Foi um longo caminho desde a formação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), em 2004, a realização da 1ª Conferência Nacional de Mulheres, a constituição de uma Comissão Tripartite para rever a legislação relativa ao aborto, até os dias atuais, quando o tema do aborto passou a ocupar as capas dos principais jornais e revistas do país. “Do ponto de vista do governo, já cumprimos a etapa mais importante desse processo: reunir os elementos e formar a Comissão Tripartite. Agora é a vez de o Congresso e a sociedade discutirem o assunto”, avalia a ministra Nilcéia Freire, nesta entrevista, realizada durante uma visita à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde foi reitora entre os anos de 2000 a 2003. Nilcéia foi a primeira mulher a ocupar este cargo nos 50 anos da instituição, onde também se formou em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas, em 1978. Em 1980, foi admitida como professora na UERJ, onde ficou até janeiro de 2004, quando foi convidada pelo presidente Lula a assumir o cargo de ministra da SPM.
Para ela, foram muitos os avanços alcançados nestes últimos cinco anos à frente da Secretaria. A três meses da realização da 2ª Conferência Nacional de Mulheres, que vai acontecer entre 17 e 20 de agosto, em Brasília, Nilcéia Freire faz uma análise do debate atual em torno do tema do aborto e do posicionamento do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em relação à realização de um plebiscito no país. Na opinião da ministra, antes de se tentar um referendo ou plebiscito é preciso ainda amadurecer o debate sobre o tema no país. “O plebiscito é, sem dúvida, um importante instrumento da democracia participativa. No entanto, seria precipitação realizá-lo agora porque ainda não há um acúmulo do debate na sociedade brasileira”, observa.
O tema, segundo ela, estará entre as principais pautas da 2ª Conferência, onde serão apresentadas proposições de como abordar a questão na sociedade, “para poder amadurecer o debate”.
O ministro José Gomes Temporão tem ressaltado publicamente a importância do debate em torno do aborto, inclusive através da realização de um plebiscito. Como a sra. avalia tal posicionamento?
Desde que criamos a Comissão Tripartite para rever a legislação relativa ao aborto, em 2005, temos defendido que a sociedade brasileira precisa debater essa questão. O plebiscito é, sem dúvida, um importante instrumento da democracia participativa. No entanto, seria precipitação realizá-lo agora, porque ainda não há um acúmulo deste debate na sociedade brasileira. A população não tem informação suficiente para responder a este plebiscito. Então, é preciso primeiro discutir o assunto, debatê-lo. Se no futuro um plebiscito ou referendo será realizado, o próprio debate vai dizer. É isto que a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres defende. Acabamos de tirar o aborto das páginas de notícias criminais dos jornais. Então, temos que caminhar um pouco mais.
A sra. acredita na continuidade do debate após a visita do papa? Segundo notícias divulgadas na semana da visita, o ministro Temporão teria sido aconselhado “a não falar em aborto” durante a estadia de Bento XVI no Brasil.
Acredito que o debate vai continuar. A visita do papa e os problemas que afligem o país, como as mortes decorrentes do aborto feito em condições precárias, são duas coisas dissociáveis. Devemos olhar a passagem do papa por um outro ângulo: uma coisa é a sua vinda e o fato de o Brasil tê-lo recebido carinhosamente, com espírito acolhedor. No entanto, isto não significa que o brasileiro siga os ditames da hierarquia da Igreja. Os mesmos que estavam ali reverenciando o papa usam camisinha, evitam filhos usando anticoncepcionais e, se for necessário, fazem o aborto. Portanto, o debate não será diminuído pela vinda do papa. Evidentemente, essa passagem pelo país reacendeu e animou grupos fundamentalistas, e isto torna a disputa mais acirrada. De certa maneira, a oposição conservadora estava mais silenciosa nos últimos meses, e isto pode mudar.
O tabu em relação ao aborto é um problema cultural. Como abordar a questão de forma a enfrentar tal dificuldade?
O problema é que a a discussão a respeito do tema termina polarizada em ser contrário ou favorável a tal prática, não incidindo no foco principal da questão que é a saúde das mulheres. Ninguém é a favor do aborto. Particularmente gostaria que nenhuma mulher precisasse passar por isso. A gravidez indesejada é uma contingência, um acidente na vida de uma mulher, que deve ser amparada em um momento como esse. O que queremos realmente é que as meninas aprendam a lidar com sua sexualidade, seus direitos reprodutivos, que os meninos saibam respeitá-las, e que, portanto, tenhamos relações sexuais saudáveis, baseadas na igualdade, que possam evitar gravidezes indesejadas e que ninguém precise fazer o aborto. Mas não podemos fechar os olhos para uma realidade que existe no Brasil de hoje. O mundo real é este: mais de 300 mil internações ao ano no Sistema Único de Saúde decorrentes de complicações originadas pela realização de abortos clandestinos.
. A sra. acredita que o presidente Lula, a despeito de suas posições pessoais expressas nos últimos dias, irá enfrentar politicamente esta questão em seu segundo mandato?
Sim. Do ponto de vista do governo, já cumprimos uma etapa desse processo, que era a mais importante: reunir os elementos e fazer a Comissão Tripartite. Agora é a vez do Congresso e da sociedade.
Quais os projetos existentes entre a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e o Ministério da Saúde?
Vamos aprofundar a Política de Planejamento Familiar no Brasil e estamos trabalhando no Programa Integrado para deter a Feminização da Aids e Todos os Agravos à Saúde da Mulher. Trabalhamos juntos o tempo todo.