A obra de Michel Foucault se destaca, entre outros aspectos, por apontar a dimensão simbólica que os eventos biológicos adquirem e mostrar como isso ganha certos significados que estão presentes na vida cotidiana, nas instituições e nos discursos. Relações de poder são forças que influenciam e regulam, por exemplo, o universo da saúde. A própria medicina, conforme o campo da Saúde Coletiva aponta, é uma prática também social. Os códigos de gênero, por exemplo, encontram-se presentes no valor e nas noções que muitas enfermidades adquirem.
O Lúpus, doença crônica autoimune que se caracteriza por um desequilíbrio imunológico no qual as células de defesa, originalmente programadas para nos defender, acabam por atacar tecidos e órgãos, tem grande incidência entre as mulheres. De cada dez casos, conforme pesquisas conduzidas pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, nove atingem mulheres. Um dado que ultrapassa a esfera meramente biológica, ganhando contornos também sociais e simbólicos. Considerada rara, a doença – que não tem uma causa conhecida – tem tratamento específico que, se bem feito, permite às pessoas uma vida normal.
A psicanalista e cientista social Nadia Regina Loureiro de Barros Lima, atendendo pacientes no Hospital da Universidade Federal de Alagoas, começou a observar os sentidos que o lúpus constitui na subjetividade das mulheres.
Há cerca de 10 anos, ela montou o Grupo de Apoio às Pessoas com Lúpus (GAPLúpus), que busca divulgar conhecimento e conscientizar pacientes, parentes e comunidade do campo da saúde sobre a doença. Em que medida ser mulher, no Brasil, é um aspecto decisivo na construção social da doença? De que maneira a psicanálise pode estar articulada para entender a dimensão social e de gênero do lúpus? Buscando refletir sobre tais aspectos, Nadia Regina entrevistou 17 mulheres, pacientes do Ambulatório Multidisciplinar de Lúpus do Hospital do Açúcar de Maceió (AL). O resultado da pesquisa está no livro “Lúpus: o que dizem as mulheres? O adoecer feminino como uma inscrição dos afetos no corpo”, lançado recentemente. Em entrevista ao CLAM, a autora discute sua proposta de apreender a relação psicossocial entre a doença e as mulheres.
A doença aparece em seu livro como mais do que um evento meramente biológico, a partir de um olhar de gênero. Que efeitos concretos, para além dos sintomas, o Lúpus desperta nas mulheres?
Em meu estudo, busco apreender o sentido do Lúpus para as mulheres portadoras dessa afecção e, nesse sentido, os estudo de gênero constituem a ferramenta teórico-metodológica imprescindível. Entre os estudos realizados sobre o adoecer feminino a partir de um olhar de gênero, destacamos os de Susan Bordo e sua leitura foucaultiana do corpo (patologias de protesto) e o de Emilce Dio Bleichmar (feminismo espontâneo da histeria) e em ambas há uma relação existente entre corpo e poder. Assim sendo, longe de uma visão apenas biológica, o adoecer se fundamenta numa rede complexa de relações político-culturais. Em relação à nossa análise, na busca do sentido do adoecer, entendemos que o sentido do Lúpus é construído na rede discursiva tecida pelo fio patriarcal de gênero, ou seja, sob a égide dos valores patriarcais, uma categoria historicamente dominante (os homens) tende a exercer seu domínio sobre uma outra (as mulheres) e seus corpos, particularmente pela via do controle da sexualidade e da reprodução biológica. Entre os efeitos do sentido discursivo patriarcal produzido nas mulheres portadoras de Lúpus destacamos o medo da doença (… que até o nome é feio) e da morte (… pânico, morrer logo, ser a próxima vítima); a emergência da histórica culpabilidade feminina (… o que é que eu fiz? por que eu?) ligada à clássica tríade associativa “doença – pecado – culpa”; ações dirigidas ao ocultamento (do corpo, da doença, da sexualidade) e ao afastamento do convívio social por se perceberem estigmatizadas.
É possível fazer algum paralelo entre as implicações simbólicas da incidência da doença nas mulheres e a noção histórica e culturalmente construída de fragilidade da figura feminina?
Os estudos de gênero, ao analisarem o adoecer feminino, vêm trabalhando a relação entre corpo e poder e este, numa estrutura capitalista patriarcal, submete o feminino, fragilizando-o. Assim sendo, a partir de um olhar de gênero, o modo particular como determinadas doenças acontecem em mulheres, pode ser apreendido como efeito da construção discursiva da ordem patriarcal, própria das condições históricas em que cada cultura vai moldando subjetividades.
Nesse processo, a linguagem é constitutiva e vai nomeando e significando sujeitos, fatos, relações. Em nosso estudo, uma particularidade da doença, cuja incidência é significativamente frequente em mulheres, é o fato da mesma ter um nome masculino de um animal feroz – Lúpus – que, no imaginário coletivo aterroriza o feminino,submetendo-o. Isso acontece tanto na dimensão simbólica, produzindo um efeito de sentido ameaçador, quanto na dimensão biológica, pelos danos acarretados pela doença no corpo.
Que articulações entre psicanálise e gênero ajudam a entender o sentido do adoecer para as mulheres investigadas?
A leitura psicanalítica oferece uma contribuição fundamental para a apreensão de nosso objeto de estudo – o sentido do adoecer de Lúpus construído pelas mulheres – já que seu foco de atenção é direcionado para a linguagem na constituição das formações inconscientes. Já Freud dizia nos seus estudos sobre as psiconeuroses que, quando a palavra não vem, o sintoma aparece. Lacan, por sua vez, vai afirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e isso aponta para a relevância do sentido discursivo do sujeito, enquanto posição de onde está falando.
