Publicado originalmente na Revista Radis – Comunicação e Saúde
O termo até então desconhecido virou tema de dezenas de reportagens a partir do final de fevereiro, alardeando a existência de grupos de soropositivos que trocariam “táticas” para transmitir intencionalmente o vírus HIV. “Carimbar” seria o mesmo que contaminar alguém, por meio do sexo sem camisinha, também conhecido como barebacking. As notícias provocaram, de um lado, alarme na sociedade e, de outro, repulsa de organizações e redes de pessoas vivendo com HIV/Aids. “Sensacionalistas”, classificou em nota o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), alertando que as denúncias veiculadas nos meios de comunicação tiveram como base informações contidas em fontes de credibilidade questionável. Segundo o texto, as matérias são equivocadas, criminalizantes, baseadas em estigmas e discriminação.
A Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) também se manifestou, afirmando que a imprensa criou clima de pânico moral e falhou ao ignorar pesquisas, informações qualitativas e diversas técnicas de prevenção disponíveis no Brasil e no mundo. Em entrevista à Radis, o diretor-presidente da Abia, o antropólogo americano Richard Parker, reforça que afastar, estigmatizar e criminalizar as pessoas não vai parar a epidemia de Aids, mas piorá-la. Para o professor da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, há novas ferramentas disponíveis que permitem controlar a expansão da doença, mas os fantasmas do conservadorismo e da discriminação aumentam os riscos.
Como avalia a divulgação dos chamados clubes do carimbo, em que homens soropositivos praticam sexo bareback (sem camisinha) supostamente com a intenção de transmitir o vírus HIV?
É muito importante recuperar a história para descontruir a ideia de que esses comportamentos são novos, que surgiram agora. Na primeira década da epidemia, nos anos de 1980, quando ainda não havia tratamento e nenhuma resposta eficaz em termos biomédicos, as comunidades afetadas — sobretudo a gay — já tinham criado uma resposta: adotaram o uso da camisinha. O vírus HIV ainda não havia sido identificado mas elas já desconfiavam que a infecção era transmitida via sangue, sexo e drogas e, por isso, estabeleceram formas de se fazer sexo dentro de uma epidemia. O “sexo seguro” surgiu como uma série de técnicas para se evitar o risco. Uma maneira de se reduzir danos — apesar de essa expressão ser mais usada quando se fala em drogas — e manter uma vida sexual prazerosa, satisfatória, livre da opressão da sociedade.
O sexo seguro surgiu, então, por iniciativa da própria comunidade.
Os especialistas ficaram fora dessa primeira década de epidemia. O sexo seguro era uma prática comunitária. Naquela época, não vinha de uma intenção egocêntrica — “eu vou me proteger” — mas de uma intenção solidária — “como eu vou proteger os meus parceiros”. No final dos anos 1980, começaram a se formar os programas nacionais de aids, incluindo o do Brasil. Entre 1987 e 1990, 129 países criaram seus programas. Só então os especialistas começaram a entrar na jogada. Eles transformaram a lógica do sexo seguro, que passou a ser uma “prática saudável”, centrada na proteção individual. Em meados dos anos de 1990, finalmente surgiu um tratamento eficaz, com a terapia combinada de vários antirretrovirais. Onde havia sistema de saúde adequado para oferecer acesso universal aos medicamentos, se abriu a possibilidade de o HIV não ser mais uma doença inevitavelmente fatal, com morte terrível, e sim uma doença crônica controlável. Foi justamente nessa época em que, em uma escala pequena, em alguns setores da comunidade gay, mas também entre heterossexuais, começou a haver os questionamentos: “será que vale a pena usar camisinha se a aids não é tão terrível quanto era? eu preciso sacrificar meu prazer sexual por isso?”.
Que é o chamado barebacking…
Foi aí que surgiu a prática do barebacking, por uma parcela de pessoas que haviam adotado o uso do preservativo, mas não lidavam bem com ele. No barebacking, a intenção de transar sem a camisinha é fundamental. Não é uma categoria em que devem ser incluídas pessoas que de repente transam sem proteção, por uma circunstância; é usada para descrever pessoas que transam intencionalmente sem preservativo.
E qual a diferença entre barebacking e clube do carimbo?
Em comparação com o clube do carimbo, a diferença do barebacking é que não há intenção de infectar nem ser infectado. Ao contrário: há várias estratégias de redução de danos. Por exemplo, o serosorting, quando se escolhe fazer sexo com uma pessoa sabidamente da mesma sorologia (positiva ou negativa). Quando os parceiros têm a mesma sorologia, a necessidade de se usar o preservativo não é tão grande. É claro que há um risco, porque eventualmente um que acredita ser negativo pode ter sido infectado depois de passar pelo teste. Outra estratégia é chamada de negotiated safety, muito comum em casais homo e heterossexuais, que decidem não usar preservativo dentro da relação — caso um deles transe com uma terceira pessoa, usa camisinha para não trazer risco para o casal. Obviamente, todo mundo que escolhe transar sem preservativo sabe que não é uma prática 100% sem risco — mas a camisinha também não oferece 100% de proteção. O barebacking acaba sendo uma escolha para pessoas que não procuram se infectar nem infectar os outros mas que, avaliando suas circunstâncias, decidem correr certo risco. Assim como um skatista que não usa capacete ou um motorista que dirige sem cinto de segurança. Cada um de nós avalia e decide o grau de risco que pode assumir em suas vidas, a partir de circunstâncias particulares. O que me preocupa quando surgem tantas notícias sobre o clube do carimbo, é essa confusão que trata o barebacking como uma intenção de infectar os outros ou de ser infectado, o que não é verdade.
