O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou na semana passada uma série de audiências públicas para discutir a ação movida em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que demanda o direito das gestantes de interromper a gravidez sem necessidade de autorização judicial em casos de anencefalia fetal. Até hoje, ao optar por interromper a gravidez depois do diagnóstico da anencefalia, a mulher tem que recorrer à Justiça para obter autorização. Entre 2001 e 2006, os tribunais de Justiça do País receberam 46 pedidos de interrupção da gravidez de anencéfalos. Em junho, a Justiça da cidade de Ribeirão Preto, no interior do estado de São Paulo, autorizou o aborto de um feto sem cérebro com 16 semanas. Na semana passada, em meio à discussão do tema no STF, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) autorizou a interrupção da gravidez de um anencéfalo em um caso no qual a decisão do primeiro grau havia sido contrária. O Tribunal levou em consideração a constatação médica de que os bebês que nascem sem cérebro não sobrevivem fora do útero da mãe.
Um estudo realizado pelo Programa de Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva (Prosare), ligado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), mostra que em 54% dos casos a decisão foi favorável à mulher, permitindo o procedimento. Em outros 35% o pedido foi negado. Nas demandas restantes, o tempo para decisão foi tão longo que o feto morreu antes. É isto que o STF busca solucionar.
Assim como aconteceu na discussão em torno da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias na Suprema Corte, o embate de forças coloca, de um lado, posições favoráveis ao aborto nesses casos, baseadas em evidências científicas, e, de outro, posições contrárias, sustentadas em argumentos morais-religiosos. Dois pontos têm sido postos em pauta: os riscos da gestação e a questão se há vida em fetos anencéfalos.
Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (edição 31/08/2008), o filósofo Peter Singer afirmou que a questão não é discutir quando a vida humana começa, “mas quando ela ganha suas principais características, como racionalidade, autoconsciência, consciência, autonomia, prazer, dor, que lhe dão valor e tornam errado finalizá-la”. A bióloga e especialista em bioética Marcia Mocellin Raymundo, médica do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, concorda. “Eu entendo que a vida deve ser respeitada. Mas, qual vida? No caso dos anencéfalos, realmente não há uma possibilidade de vida de relação, de possuir consciência”, diz ela. Em relação aos os riscos da gestação, a especialista observa que a questão mais importante a ser levada em conta diz respeito à grande mobilização psicológica que uma gestação dessas pode gerar nos pais.
“Com relação à saúde física da mulher, em geral o parto de um anencéfalo não ocorre de forma natural, ou parto vaginal, e deve ser realizada uma cesariana, que, por sua vez, envolve mais riscos. Também, a probabilidade de ocorrer hemorragia é maior nos casos de feto anencéfalo”, explica.
Doutora em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Marcia Mocellin afirma que “o impedimento de optar pela antecipação do parto fere o direito à dignidade da pessoa que gesta e o direito de fazer a sua livre escolha”, salienta a especialista, na entrevista a seguir.
Quais são os aspectos bioéticos implicados no debate que está sendo travado no STF atualmente?
A Bioética é caracterizada por um espaço de reflexão ética que permite a expressão de distintas singularidades de pensamento e o respeito a essa singularidade, contemplando, portanto, a diversidade. Neste sentido, impedir a antecipação do parto de um feto comprovadamente anencefálico, baseado em aspectos morais ou religiosos, é uma visão reducionista, que está em desacordo com o princípio da laicidade do Estado. Nem todas as pessoas possuem impedimentos morais ou religiosos quanto a esta questão. Portanto, é importante deixar claro que o impedimento de optar pela antecipação do parto fere o direito à dignidade da pessoa que gesta e o direito de fazer a sua livre escolha. Neste sentido, os aspectos bioéticos envolvidos são o de respeito à pessoa e a sua liberdade de consciência. Importante deixar claro que ao permitir que cada um faça a sua opção respeitam-se ambos os desejos, o das pessoas que desejam levar a gestação de um bebê anencéfalo até o final, e, o das pessoas que desejam antecipar o parto.