Em se tratando do sujeito feminino, sua construção subjetiva é histórica e discursivamente constituída de modo diverso da masculina, em função das relações sociais e posições de sujeito que assume na sociedade capitalista patriarcal. Ao buscar o sentido do adoecer de Lúpus em mulheres, a partir do modo como estas constroem discursivamente a doença, se faz necessário apreender seus dizeres tendo como referência os subsídios que a psicanálise oferece sobre a função da sexualidade e dos mecanismos inconscientes no processo de construção subjetiva.
Em função disso, a contribuição da psicanálise é fundamental na apreensão da subjetividade, enlaçamento do simbólico nos seres humanos. Em minha análise, as articulações com a psicanálise que contribuem para entender o sentido do adoecer para as mulheres investigadas se fazem pela via do simbólico, seja com a psicossomática, seja com os estudos de gênero. Com a psicossomática, a partir de uma leitura lacaniana da lógica significante (registros Real, Simbólico, Imaginário/ RSI), que entende a afecção como um efeito direto dos afetos no corpo, uma “falha epistêmica”, uma espécie de solução para um defeito de filiação simbólica. Os significantes nomeiam o corpo a partir dos registros RSI e a lógica significante trabalha com a construção discursiva do sujeito psíquico e, assim sendo, o adoecer é atravessado por dispositivos simbólicos, funcionando como um efeito de sentido.
Entre os traços a destacar nesse processo de produção de sentido como efeito discursivo da posição de sujeitos femininos, apontamos a questão das perdas e separações, instrinsecamente relacionada com o poder dos afetos e também com a eclosão das afecções psicossomáticas. Já no que se refere à articulação da psicanálise com os estudos de gênero, a mediação pela via do simbólico acontece visto que as formações de linguagem não só precedem a existência de homens e mulheres, mas os inserem em posições simbólicas muito antes de terem consciência de existirem.
Então, ser homem ou mulher é uma distinção que pesa nas implicações simbólicas de se estar doente?
Sim. É nesse sentido que a psicanalista Maria Rita Kehl afirma que “homem” e “mulher” são os primeiros significantes que nos designam logo que chegamos ao mundo. Como seres de linguagem, somos inscritos num grupo marcado, desde logo, por características comuns. Estas marcas apontam para um sentido atribuído, sentido este que, mesmo sendo feito a partir de nossos corpos, é efeito (“é feito”) de um discurso já previamente estabelecido: o discurso generizado.
Assim sendo, se a posição masculina e feminina é da ordem do simbólico, é esse elo simbólico que vai permitir o diálogo estabelecido entre gênero e psicanálise pela produção feminista: as patologias de protesto como uma “solução” possível diante do conflito estabelecido entre as mulheres e os mecanismos de controle que lhes impõem padrões de feminilidade, bem como o sentido da contradição (resistência e reprodução) embutido nessa busca de “solução”; a histeria como um feminismo espontâneo. Ao trabalhar a relação entre gênero, psicanálise e subjetividade, merecem destaque alguns pontos levantados sobre a condição do adoecer das mulheres nesse contexto patriarcal intrinsecamente relacionado com as relações de poder: repressão sexual, divisão dos espaços público e privado, sendo este atribuído ao feminino reinando nas relações interpessoais e familiares; tipos de poderes próprios a cada gênero, tradicionalmente se atribuindo ao masculino o poder racional e econômico, enquanto ao feminino, o poder dos afetos, pela regulação e controle das emoções moldando a construção subjetiva feminina; a culpabilidade feminina; a vaidade das mulheres, resultante do lugar de objeto para o outro.
A equipe que trata dessas mulheres é multidisciplinar. Qual a importância de um acompanhamento das mulheres a partir de diferentes pontos de vista? Como se dão as relações entre os profissionais envolvidos no tratamento?
Entendendo o adoecer como um fenômeno que diz respeito a uma totalidade biopsicosocial, a equipe multiprofissional vem responder à essa realidade, cuja premissa foi estabelecida por Hipócrates ao afirmar que é mais importante se preocupar com o doente do que com a doença que a pessoa tem. Isso significa contemplar a unidade dialética soma – psyché constituinte do ser humano. Na experiência com o Grupo de apoio às pessoas com Lúpus (GapLúpus), a relação entre profissionais das áreas bio – psico – social acontece através do apoio disponibilizado ao grupo por ocasião das reuniões e atendimento clínico; nas reuniões, profissionais da saúde realizam palestras sobre as implicações do Lúpus em diferentes órgãos e sistemas do corpo, seguidas de questionamentos e esclarecimentos de dúvidas.
Além disso, são realizadas dinâmicas grupais tendo em vista trabalhar o aspecto emocional, o relacionamento interpessoal, a organização grupal, esclarecimentos e informações sobre saúde, direitos e cidadania. A abordagem educativa nos programas educativos de saúde tem se mostrado um recurso efetivo, na medida em que busca a adesão das pessoas enfermas ao tratamento. Isso acontece de modo producente com a atuação de equipes multiprofissionais orientando sobre aspectos gerais da doença, tratamento medicamentoso, exercícios, dietas, relaxamento, entre outros procedimentos educativos, no sentido de apontar para a construção de novos sentidos sobre o adoecer: problematizando o processo de construção do adoecimento, criando novas relações de estar no mundo e de lidar com a doença. No caso do adoecer feminino, novas relações com o adoecer – a dor é ser -, oferecendo e se dando possibilidades para a dor deixar de ser, no feminino, o centro do ser.