Mas como se deve entender essa prática de carimbar?
Para todos que valorizamos o cuidado, é difícil de compreender. É a antítese da intenção solidária dos anos 1980 de proteger os parceiros. Mas também me preocupa essa tendência de julgar sem entender, de fazer uma leitura moral que leva diretamente à criminalização. O estigma e a discriminação são as variáveis mais consistentes ao longo de 35 anos de epidemia de aids, o que mais tem dificultado o enfrentamento da epidemia. É por causa de estigma que governos não querem fazer campanhas, foi por causa de estigma que levou tanto tempo até serem criados os programas de aids, é por causa de estigma que as pessoas com HIV ainda hoje são marginalizadas em todos os setores. Tem sido mais fácil mudar o comportamento das pessoas do que mudar o estigma. Vendo isso reproduzido na discussão do clube do carimbo, fico muito preocupado.
Por que o estigma permanece?
O que faz com que o estigma e a discriminação sejam tão difíceis de se enfrentar é o fato de terem diversas raízes. Desigualdades de gênero, sexual, de raça e etnia, econômica… A epidemia caminha justamente onde esses diversos eixos de desigualdade se cruzam. Um dos pioneiros no ativismo LGBT no Brasil, Herbert Daniel, tinha análise brilhante da aids: ele dizia que a aids caminhava pelas fissuras, pelas rupturas da sociedade. Onde a sinergia de desigualdades é maior, a vulnerabilidade é maior e o estigma é mais devastador. O estigma não é tão forte com um homem gay branco de classe média. Mas a travesti negra da favela sofre com a desigualdade de gênero, da opressão sexual, do racismo, da pobreza… Tudo isso se junta e por aí a epidemia vai. As pessoas não nascem discriminando, elas são ensinadas a discriminar. O estigma tem que ser reproduzido em cada geração, para manter as relações de poder distribuídas em uma sociedade. Usa-se o estigma para afastar e excluir as pessoas que estão à margem. Nesse entendimento, o estigma reforça as estruturas desiguais da sociedade. Sua função é efetivamente justificar a desigualdade. Transforma o que podia ser simplesmente diferença em desigualdade. Acredito que uma das coisas que levantou essa poeira toda com as reportagens do clube do carimbo foi a oportunidade de o estigma — mais ou menos existente, mas não barulhento — vir à tona.
A sociedade tem dificuldade de lidar com a diversidade sexual?
O problema continua sendo a sexualidade. Quando se trata da sexualidade, surgem todos os fantasmas. Em termos gerais, penso que o Brasil, historicamente em comparação com outras sociedades, tem caminhado relativamente bem. Conseguiu abrir um debate público razoavelmente respeitoso sobre questões da sexualidade. Mas, nas beiradas, sempre tem preconceito, medo, fobia, terror, todos esses fantasmas psicológicos que o tema traz à tona. Daí surgiram histórias de que pessoas estavam botando sangue infectado no catchup e tantas outras de uns supostamente tentando infectar outros. Essas histórias voltam. E o estigma afasta as pessoas, as leva para longe do sistema de saúde, para longe dos centros de apoio. Alguém que se identifica como soropositivo pode perder o trabalho, ser hostilizado na rua. Parece óbvio que essa pessoa não vai querer mostrar a cara, nem fazer a testagem com medo de ser positivo e ficar sujeito a discriminação. Os direitos humanos são tão importantes na história da aids não só porque é o correto eticamente mas também porque são eficazes em termos de saúde pública.
Em que sentido?
Se você evita que a pessoa sofra as consequências da discriminação e do estigma, você a traz para dentro do sistema de apoio, faz a testagem, oferece medicamentos, transforma a infecção em uma doença crônica, abaixa a carga viral, diminui as chances de ela infectar outros… Por uma série de razões, quando as pessoas são acolhidas, são protegidas, se reduz a probabilidade de a epidemia avançar. Por isso, podemos estar muito preocupados com um pequeno clube em que supostamente as pessoas têm intenção de infectar outras, mas temos que entender o que está acontecendo a partir da perspectiva delas e não transformá-las em alvo para criminalização.
A Polícia Civil de São Paulo se mostrou disposta a abrir inquérito para investigar os clubes do carimbo.
