Entre 1995 e 2000, o antropólogo Marcos Benedetti, pesquisador do Núcleo de Antropologia do Corpo e da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NUPACS/UFRGS), pesquisou os principais processos criados e experimentados pelas travestis para viabilizar o projeto de ser mulher, abordando a fabricação do feminino no corpo. “O corpo das travestis é, sobretudo, uma linguagem. É no corpo que elas se produzem enquanto sujeitos”, observa ele.
Benedetti acompanhou, em Porto Alegre, um grupo de 85 informantes em diferentes situações cotidianas: no trabalho na prostituição, em casa, com a família ou com amigos. A aproximação e a relação entre pesquisador e pesquisadas, lembra o antropólogo, foi tranqüila, possivelmente por ser ele membro de uma ONG que realiza trabalhos de prevenção à Aids. “Quando decidi desdobrar minhas inquietações em um projeto de investigação, eu já tinha uma ‘entrada’ no campo. Já conhecia muitas pessoas, sabia seus nomes e algumas histórias pessoais, e compreendia algumas de suas lógicas”, relata.
A pesquisa resultou no livro Toda Feita, lançado em dezembro de 2005 pelo CLAM e pela Editora Garamond. O título da obra é uma alusão ao adjetivo que caracteriza uma travesti que se empenhou em toda sorte de processos de transformação corporal na construção de seu feminino. E chegou lá. “Toda feita é a expressão que indica o resultado eficiente de todo o processo de transformação e fabricação do corpo e, portanto, do próprio gênero das travestis”, diz o autor.
Ele lembra que algumas “inquietações” o levaram a realizar o estudo. “Inquietava-me o intenso preconceito e discriminação dirigidos a esta população. Além disso, tinha uma curiosidade imensa em relação aos processos de modificação corporal por elas levados a cabo. Queria saber como e por quê elas realizavam todas aquelas intervenções corporais, que à primeira vista pareciam violentas, mas que depois descobri serem recheadas de significado, porque concretizam os domínios do gênero em suas vidas”, explica o pesquisador nesta entrevista.
Historicamente, como diferentes disciplinas como a Antropologia, a Medicina e a Psicologia têm abordado e analisado o tema das transformações de gênero e do fenômeno trans? São visões diferentes, não?
A antropologia talvez seja o saber especializado que apenas mais recentemente se debruçou sobre o fenômeno do travestismo ou das “transformações do gênero”, como eu preferi chamar no livro. Nas últimas duas décadas foram produzidos bons estudos a este respeito, que buscam ressaltar a natureza cultural dos fenômenos, demonstrando como os valores e lógicas do gênero são fundamentais para a compreensão de todo o processo e destacando o lugar central que o corpo precisa ocupar em nossas análises. Estas talvez sejam as modalidades atuais de se abordar o fenômeno das travestis.
Os diferentes saberes especializados do campo científico constroem explicações e análises sobre os fenômenos que estão sempre de acordo com os contextos sócio-histórico-culturais. Neste sentido, até recentemente, os campos médico e “psi” ocuparam um lugar central nas análises sobre os processos de transformação de gênero, em geral buscando uma explicação causal, localizando em algum substrato orgânico ou psíquico o motivo que leva as pessoas a empreenderem os processos de transformação do gênero. Estas modalidades de explicação ainda têm muita força na nossa sociedade e, de uma maneira geral, são os saberes e conceitos que dominam o campo da transexualidade no Brasil, seja no âmbito dos programas de cirurgia de transgenitalização, ou mesmo em termos de discussões no campo dos direitos, no judiciário ou nos meios de comunicação de massa.
Também não devemos esquecer que ao lado destas explicações “científicas”, sempre houve um sem fim de argumentos de ordem religiosa-moral (algumas vezes imiscuídas em teorias científicas) que caracterizaram o fenômeno das transformações do gênero como uma atitude puramente voluntária do sujeito, e por isso incorreta, pecaminosa e desviante. Ainda que cada vez mais este tipo de explicação esteja caindo em descrédito, são repertórios presentes na vida cotidiana e que servem para “explicar” a condição das travestis, em especial no que se refere a sua associação com a atividade da prostituição.
Enfim, creio que a maior diferença entre estas várias possibilidades de abordagem do fenômeno representado pelas travestis é que, enquanto a Antropologia propõe uma análise construtivista do fenômeno, isto é, uma abordagem que ressalte os múltiplos condicionantes e significados históricos e culturais que impulsionam indivíduos a se empenharem neste processo de transformação de gênero para satisfazerem suas necessidades subjetivas (que, por sua vez, também são produtos culturais); as ciências médicas e “psi” buscam essencializar a questão, localizando em algum ponto específico o motivo que leva as travestis a modificarem seus corpos e se empenharem numa construção feminina. No mais das vezes, desconsideram todos os constrangimentos sociais e culturais que estão entranhados no fenômeno.
