A lei 12.015/2009 ampliou o escopo do crime de estupro no Código Penal brasileiro. Até então, existiam dois tipos de crimes de natureza sexual, nomeados de crimes contra os costumes: o estupro, que designava a penetração, total ou parcial, da vagina da mulher pelo pênis do homem; e outros atos libidinosos e sexuais distintos deste, definidos como crimes de atentado ao pudor.
Com a modificação, o estupro passou a abarcar qualquer ato libidinoso independente de penetração ou contato entre as partes íntimas. De um lado, a lei 12.015 possibilitou que o estupro de um homem por outro homem ou por uma mulher também adquirisse a mesma gravidade que o estupro de uma mulher por um homem. Por outro lado, a mudança introduzida pela lei gerou críticas justamente por equivaler crimes que, no entanto, são considerados de gravidade mais branda.
Em recente artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, a procuradora do Ministério Público de São Paulo Luiza Nagib Eluf, autora de livros como “A Paixão no Banco dos Réus” e “Crimes contra os costumes e assédios sexuais”, posicionou-se contrária à mudança no Código Penal. De acordo com ela, a unificação de diferentes agressões sexuais sob a categoria do estupro gera conseqüências ruins, como o aumento do número de indivíduos considerados estupradores e a dificuldade na aplicação das penas por parte dos juízes.
O assunto está na ordem do dia, desde que notícias de assédio sexual contra mulheres nos transportes públicos, especialmente em vagões do metrô em horários de pico, tornaram-se freqüentes nos meios de comunicação. De acordo com uma reportagem recente publicada no Diário de São Paulo, 52 mulheres sofreram ataques com conotação sexual dentro dos vagões do Metrô de São Paulo apenas em 2011, o equivalente a mais de cinco casos por mês. Dentre as ocorrências, 43 foram registradas como importunações e dez como ato obsceno. Segundo o Metrô paulistano, a média de ocorrências (considerando as mais diversas naturezas) é de 0,9 para cada um milhão de passageiros. Diariamente, quatro milhões de pessoas circulam pelas estações.
“Ao ver notícias de mulheres que foram estupradas dentro de vagões de metrô em São Paulo, fico me perguntando se, realmente, é possível um crime tão brutal ocorrer diante de tantos passageiros ao redor”, afirma Luiza Nagib Eluf na entrevista a seguir, onde defende uma gradação em relação aos crimes sexuais. Para tanto, a procuradora, que integra a comissão de reforma do Código Penal, instalada em meados de outubro, vai propor tais alterações no ante-projeto a ser entregue ao Senado Federal.
A senhora é crítica à lei 12.015/2099, que unificou, no artigo 213 do Código Penal, qualquer ato libidinoso e sexual sob a categoria do estupro. Em sua análise, quais os efeitos negativos desta mudança?
O artigo 213 juntou qualquer crime de natureza sexual dentro de uma mesma punição. Dessa forma, qualquer ato libidinoso cometido com violência ou grave ameaça tornou-se crime de estupro, com pena prevista de 6 a 10 anos. Antes dessa mudança no Código Penal, estupro implicava em conjunção carnal, ou seja, penetração feita à força.
Acredito que, para um ato libidinoso sem penetração, como um beijo lascivo ou uma carícia nas partes íntimas, a pena de 6 a 10 anos é alta. Isso tem um efeito nas decisões dos juízes que podem não aplicar a pena, gerando uma sensação de impunidade. Corremos o risco de ter absolvições em crimes que, com penetração ou não, são muito ofensivos. Além disso, o artigo 213 implica, em termos quantitativos, um aumento significativo de indivíduos considerados estupradores, o que considero aterrorizante.
Acredita que a mudança na lei 12.015 foi um equívoco?
Não, mas acho que não houve tantos benefícios. Sou favorável a que haja uma gradação em relação aos crimes sexuais. Não podemos punir todos com a mesma pena. Por exemplo, um crime sexual em que ocorra penetração oral, anal ou vaginal não pode ter a mesma pena que um crime em que haja um toque sem consentimento. Considero essencial que seja feita uma distinção.
Temos visto notícias de mulheres que foram estupradas dentro de vagões de metrô em São Paulo. Fico me perguntando se, realmente, é possível um crime tão brutal ocorrer diante de tantos passageiros ao redor.
A mudança considera que o homem também pode ser um sujeito passivo nesse tipo de delito. Como a senhora avalia isto?
Concordo com esse aspecto. De fato, a modificação feita no Código Penal foi importante no sentido de não mais enxergar somente a mulher como vítima de estupro. No entanto, pela denominação anterior à lei 12.015, o estupro e o atentado violento ao pudor – que englobava, por exemplo, a penetração de um homem por outro – tinham a mesma pena, também de 6 a 10 anos.
A lei 12.015 adotou uma linguagem mais popular. O texto anterior era muito hermético. Nesse sentido, houve uma simplificação da lei, que adotou terminologias que fazem sentido para o povo. Entretanto, como já afirmei, isso tem um efeito negativo por generalizar qualquer ato libidinoso como estupro.
Podemos dizer que o país tem avançado, em termos jurídico e legislativo, no enfrentamento de problemas relativos à violência de gênero?
Sim, a Lei Maria da Penha é um exemplo disto. É muito importante também o caráter educativo que a lei tem, pois permite que a população tome conhecimento de que a violência contra a mulher é crime. A Lei Maria da Penha conseguiu esse efeito e popularizou-se, o que é muito importante em matéria de conscientização.
A aplicação da Lei Maria da Penha tem se mostrado sujeita a interpretações variadas de juízes. Como a senhora avalia essa situação?
Qualquer lei está e estará sempre sujeita a interpretações de juízes. Não é possível que se engesse os magistrados para que eles apliquem uma lei sempre de forma idêntica. O que é viável e essencial em relação à Lei Maria da Penha é a conscientização dos juízes. Nem todos acompanharam a criação da lei e nem todos a estudaram a fundo. É um dado compreensível. É fundamental que todos os juízes estejam mais engajados na repressão à violência de gênero regulada na Lei Maria da Penha. Isso traria grandes benefícios à sociedade e às milhares de mulheres diariamente agredidas e ameaçadas.
A senhora é autora de “A paixão no banco dos réus”, que reúne os casos de crimes passionais com maior repercussão no país, onde as vítimas são em sua maioria mulheres. No livro, após o exame do homicídio e da solução dada pela Justiça, há uma análise do crime passional, examinando suas causas e circunstâncias e também as teses normalmente utilizadas pela acusação e pela defesa. Um argumento muito utilizado antigamente por advogados que defendiam homens que tinham assassinado suas companheiras era o da “defesa da honra”. Atualmente, isto ainda faz sentido?
O Código Penal de 1890 não punia o crime passional. O Código Penal de 1940, que ainda vigora, eliminou esse dispositivo. Por isso, alguns bons advogados criaram a tese da “legítima defesa da honra” para conseguir a absolvição do réu. Ou seja, criaram algo para justificar o indefensável. A paixão não pode ser utilizada para que se perdoe alguém. A paixão pode explicar um assassinato, tendo em vista o impacto que emoções violentas podem causar em um indivíduo, mas não torna o ato perdoável. Paixão e amor são sentimentos diferentes. Ninguém mata por amor.
Felizmente, a tese da legítima defesa da honra não é mais usada nos dias atuais. E mesmo quando é aceita pelos jurados, os tribunais superiores anulam o julgamento. Acredito ser esse um sinal de que o machismo está perdendo espaço, finalmente.