No começo da epidemia, em várias partes do mundo, houve uma grande discussão sobre as saunas gays. Os mais moralistas pediam o fechamento das saunas alegando que eram antros de infecção, onde as pessoas transavam adoidadamente. No outro lado desse debate, os ativistas falavam que as saunas podiam ser locais de intervenção para se reduzir o risco de transmissão, oferecendo camisinha, gel, intervenções educativas. Se você fecha a sauna, os frequentadores vão procurar outro lugar para transar e se perde a oportunidade de fazer promoção da saúde naquele contexto. No caso do clube do carimbo, o argumento é o mesmo. Afastar, estigmatizar e criminalizar não vai parar a epidemia, mas piorá-la.
Campanhas que tratam da diversidade sexual têm sido censuradas no Brasil. Isso se deve a um crescente conservadorismo, especialmente no Congresso?
Nos anos 1990, o Brasil conseguiu se construir como uma grande liderança no enfrentamento da epidemia de aids em escala internacional, por seu programa de acesso universal aos antirretrovirais mas também por sua ousadia em lidar com a sexualidade com certa abertura e franqueza. Mas, na última década, isso tem ficado cada vez mais difícil. O conservadorismo na sociedade brasileira vem se manifestando mais claramente via conservadorismo religioso — que não é exclusivo dos evangélicos. O resultado é que o Congresso tem bancadas que defendem valores conservadores e fica cada vez mais difícil trabalhar a sexualidade da maneira ousada como já se fez. A sexualidade vai sumindo da prevenção da aids, sendo marginalizada. A discussão sobre prevenção acontece quase que independente da discussão sobre sexualidade. Alguns acham que repetir o mantra “use camisinha” é discutir a sexualidade. Não é. É simplesmente uma ordem. Com a eleição da presidenta Dilma Rousseff, sendo talvez menos hábil politicamente e por isso muito mais sujeita a pressões de diversos tipos, o conservadorismo religioso tomou conta. E não só na área da saúde, com a censura de campanha de carnaval, mas também em outras áreas, vide a censura à campanha contra homofobia na escola. Materiais mais dirigidos a subgrupos, como os transexuais ou os jovens de homens que fazem sexo com homens, foram tirados de circulação. Isso já é um ato de discriminação. Quando isso acontece, as pessoas a quem são negadas essas informações já entendem que estão sendo discriminadas. Se o país quer criminalizar alguma coisa, que seja a bancada conservadora. Quantas pessoas morrem porque essas campanhas são tiradas do ar? Eu acredito que mais que pelo clube do carimbo. São pessoas que não medem as consequências de suas posturas políticas. Desde o começo, o que de fato mais apoia a epidemia é o conservadorismo, seja do governo Reagan nos Estados Unidos, do governo Mbeki na África do Sul, ou o governo Dilma no Brasil. São exemplos de como a política eleitoral pode reverter ganhos do campo da saúde. É importante dizer que a culpa não é dos técnicos da área, mas das forças políticas que impedem que façam bem seu trabalho. Devemos falar em criminalização de deputados que querem combater os direitos sexuais e que impossibilitam que a sexualidade seja tratada de maneira positiva. É um desserviço para o país.
Um dos avanços recentes na prevenção da aids internacionalmente foi a profilaxia pré-exposição (PrEP, que consiste no uso de remédios antirretrovirais, por pessoas que não têm HIV, como forma de evitar a infecção), mas o Brasil ainda não a incorporou ao SUS.
O Brasil tem demorado, sim, a adotar a profilaxia pré-exposição e outras tecnologias novas. Hoje, há muitas opções para se trabalhar com prevenção, mas ainda estamos congelados no tempo. A prevenção pós-exposição (uso de medicamentos que fazem parte do coquetel utilizado no tratamento da aids logo após uma situação de risco), por exemplo, está disponível no SUS, mas muitas pessoas não sabem disso — e provavelmente o Estado não divulga porque é caro. O Brasil ainda não incorporou a prevenção pré-exposição, do tipo Truvada, não sei por que razões. Provavelmente porque é caro, mas já há testes de um PrEP injetável que protege por seis meses. Os Estados Unidos adotaram esse tipo de prevenção, como carro-chefe de sua campanha nacional e também em nível estadual, como em Nova Iorque. Temos que começar a pensar a prevenção como uma caixa de ferramentas. Existem várias ferramentas que podem ser usadas, por diferentes pessoas em diferentes situações de risco. Cada uma vai avaliar a sua situação de risco e saber quais são as metodologias melhores para ela. Isso nos obriga a ter um grau de informação sobre essas ferramentas e a conscientizar as pessoas sobre como avaliar sua situação de risco. Sem abandonar o preservativo como ferramenta central, precisamos reconhecer que não são todos que conseguem usar, por diversas razões. Em vez de adotar uma postura de avestruz, enfiar a cabeça na areia para não ver, devemos reconhecer a realidade, parar de planejar em cima de fantasmas e fantasias. Trazer a prevenção para o século 21, para a realidade, e não para o conto de fadas. Assim, podemos voltar a vencer a epidemia. Enquanto isso, com certeza a epidemia vai continuar vencendo, com o aumento da infecção em populações-chave, como os jovens gays e a população trans. Uma epidemia fora de controle quando há armas capazes de controlá-la.
Fonte: Radis/Ensp/Fiocruz