O sr. revela que algumas inquietações o motivaram a realizar a pesquisa sobre o universo trans, do qual o livro resulta. Quais foram as indagações que o levaram a este trabalho?
Quando eu decidi tomar como objeto de estudo os processos de construção do corpo e do gênero das travestis eu já trabalhava há alguns anos em um projeto de prevenção à Aids dirigido a esta população. Naquela altura, inquietava-me o intenso preconceito e discriminação dirigidos a esta população, especialmente por parte dos agentes do estado, que me parecia não acompanhar os avanços alcançados pelas ações dos grupos de defesa dos direitos humanos de gays e lésbicas. Além disso, na bibliografia especializada que conhecia, perturbava-me a pouca ou nenhuma importância atribuída aos processos de construção do corpo e do gênero entre as travestis, minimizando muitas vezes a importância dos valores e significados do gênero neste processo e sempre enfatizando as questões ligadas à orientação sexual. Em geral, boa parte dos estudos tratava as travestis como se fossem apenas “homossexuais”, fato que em meu ponto de vista não condizia com aquilo que eu observava entre as travestis. Ainda que elas possam situacionalmente identificar-se como homossexuais, elas também reivindicam elementos identitários específicos, e freqüentemente buscam diferenciar-se desta categoria ampla, demonstrando que a sua diferença é trilhada nos terrenos do gênero.
Eu também tinha uma curiosidade imensa em relação aos processos de modificação corporal por elas levados a cabo. Eu desejava apreender estes processos de maneira mais profunda, pensando, inclusive, em como utilizar este conhecimento de maneira instrumental para os projetos de educação em saúde em que eu estava envolvido. Queria saber como e por quê elas realizavam todas aquelas intervenções corporais, que à primeira vista pareciam violentas, mas que depois descobri serem recheadas de significado, porque concretizam os domínios do gênero em suas vidas.
Quais foram os resultados de seu convívio e o que pôde apreender com o grupo de travestis pesquisado?
Primeiramente, o convívio com as travestis trouxe-me a mudança de foco de minha análise, reformulando as hipóteses e abordagens traçadas originalmente no projeto de pesquisa De uma preocupação relacionada à questão da saúde, o meu olhar se converteu para a importância do corpo nos processos de construção do gênero neste grupo. Talvez o principal resultado da minha pesquisa seja o olhar que direciono às travestis. Um olhar baseado em uma abordagem que resgata o papel do corpo e dos processos corporais na constituição dos valores e significados do gênero para este grupo. De uma maneira geral, os resultados do meu convívio com as travestis estão expressos no meu livro e em todo o “retrato” que busquei traçar destas pessoas.
Elas buscam características e qualidades intrinsecamente ligadas à lógica do gênero, mas afinal, qual gênero? O que é o feminino para elas e qual a sua importância?
As travestis não desejam ser como as mulheres. Seu objetivo, antes, é sentirem-se como mulheres, sentirem-se femininas. Vivem a experiência do gênero como um jogo artificial e passível de recriação. Por isso, criam um feminino particular, com valores ambíguos. Um feminino que se constrói e define em relação ao masculino. Um feminino que é por vezes masculino. Vivem, enfim, um gênero ambíguo, borrado, sem limites e separações rígidas. Um jogo bastante contextual e performático, mas também rígido e determinado, onde os significados do feminino são sempre negociados em função do contexto e da situação. Este feminino das travestis é a expressão de sua própria identidade, por isso o empenho e a dedicação em seus processos de construção corporal e do gênero.
Como se dá a fabricação do feminino no corpo das travestis?
As travestis fazem uso de uma série de técnicas, produtos e investimentos para a produção de seu corpo e de sua condição feminina. Normalmente iniciam com modelagens na sobrancelha e com os cuidados, as formas e os esmaltes coloridos nas unhas. Também utilizam toda a técnica, produtos e truques da maquiagem para o dia e para a noite, além dos tratos diários com o cabelo e as várias técnicas de eliminação dos pêlos do rosto e do corpo. Outro processo que constrói o corpo travesti é a escolha e produção das vestimentas e sapatos, que elas chamam de montagem. Precisam, contudo, aprender toda uma série de investimentos que vão além do guarda-roupa: um estilo (em linguagem êmica) vai também conformar os gestos, a empostação da voz, a forma do cabelo, a maquiagem, o balanço no andar e até mesmo os modos como esta travesti vai se relacionar com as outras e com a sociedade abrangente.
A estes investimentos iniciais somam-se o uso dos tratamentos hormonais e as injeções de silicone para a modelagem de corpos femininos. Estes dois últimos recursos mostram-se mais internos e permanentes e são percebidos, entre as informantes, como os elementos que por excelência caracterizam uma travesti.
Há um modelo de corpo valorizado no meio?
