CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Direitos devem prevalecer

A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) está propondo a redes que lidam com a Aids e com os direitos humanos na América Latina a se posicionarem contra a presença do cientista norte-americano no IV Congresso Centroamericano de DSTs/HIV/AIDS, evento que acontece em El Salvador, entre os dias 07 e 11 de novembro. O protesto é uma reação às declarações de Gallo à imprensa brasileira, em visita recente ao Brasil, contra a distribuição gratuita de anti-retrovirais aos soropositivos do país.



“As opiniões do Gallo respondem a uma maneira de ver ciência que coloca a relação de ciência e mercado de uma forma muito aproximada. Ele defende os interesses da indústria farmacêutica”, diz o pesquisador Veriano terto Jr, coordenador geral da ABIA.



A instituição enviou uma carta de protesto ao comitê organizador do evento e para várias outras organizações de luta contra a doença no continente. “Achamos que uma conferência latino-americana de Aids deveria contar em sua abertura com um cientista que efetivamente pudesse falar de dilemas que a saúde pública nos países em desenvolvimento enfrentam, na questão do acesso aos medicamentos”, justifica.



Nesta entrevista, Veriano fala do direito humano universal ao acesso a medicamentos, de patentes e da relação da indústria farmacêutica com os países mais pobres. “Atualmente no mundo não existe um acesso democrático aos medicamentos anti-Aids. Com isso, os direitos humanos dos soropositivos à vida e à saúde estão violados”, afirma.





Por que a ABIA está se posicionando contra o convite do Robert Gallo para abrir uma conferência latino-americana de Aids?



Em visita recente ao Brasil, o Gallo fez uma série de declarações que respondem a uma maneira de ver ciência que coloca a relação de ciência e mercado de uma forma muito aproximada, dando uma idéia de que o mercado seria um regulador e maior estímulo para a produção científica. Achamos que, para um país como o Brasil e para os países em desenvolvimento em geral, esse tipo de posicionamento ajuda muito pouco. Principalmente quando estamos num momento de luta por uma ciência mais engajada com a saúde pública. E, para uma epidemia como a da Aids, onde um programa de saúde pública é fundamental para uma resposta minimamente efetiva, soa muito estranho quando um cientista como esse defende o programa dos EUA como um programa muito bom e justo para o enfrentamento da Aids, na medida em que vemos a doença completamente galopante, sem controle, em várias cidades americanas. Lá eles têm uma medicina muito mais privatizada do que a nossa.

O Gallo defende os interesses da indústria farmacêutica, e que vão contra os interesses da saúde pública dos países em desenvolvimento. Achamos que uma conferência latino-americana de Aids deveria contar em sua abertura com um cientista que efetivamente pudesse falar e pautar os dilemas que a saúde pública nos países em desenvolvimento enfrentam na questão do acesso aos medicamentos para responder à Aids, e não alguém que venha defender a privatização da saúde, o interesse das indústrias farmacêuticas, uma medicina privada e que não tenha uma discussão importante sobre universalidade, sobre equidade e sobre justiça social. Princípios do SUS e que efetivamente têm estado na base para se conseguir responder de forma eficaz a uma epidemia.





A questão então não é simplesmente o convite ao Gallo, mas sim chamar a atenção para uma problemática maior.




É chamar a atenção para o tipo de ciência que nós queremos. Queremos uma ciência para o mercado ou uma ciência para a humanidade? É isso que está em jogo nesse momento. A ABIA está fazendo seu papel: denunciar o tipo de postura que será adotada dentro desta conferência, e chamar a atenção da opinião pública e do movimento social organizado.





A ABIA enviou um documento de protesto para os organizadores da conferência e para diversas organizações latino-americanas que lidam com a questão da Aids, a fim de mobilizá-las. Quais os resultados até agora?




Algumas redes e organizações estão escrevendo. Mas ainda não temos uma resposta do comitê organizador. As pessoas soropositivas estão questionando. A Água Buena, uma Ong muito atuante que trabalha com a questão de acesso a medicamentos na América Central, nos apoiou e está questionando junto aos organizadores do evento. A Rede Chilena de Pessoas Soropositivas também.





O governo brasileiro já se posicionou nessa discussão?




O governo publicou resposta a nossa carta no website do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde. Mas, pelo que sabemos, eles ainda não se posicionaram diretamente à organização da conferência.





O sr. acredita que essa mobilização pode fazer com que o comitê organizador do evento volte atrás?




Temos informações que o Gallo foi convidado pelo próprio presidente de El Salvador, país anfitrião da conferência. Se todas as redes pressionassem efetivamente, nós conseguiríamos trocar o nome dele por uma pessoa mais comprometida com os interesses da saúde pública dos países em desenvolvimento.





Que nomes seriam estes?




Dos EUA temos o Paul Farmer, do Departamento de Medicina Social de Harvard, na América do Sul, temos o Paulo Buss, presidente da Fiocruz, pessoas atuantes na saúde pública e que talvez pudessem contribuir para essa discussão. Não adianta termos uma celebridade de reputação questionável.





Qual o papel do Brasil na América Latina, no que diz respeito à política de medicamentos para a Aids?




O Brasil tem uma posição de liderança porque temos uma capacidade de produção desses medicamentos. Ainda importamos a matéria-prima, mas temos condições de, tendo essa matéria-prima, conseguir produzir um grande número desses remédios e, com isso, fazer baixar os preços. E também, via produção de genéricos, conseguir baixar a produção dos medicamentos de marca.



