ambos ganham simbolismo nos contextos históricos, sociais e políticos que se inserem. No processo de classificação dos grupos étnico-raciais, a materialidade do corpo recebe uma leitura cultural e, no caso dos negros brasileiros, essa leitura é atravessada pela forma como as relações raciais se construíram no Brasil, ou seja, num contexto marcado pela escravidão, pelo racismo ambíguo, pelo mito da democracia racial e pela desigualdade social e racial. Ao mesmo tempo, o corpo e o cabelo são marcados também por uma história de luta, de transgressão, de busca de expressão e de construção da identidade advinda dos próprios negros. Esses fatores todos estão presentes na sociedade quando lidamos, classificamos, interagimos e vivenciamos o “ser negro” na sociedade brasileira. Por isso a dupla cabelo e cor da pele pode ser entendida como um dos fatores primordiais para se compreender a maneira como o negro se vê e é visto pelo outro. Não se pode pensar a corporeidade negra dissociada desses fatores.

Penso que o cabelo do negro é um dado da corporeidade que nos ajuda a compreender o conflito racial vivido por negros e brancos no Brasil. A expressão “cabelo ruim”, “cabelo bom” tão usada em nossa sociedade é um dos exemplos de como o cabelo crespo expressa a tensão estrutural das relações raciais no Brasil, a qual tem sido alvo de reações, transgressões e ressignficações oriundas dos próprios negros organizados em movimentos sociais ou por meio de diversas práticas culturais e estéticas. O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Por isso, é importante compreender melhor a relação do negro com o corpo e com o cabelo. A mudança do cabelo pode significar várias e múltiplas vivências, situações sociais e processos identitários. O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele comunica e informa sobre as relações raciais.

Em seu trabalho, a sra. analisa a relação entre identidade negra, corpo, gênero e sexualidade. Como articular esses temas?

Essa é uma articulação complexa e há muito que se estudar sobre ela. A corporeidade está profundamente relacionada com as identidades que construímos em sociedade e na cultura. Ela está relacionada com a construção do masculino e do feminino, com as hierarquias de poder, com a diversidade étnico-racial, com as leituras, vivências e interpretações sobre a sexualidade. Acho que o mais importante é pensar a relação entre identidade negra, corpo, gênero e sexualidade para além da leitura sobre “a sexualidade da mulher negra e do homem negro” no contexto do racismo e das relações de poder. Esses fatores são importantes e não se pode desconsiderá-los quando estudamos as relações raciais, porém, há também um outro lado: aquele que se refere ao negro e à negra como sujeitos, que lidam com sua corporeidade e sua sexualidade e fazem escolhas. Essas escolhas são também políticas e é importante entendermos como o corpo negro pode ser considerado historicamente não como um corpo submisso mas, sim, um corpo transgressor diante do processo de dominação, dos padrões morais e sociais impostos. Pensar a relação entre gênero, corpo, identidade negra e sexualidade pode nos ajudar a aprofundar e dar outras interpretações a questões como: direitos reprodutivos, contracepção versus religiosidade, a esfera dos afetos, sexo, corpo e poder, corpo e trabalho, posturas masculinas e femininas, considerando que estes têm implicações diferentes na vida dos sujeitos quando articulamos gênero, raça, idade e classe.

Em seu artigo, a sra. assinala que o processo de construção da identidade/corporeidade negra no país – processo de tornar-se negro – se dá por meio de um movimento dialético de rejeição/aceitação e negação/afirmação do corpo. Esse processo é o mesmo para todas as pessoas negras?