Este “modelo” de corpo a ser atingido não é estático e tampouco único: varia entre as travestis, especialmente em função de suas diferenças de classe e de geração. Na minha pesquisa, as travestis mais jovens, por exemplo, podem ter preocupações diferentes daquelas apresentadas pelas mais velhas na fabricação de sua aparência feminina: enquanto que para estas últimas a aparência e o formato do nariz nunca foram um problema em sua afirmação, para as mais jovens um nariz afinado é um excelente símbolo de feminilidade, portanto as cirurgias plásticas para modelar o nariz são valorizadas entre elas e podem ser usadas até como um sinal de status no grupo, uma vez que pelo seu alto custo, sinaliza também uma diferenciação na estratificação social. No universo trans o corpo todo é lido, simbolizado e valorizado numa “luta por classificação” social e simbólica. As travestis, ao fabricarem formas e contornos femininos nos seus corpos estão construindo seu próprio gênero, seus próprios valores relacionados ao feminino e ao masculino, que constituem, em suma, os processos sociais de fabricação dos sujeitos.
O título do livro refere-se ao grau satisfatório (ou máximo) de transformações do corpo alcançado pelas travestis, não é? Ao alcançarem o status de “toda feita”, como ficam as dinâmicas de suas relações afetivas?
O adjetivo toda feita, muito comum entre as informantes (e que não por acaso constitui o título de meu livro), é um elogio de alto grau. Toda feita, mais do que um elogio, é também uma forma de designar as pessoas que se empenharam nos caminhos da transformação corporal e de gênero e não pouparam esforços para tanto. Designa e caracteriza uma travesti que se empenhou em toda sorte de processos de transformação corporal na construção de seu feminino. Toda feita é a expressão que indica o resultado eficiente de todo o processo de transformação e fabricação do corpo e, portanto, do próprio gênero das travestis.
Neste sentido, as travestis todas feitas gozam de elevado status no universo trans, detendo muito prestígio entre as travestis e outras personagens que constituem o universo trans. Também desfrutam de uma maior oferta de parceiros sexuais tanto no mercado da prostituição, quanto no mercado afetivo-matrimonial. Cabe, entretanto, afirmar que esta não é uma caracterização estática, mas antes negociada e recheada de sentido. Uma travesti é toda feita aos olhos de algumas pessoas e em determinados contextos, podendo não sê-lo sob outros pontos de vista. Enfim, mais uma ambigüidade no jogo de significados que constitui o gênero das travestis.
No que se refere às práticas sexuais, sabe-se que as travestis, diferentemente dos transexuais, transitam tanto no pólo feminino quanto no masculino, dependendo das circunstâncias. Quais as diferenças entre os clientes e maridos e quais suas imbricações com a equação ativo/passivo e masculino/feminino nessas relações, seja no mercado matrimonial ou no mercado sexual?
As travestis buscam relações de complementariedade e diferença no âmbito de suas relações afetivas com os maridos, enquanto que com os clientes este critério não é observado com tanta rigidez. O que quero afirmar aqui é que, de uma maneira geral, as travestis estabelecem relações afetivo-sexuais (um casamento, por exemplo) preferencialmente com homens que desempenhem exclusivamente o papel ativo nas relações sexuais. A idéia de que os papéis de gênero são rígidos e complementares estrutura as dinâmicas matrimoniais das travestis. Seus maridos, portanto, devem incorporar todos os atributos da masculinidade, sendo o mais importante deles o papel ativo nas relações sexuais. Um parceiro que queira também ele ser receptivo no sexo, não está qualificado para fazer parte do mercado matrimonial das travestis, muito embora possa ser um parceiro sexual ocasional.
Já com os clientes do mercado de prostituição, esta regra da complementariedade não é observada tão estritamente. As travestis, segundo seus depoimentos, saem com quem lhes pagar melhor. O mais comum é ouvirmos relatos de que a grandíssima maioria dos clientes as contrata para que elas exerçam o papel ativo nas relações sexuais, penetrando-os. Também é evidente que as travestis que têm pênis mais avantajados gozem de muita popularidade no mercado de prostituição, sempre com farta clientela. Contudo, não se pode afirmar que todos os clientes das travestis desejam desempenhar o papel receptivo no ato sexual, nem que estes constituam a maioria. A desqualificação moral dos clientes, ao caracterizá-los como penetrados no ato sexual, talvez deva ser compreendida em um quadro maior onde estão imbricadas relações de poder, de classe e de idade.
O que gera, da parte do senso comum, o mistério e o preconceito conferidos às travestis?
Acredito que sejam, principalmente, as ambigüidades de sua condição corporal e de gênero. Porém, o preconceito contra as travestis também tem raízes em sua associação com a prostituição e com a homossexualidade; com sua origem e socialização em ambientes das classes populares; com preceitos e regras morais e religiosas vigentes em nossa sociedade; com valores considerados “científicos” a respeito do corpo e do gênero; enfim, com dinâmicas e processos de biopoder. Estas são, contudo, apenas algumas pistas para uma nova investigação.