CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Falta posicionamento político

O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, disse na semana passada, em entrevista à BBC Brasil, que o governo não vai se dobrar à pressão da Igreja e recuar nos programas de distribuição de anticoncepcionais, além de continuar defendendo a mudança na legislação do aborto como uma questão de saúde pública. Temporão também afirmou esperar que o projeto de lei que propõe a descriminalização do aborto, apresentado em 2005, pela ex-deputada Jandira Feghali, seja desengavetado agora e entre na pauta de discussão do Congresso. Em relação à realização de um plebiscito, o ministro observou “isso é uma coisa que depende do grau de maturidade da sociedade”. A socióloga Maria Betânia Ávila, coordenadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, sediado em Recife, Pernambuco, concorda com tal alternativa:


“Sou absolutamente a favor do fortalecimento dos mecanismos da democracia direta, como um plebiscito ou um referendo. Mas precisamos avançar mais na reforma política que nos garanta os meios para que, no processo de plebiscito, seja garantida a expressão dos diversos posicionamentos e a possibilidade do debate”, diz ela, nesta entrevista.


Uma das maiores lideranças feministas do Brasil nas últimas décadas, Betânia aponta dois obstáculos para que a discussão sobre aborto no Brasil avance: a ambigüidade no posicionamento político e a maneira como a questão é abordada. “A pergunta que se faz é se as pessoas são contra ou a favor do aborto. Não se trata disso. A pergunta deveria ser se as pessoas são contra ou a favor da legalização do aborto”, salienta.

O governo tem se mostrado favorável às mudanças na legislação restritiva do aborto no país. A sra. acredita que o debate irá avançar?

Acredito que possa haver mudanças, mas um dos fatores que emperram os avanços é a ambigüidade no posicionamento público, infelizmente uma fraqueza das relações políticas no Brasil. Os partidos políticos, sujeitos importantes na relação com o Estado, são absolutamente ambíguos em relação aos direitos sexuais e reprodutivos. Não existe uma linha de um partido sobre a questão da sexualidade. Então, quando chega um momento como uma eleição ou a vinda do papa, ser contra o aborto, por exemplo, é algo que recompõe o quadro moral dos políticos. A questão também é colocada à sociedade através daquela velha pergunta insidiosa: você é contra ou a favor do aborto? Não se trata disso. A pergunta correta é se as pessoas são contra ou favor da legalização do aborto.

A sra. acredita que essa forma de abordar a questão poderia comprometer a realização de um plebiscito, possibilidade levantada pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão?

Sou absolutamente a favor do fortalecimento dos mecanismos da democracia direta, como um plebiscito ou um referendo. Mas precisamos avançar mais na reforma política que nos garanta os meios para que, no processo de plebiscito, seja preservada a expressão dos diversos posicionamentos e a possibilidade do debate. O debate ainda é controlado pela mídia, pelo poder econômico e pelos partidos mais poderosos. Nesse momento não temos condições democráticas para isso. A mídia é privada no Brasil e ela defende os interesses que quer. Na novela “Páginas da Vida”, que acabou há três meses, os piores vilões apareciam defendendo que a mocinha da trama fizesse um aborto. Todos os personagens decentes eram contrários. Foi um panfleto anti-aborto na TV recordista de audiência. Quando falo em reforma política, não quero dizer que esta reforma vai estatizar a mídia, mas vai garantir que os diversos sujeitos tenham espaço para dizer sua posição publicamente.


Além da mídia, a interferência da Igreja na política também não é um obstáculo?

O Estado brasileiro é legalmente laico, é importante afirmamos isso como forma de resistência e de uma grande conquista. Isso é o formal e o legal. Mas existe de fato uma instituição com muito poder – a Igreja – que interfere na vivência democrática garantida pelo Estado laico. Isso se dá no campo da relação de disputa de poder político. O problema é que o processo de secularização não está plenamente estabelecido no Brasil, porque na vida cotidiana, as pessoas conseguem ser católicas e abortarem, por exemplo. Mas a mesma mulher que aborta não tem coragem de dizer publicamente que o fez, porque é um crime e um pecado. Outro sinal de que este processo de separação entre Estado e Igreja ainda não está totalmente finalizado é o fato de existir uma bancada evangélica na Câmara de Deputados. Ao restringir o âmbito dos princípios democráticos – impedindo que leis sejam promulgadas – os políticos evangélicos tentam restringir o exercício da liberdade que o Estado laico deve garantir.

Em agosto, será realizada a 2ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Como a sra. avalia o processo de discussão do tema do aborto desde 2004, ano em que aconteceu a 1ª Conferência?

Da 1ª Conferencia para cá tivemos a Comissão Tripartite, conseguimos que o Projeto de Lei que propõe a descriminalização do aborto fosse entregue no Congresso e, apesar da pressão, conseguimos obter também o posicionamento favorável de autoridades como o ministro Temporão. Penso que o mais importante não foi ele propor o plebiscito, mas ter se posicionado. Isto, além de demonstrar um espírito democrático, mostra que o governo está voltado a questões de interesse da metade da população brasileira – as mulheres. Acredito que até onde avançamos, não há como voltar mais para trás.