“O Brasil tem ainda um longo caminho para poder corrigir um processo longo de exclusão e discriminação que atinge mulheres e negros em particular”, avalia Sueli Carneiro, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e uma das ativistas mais importantes do movimento negro brasileiro – foi uma das fundadoras do Geledés, instituto que defende os direitos das mulheres negras no Brasil. Por isso, ela acredita que o maior mérito de iniciativas como a do curso Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça (GPP-GeR), lançado em 2010 pelo governo federal e ofertado no momento por 11 universidades públicas, seja exatamente o de possibilitar às pessoas a aquisição de uma consciência em relação a uma realidade nacional racista e excludente.
“O discurso do politicamente correto é dizer que o Brasil é um paraíso racial, onde convivem diferentes grupos raciais em total harmonia. Com ele, as pessoas tentam negar as evidências de racismo presentes no cotidiano brasileiro, ocultando, assim, a realidade deletéria das relações raciais”, afirma, na entrevista a seguir, em que avalia a forma pela qual se constituiu o percurso do conceito de raça no campo de relações raciais no Brasil e as raízes históricas que culminaram no processo de desigualdade e exclusão no país.
Como avalia o atual estado da arte da implementação de políticas inclusivas para setores tradicionalmente excluídos e desfavorecidos?
A experiência de exclusão é uma experiência histórica, enquanto a experiência de busca de equidade de gênero e raça é recente. Então temos uma defasagem aí. A opressão sobre mulheres e negros é histórica. A consciência da sociedade, particularmente no caso brasileiro, é muito recente. A implementação de políticas públicas não chega a duas décadas. |Então, este é um desafio. Temos um longo caminho para poder corrigir um processo longo de exclusão e discriminação que atinge mulheres e negros em particular.
É efetivamente possível superar as dívidas históricas existentes para com os negros e pobres, especialmente as mulheres, e para com os/as indígenas?
Desde que a sociedade como um todo se envolva positivamente e expresse vontade política de correção, este processo será rápido. Depende muito da reserva moral que a sociedade tem para buscar a radicalização da democracia e do estado de direito igualitário. São conquistas sempre ameaçadas pelo retorno de idéias e ideologias como o racismo, o machismo e o sexismo, que fazem retroceder a democracia.
Brasil ocupa o segundo lugar em população negra no mundo e tal segmento social apresenta enormes índices de desigualdade sócio-racial, apesar de o país contar com uma tradição de movimentos sociais de luta contra as iniqüidades de gênero e raça – como o Movimento de Mulheres Negras –, com instâncias governamentais como a Seppir e com ações afirmativas. Contudo, algumas políticas afirmativas, como a Lei de Cotas para negros, têm recebido críticas de alguns setores…
A violência como esta critica é feita expressa ignorância e má-fé. Primeiramente porque o tema já foi objeto de políticas públicas em dezenas de paises no mundo inteiro, como Índia – pioneira na instituição de cotas para atender a população de dalits –, Malásia, Alemanha, EUA, Canadá, África do Sul, Nigéria, Noruega, Líbano. Todos esses países adotaram um conjunto de estratégias para lidar com discriminações sociais, motivadas por identidade religiosa, étnica e diferenças de gênero. A Malásia e o Líbano, por exemplo, usaram tais políticas para incluir grupos étnicos. Sempre que uma sociedade buscou corrigir desigualdades e o processo de exclusão de determinados segmentos – seja por raça, etnia, gênero, religião ou orientação sexual –, ela o fez através de ações afirmativas. Uma sociedade reconhece que tem problemas e que grupos humanos ficaram para trás por intolerância religiosa ou étnica, e resolve então adotar um critério. Quando uma sociedade não muda, é preciso que o Estado venha a agir, buscando incluir esses segmentos excluídos. É um debate atual no Brasil, mas atrasado frente a outros países.
A meta principal do atual governo é acabar com a extrema pobreza, a qual, em nosso país, tem raça, etnia, gênero e localização. É possível para o governo alcançar esta meta sem transversalizar, sem tratar das iniqüidades de gênero e raça que persistem em nossa sociedade?
Tenho a confiança de que um governo que é a continuidade de outro governo que foi capaz de promover a mobilidade social e de ampliar as possibilidades de aproximadamente 30 milhões de pessoas – o equivalente à população da Argentina –, seja capaz de alcançar esta meta. Isto é pré-requisito para transformar este país em um país civilizado. Considerando a convicção em relação a esta perspectiva, ela é essencial para alcançar um contingente de negros/as que estão segregados nos patamares de indignidade humana da hierarquia social. Sem dúvida, o recorte racial é fundamental para a redução da desigualdade social.
Nesse sentido, a Educação com esse recorte seria um instrumento essencial neste processo, não?
Sem dúvida. O curso Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça (GPP-GeR), por exemplo, parte de um pressuposto positivo, pois as pessoas, ao conhecerem melhor a realidade social e as raízes históricas que culminaram no processo de desigualdade e exclusão no Brasil, tornam-se promotores da igualdade e da justiça social. Ações como essa, voltadas para gestores públicos, são importantes pois possibilitam a aquisição de uma consciência em relação à realidade. Ainda existem duas ordens de dificuldades a serem enfrentadas em nosso país: a primeira delas é o desconhecimento do gestor público em relação à necessidade de recortes específicos a serem contemplados nas políticas públicas, o que faz com que as políticas públicas não possam alcançar certos segmentos sociais de forma igualitária. A segunda dessas dificuldades é a resistência em relação à aceitação das diferenças como elemento fundamental para estruturar políticas públicas em um contexto de desigualdade social, como é o caso do Brasil.