Eu diria que há uma probabilidade muito grande de que muitas pessoas negras vivenciem o processo de construção da identidade negra dessa maneira. Tal situação não está impregnada “nas pessoas”, mas precisa ser entendida no contexto do racismo e das relações raciais construídas no Brasil. As pesquisas já realizadas sobre a construção da identidade negra apontam nessa direção. Porém, observo que as análises realizadas tendem a privilegiar o movimento de “rejeição/aceitação” do ser negro. Eu mesma no início das minhas pesquisas me voltava mais para esse aspecto. No entanto, o contato com os salões étnicos me fez compreender o movimento de “ressignificação” do ser negro e este é o que eu considero atualmente como o mais importante e pouco explorado pelo campo de estudos sobre relações raciais e identidade negra no Brasil. Essa ressignificação vai depender da forma como o sujeito lida com a sua identidade e com a sua corporeidade, da sua inserção em diferentes espaços sociais e das leituras e interpretações sociais e individuais sobre o “ser negro” no Brasil. Por isso, a ressignificação da identidade negra é coletiva, mesmo que se anuncie individual. Eu diria que, até o momento, esse é o entendimento que a pesquisa me possibilitou sobre o complexo processo de construção da identidade negra no Brasil mas, tenho certeza, de que há mais coisas que ainda não descobrimos. E é esse “a mais” que estou empenhada a pesquisar.

Por que boa parte de homens e mulheres negras lidam com a corporeidade (cabelo, corpo etc) de forma tão conflituosa e o que isso nos mostra?

Acho que nos mostra como o corpo foi transformado pela cultura num símbolo identitário, independentemente do sexo, idade, cor, nacionalidade etc. Estamos diante de um significado social do corpo que permeia todos os povos. Nesse processo, o contexto histórico e político vivido pelos homens e mulheres imprimem marcas e especificidades a esse corpo. Eu diria que o simbolismo do corpo assume uma tal importância na cultura que, através do estudo dos corpos, podemos compreender vários aspectos da vida social e da individualidade das pessoas.

O cabelo ganha importância na constituição da corporeidade nas diversas culturas por ser um veículo capaz de transmitir diferentes mensagens, por isso possibilita as mais diferentes leituras e interpretações. Desse modo, para muitos, o cabelo é a moldura do rosto e um dos primeiros sinais a serem observados no corpo humano.

A manipulação do cabelo se faz presente nos mais diversos povos. A meu ver, essa situação apresenta algo mais complexo: para se compreender o sentido social do cabelo e do corpo nas diversas culturas, precisamos aprofundar um pouco mais o estudo sobre as técnicas corporais e sua relação com os fatores fisio-psico-sociológicos que as acompanham, conforme nos ensinou Marcel Mauss. Isso nos ajudará a entender os conflitos em torno da corporeidade.

Como a sra. analisa as referências ancestrais africanas recriadas no Brasil?

Acho que o mais importante é conhecer melhor a África, sua história, sua cultura e seus povos. Vivemos, no Brasil, uma total ignorância em relação a esses aspectos. Essa ignorância não é construída no vazio, mas é fruto do racismo, do mito da democracia racial, de uma imagem distorcida e/ou mitificada sobre a África que aprendemos a construir em sociedade. Mudar essa visão é desencadear um processo educativo na sociedade brasileira em relação às nossas referências ancestrais africanas, não para cultuá-las e cristalizá-las, mas para conhecê-las, compreendê-las e valorizá-las como formadoras da nossa sociedade. Poderemos, então, ter uma outra compreensão sobre a escravidão e a história de dominação colonial dos países africanos, da riqueza das culturas e reinos africanos, as guerras, os conflitos, a arte, a metalurgia, a estética.

Penso que ao conhecermos mais as nossas referências ancestrais africanas conheceremos um pouco mais a forma como a sociedade brasileira se construiu e entenderemos o que alguns autores chamam de “africanidades brasileiras”. Não há aqui nenhuma leitura essencialista sobre a África mas o reconhecimento de que sabemos pouco sobre uma das matrizes da construção da nossa sociedade e sobre a diáspora africana. Porém, esse conhecimento não pode ficar restrito às referências ancestrais vendo-as apenas na perspectiva do passado. Ele tem que se articular com o que é a África, hoje, seus dilemas, conflitos, etnias, história e inserção internacional.

Atualmente, há tentativas de inserir esse processo educativo desde a educação básica. Temos, hoje, a lei 10.639/03 e as diretrizes curriculares nacionais dela advindas. Por meio destas, o estudo da história da África e das culturas afro-brasileiras tornou-se obrigatório nas escolas de educação básica públicas e privadas. Há um processo longo a ser realizado para que a lei se transforme efetivamente em práticas pedagógicas. Espero que esse movimento feito na educação básica traga luzes e estimule a discussão nos cursos superiores.