Na América Latina, o Brasil tem um Programa de doação para a Bolívia, Paraguai, Colômbia, El Salvador e República Dominicana. O que doamos são os medicamentos de primeira geração, produzidos como genéricos aqui. Quanto aos mais recentes, esses países têm que comprar.





O que nos impede de produzirmos os mais recentes?




O Brasil só pode produzir como genéricos todos os medicamentos que foram aprovados e entraram no mercado até 1996, remédios que não estão protegidos pela Lei de Patentes que entrou em vigor no início de 1997. Os medicamentos produzidos a partir daí, sob essa legislação, ficaram protegidos. A Lei deu à indústria que os desenvolve e os comercializa um monopólio de 20 anos sobre os direitos de fabricação. É uma lei brasileira, que não pode ser revogada porque, além de não servir só para os medicamentos, todos os países que são filiados à Organização Mundial de Comércio acabam sendo signatários do TRIPS, o tratado que regula aspectos relacionados à propriedade intelectual. Todos os países signatários do TRIPS são obrigados a fazer uma lei de patentes nacional, de acordo com esse tratado internacional. Por isso, o país não pode romper simplesmente com o TRIPS. Nós também não achamos que as patentes em si sejam um problema. O problema é como elas estão negociadas.





Mas o ministro da Saúde fala em romper com esses princípios, caso os laboratórios não entrem num acordo com o governo.




A nossa lei permitiria a fabricação de genéricos, com algumas exceções, de acordo com os princípios internacionais de regulação da propriedade intelectual. O próprio acordo TRIPS apresenta algumas soluções interessantes, que são chamadas flexibilidades ou salvaguardas. No caso de uma emergência nacional, o país poderia fabricar os genéricos desses medicamentos. Não se trata de quebrar a patente, mas sim um licenciamento compulsório. O Brasil pagaria um royalty por fazer esse licenciamento. Outra possibilidade seria o licenciamento voluntário, a própria empresa daria a licença para o governo brasileiro fabricar o medicamento. O Brasil também poderia fazer uma importação paralela, ou seja, importar esses remédios genéricos de um outro fabricante, de outro país, que oferecesse um preço mais baixo. Desta maneira, o monopólio estaria rompido.





O sr. acha que os interesses econômicos das indústrias farmacêuticas interferem na produção da cura da Aids e nos interesses da sociedade?




Claro, porque a partir do momento em que se cria um monopólio sobre o conhecimento, sobre a produção e o acesso, passamos a atender somente aos interesses de um grupo. Isto é antidemocrático, e uma perspectiva de cura fica impossível. Quando se tem uma idéia de mercado cada vez mais forte dentro da produção científica, fica sempre aquela pergunta: eles vão descobrir um medicamento ou uma vacina, mas quem vai ter acesso?





Existe a possibilidade dessa descoberta já ter sido feita e não ter sido democratizada em função desse tipo de política?




Penso que não. Acho que um dia eles vão encontrar a cura da Aids, mas nosso posicionamento é que, paralelamente aos esforços de se pesquisar remédios e vacinas que possam erradicar o HIV, temos que já estar nos preocupando sobre quem vai ter acesso a essa descoberta. Do jeito que a coisa vai, se prevalecerem os princípios de mercado, somente alguns, que podem pagar, vão ter acesso a essa descoberta, e não todos que possam se beneficiar dela.





Qual a inferência dessa problemática sobre a questão dos direitos humanos?




O medicamento é considerado um direito humano pela própria Organização Mundial de Saúde. Mas a partir do momento que a grande maioria das pessoas soropostivas do mundo ainda não têm acesso a esse tratamento, o direito humano dessas pessoas à vida e à saúde está violado, enquanto os princípios de mercado da indústria farmacêutica estão valendo. E é isso que a gente quer denunciar.



Atualmente no mundo não existe um acesso democrático aos medicamentos. Eles só são acessíveis aos países que podem pagar o preço fixado pela indústria farmacêutica. No Brasil, essa distribuição é democrática porque temos um Programa universal e gratuito de medicamentos. Um sistema de saúde privado não funcionaria aqui. Até hoje está provado que o que consegue efetivamente baixar preço de medicamentos é a concorrência, e só se faz a concorrência com a produção de genéricos. A indústria farmacêutica diz que baixa o preço de acordo com o grau de pobreza e a gravidade do problema em um país. Mas ainda não vimos um país pobre fortemente afetado pela Aids ter acesso universal aos medicamentos. Nenhum deles conseguiu ter esse acesso assegurado baseado em doação ou em preço reduzido pelos produtores. Os países que conseguem baixar preço de remédios são os que têm competição de genéricos.





A América Latina e África representam somente 5% do lucro dessas empresas. Então qual o problema para elas quanto a essa produção ser feita aqui?




Quando a indústria farmacêutica defende esse sistema de patentes que mantém o monopólio por 20 anos, não é para que os países pobres ou em desenvolvimento não tenham acesso aos medicamentos. Eles não querem é que os países em desenvolvimento produzam, para ampliar cada vez mais a divisão no mundo entre aqueles que produzem e os que consomem. Produtores são os países desenvolvidos e consumidores os em desenvolvimento. O receio é que, se começarmos a produzir como genéricos, poderemos um dia exportar medicamentos até para os países desenvolvidos, a preços mais baratos do que eles compram. O medo é de se tornarem concorrentes deles próprios. Para eles, o licenciamento compulsório de um ou dois medicamentos não significa muita coisa. O problema é o que isto significa de ganho para o Brasil em termos de transferência de tecnologia, de desenvolvimento da indústria nacional e de pessoal capacitado.