Como analisa a forma pela qual se constituiu o percurso do conceito de raça no campo de relações raciais no Brasil?
Esse debate retornou com força no contexto das contas raciais para as universidades. O conceito vem sendo manipulado vergonhosamente pelos adversários das políticas inclusivas e das ações afirmativas, que tentam negar a autoridade ao conceito de raça. Em primeiro lugar, no caso das iniqüidades raciais, se existem desigualdades é porque existe racismo. Em segundo lugar, o racismo sempre foi usado como arma política para oprimir e legitimar a opressão de povos não brancos. É um instrumento de legitimação de superioridade de um grupo étnico em relação a outro, o que lhe daria o poder de oprimir e de subjugar. Outro argumento é que é impossível determinar quem é negro no Brasil devido à miscigenação, argumento utilizado para enfraquecer a identidade racial negra e para promover a fissura nessa identidade racial, impedindo que ela se transforme em um elemento mobilizador potente no plano político. No atual momento, tem sido um instrumento usado para tentar deslegitimar a política de cota racial. Para efeito das bolsas de estudo que os intelectuais brancos ganham para estudar os negros, não há nenhuma dúvida do que seja a negritude, inclusive entre os detratores. Ou seja, para efeito das pesquisas, todo mundo sabe o que é negro. Mas para efeito de políticas públicas não.
Acredita que se possa atribuir à ideia de “raça” presente na população brasileira a responsabilidade pelas discriminações e desigualdades sofridas pelo/as negros/as?
Se os negros estão excluídos das instâncias de poder, alguém os está discriminando e excluindo. Esta é a função do racismo: assegurar a um grupo a constituição e a manutenção de privilégios em detrimento de outro grupo. Isto se vê no acesso à saúde, à educação, no trato da Polícia para com os negros, enfim, em todas as dimensões da vida social. E isto faz com que uma vida valha mais que outra vida, que um grupo humano seja merecedor de uma atenção e outro não. Ninguém se abala que 97% das vagas das universidades sejam utilizadas pelas pessoas brancas. Então, até o advento das cotas essa realidade não chocava ninguém.
Como vê a forma como o quesito “racismo” é tratado no contexto da chamada democracia racial brasileira e o recorrente discurso de que não há racismo no Brasil?
Lembro de uma fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em que ele dizia que, em certa ocasião, ainda como jovem sociólogo, ele caiu na imprudência de dizer em uma palestra que havia racismo no Brasil, sendo sonoramente advertido que aquilo era quase uma subversão, que ele estava criando um problema de segurança nacional. O discurso do politicamente correto é dizer que o Brasil é um paraíso racial, onde convivem diferentes grupos raciais em total harmonia. Com ele, as pessoas tentam negar as evidências de racismo presentes no cotidiano brasileiro. É um discurso que tem a intenção de normatizar uma fala sobre as relações raciais, ocultando, com isso, a realidade deletéria das relações raciais.
Quais as maiores demandas da agenda antirracista no Brasil de hoje?
Em primeiro lugar cessar o genocídio de jovens negros no Brasil, que é a dimensão mais perversa do racismo brasileiro. Em segundo lugar, aprofundar a experiência das cotas raciais por um período que seja possível reverter esse monopólio das pessoas brancas no acesso ao ensino universitário. Em terceiro, eu colocaria a solução do gargalo da conclusão do ensino médio, desafio que pode inviabilizar o acesso à universidade. Outra questão critica é a sensibilização do mundo do trabalho e empresarial, porque é lá que está a maior restrição à mobilidade social dos negros, é onde prevalece a brancura como um pré-requisito para o acesso ás melhores ocupações no mercado de trabalho. A brancura é tão importante quanto o diploma nesses casos. Uma outra questão a ser feita é o debate sistemático à ideologia racista, que se reproduz impunemente, sobretudo nos meios midiáticos. É necessária uma contra-ofensiva ideológica que combata estereótipos, o estigma e o sexismo nas pessoas. Outro tema é a valorização de manifestações culturais afrobrasileiras, que significa, por exemplo, tornar efetiva a lei 10639/2003 – lei que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira nos currículos escolares no país. O racismo é um fenômeno que sempre se manifesta e continua em expansão no mundo. É uma ideologia que está sempre disponível para se privilegiar um grupo em situação de conflito, de crise e tensão social.
O crescimento da economia experimentado pelo Brasil nos últimos anos tem projetado positivamente o país no cenário internacional. É possível obter desenvolvimento econômico sem desenvolvimento humano e social?
É evidente que não. Existe um esforço que vem sendo feito nos últimos dez anos no sentido de manter a redução das desigualdades sociais como uma meta persistente. A perspectiva de desenvolvimento econômico sem inclusão social é uma perspectiva histórica, em um país que se acostumou com a desigualdade. Alguns teóricos dizem que o Brasil optou pela discriminação e violência como forma de redução de conflitos. A perspectiva recente é a da inversão deste paradigma. O desenvolvimento econômico tem que se reverter também em inclusão social e em redução de desigualdades. O país entrou num círculo virtuoso e o desafio é permanecer nele.