Que informações científicas podem ser norteadoras nessa discussão?
A anencefalia é uma má-formação do tubo neural, que ocorre durante o início do desenvolvimento gestacional. As causas são multifatoriais, ou seja, existem fatores genéticos, fatores geográficos e fatores ambientais associados a esta má-formação. O que ocorre é a ausência de córtex cerebral, ou seja, a parte do cérebro responsável pela vida de relação e a consciência não está presente no anencéfalo. Esta situação faz com ele seja comparado a um natimorto e torna a ancencefalia incompatível com a vida. Caso chegar a nascer, o anencéfalo não sobreviverá mais do que algumas horas, dias ou, em alguns casos, por algumas semanas. Algumas confusões envolvendo a anencefalia decorrem do fato de o anencéfalo algumas vezes nascer respirando e possuir algumas funções, como a de mamar, por exemplo. Importante esclarecer que estas atividades estão relacionadas ao tronco cerebral, que pode estar presente nos anencéfalos. Porém, trata-se de funções transitórias, que irão desaparecer e levar a uma parada respiratória.
Se ainda não se chegou a um consenso quanto ao início da vida, no Brasil já há um conceito de morte, que é o de morte cerebral. Este feto não se enquadraria neste conceito, ao ser considerado um natimorto? Isto também não derrubaria o argumento de defesa da vida sustentado pelos grupos contrários, já que estariam defendendo a vida de um feto sem vida? O argumento da defesa da vida é relevante?
O feto anencéfalo, desde o ponto de vista de morte encefálica, é equiparado a uma pessoa cuja morte cerebral tenha sido estabelecida. Existem vários critérios que definem a morte cerebral, já bem estabelecidos na área médica. A ausência de córtex cerebral é tão evidente em relação a inviabilidade vital nos anencéfalos, que os critérios de morte encefálica são inaplicáveis e desnecessários a eles, e, por isso os mesmos são considerados natimortos. Nesse sentido, é possível traçar um paralelo entre a morte encefálica utilizada como critério para a retirada de órgãos visando transplantes com o anencéfalo. Ambas são mortes encefálicas. A diferença é que em uma pessoa não anencéfala a atividade cortical cessa, e, no anencéfalo, sequer existe a possibilidade de cessar a atividade cortical, uma vez que ele não possui córtex, ou seja, ele nunca chegou a ter tal atividade.
Como a sra. analisa a discussão sobre quando começa a vida?
Essa é uma pergunta muito complexa. A vida é um contínuo. Entretanto, a questão fundamental não é definir quando a vida começa, mas definir quando existe a pessoa. E esta definição não é consenso na sociedade, pois é determinada por diferentes visões, perspectivas, culturas, religiões etc. Por isso é importante respeitar a liberdade de consciência e garantir um Estado Laico. Eu entendo que a vida deve ser respeitada. Mas, qual vida? No caso dos anencéfalos, realmente não há uma possibilidade de vida de relação, de possuir consciência. Volto a frisar que, por mais que possam estar presentes as atividades relacionadas ao tronco, e que expressam “vida” de alguma forma, como sugar e respirar, a atividade cortical não existe. Por outro lado é também importante pensar na vida da mãe, da mulher que está gestando e que deve ser também protegida.
Que questões relativas à saúde da mãe estão em jogo?
Com relação à saúde física da mulher, em geral o parto de um anencéfalo não ocorre de forma natural, ou parto vaginal, e deve ser realizado um parto cirúrgico, a cesariana, que, por sua vez, envolve mais riscos. Também, a probabilidade de ocorrer hemorragia é maior nos casos de feto anencéfalo. Entretanto, me parece que uma das questões mais importantes de abordar aqui diz respeito à grande mobilização psicológica que pode gerar nos pais, sobretudo na mãe. Portanto, um adequado acompanhamento psicológico nestes casos é muito importante, independente da opção dos pais, seja em levar adiante a gestação, seja em interrompê-la.