CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Mundo L mais visível

Na última sexta-feira (29 de agosto), foi comemorado em todo o Brasil o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, festejado no país desde 1995, quando aconteceu o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), primeiro espaço organizado por mulheres lésbicas e bissexuais na cena política brasileira. A data surgiu para mostrar a mobilização especificamente feminina dentro do então movimento homossexual, que depois passou a se chamar movimento GLBT e recentemente LGBT. A inversão das letras foi uma decisão tomada na plenária final da I Conferência Nacional que reuniu lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em junho passado, em Brasília. Na análise da cientista social Gláucia Almeida, pesquisadora associada ao CLAM, a troca de posição das letras demonstra a importância da visibilidade lésbica e a necessidade de enfrentar o sexismo dentro do próprio movimento.

No entanto, ela salienta na entrevista a seguir, que tal inversão só passará a fazer sentido, na prática, quando forem implementadas as políticas públicas direcionadas ao segmento, definidas na Conferência. “Sem que essas ações sejam claramente definidas, não há como antever resultados dessa inversão de letras”, afirma.

Gláucia Almeida é autora da tese de doutorado em Saúde Coletiva intitulada “Da invisibilidade à vulnerabilidade: percursos do corpo lésbico na cena pública brasileira face à possibilidade de infecção por DSTs e Aids”, defendida no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), sob a orientação do antropólogo e professor Sergio Carrara. No trabalho, a pesquisadora mostra como foi sendo construído um discurso político demonstrativo da vulnerabilidade das mulheres que fazem sexo com mulheres às DST/Aids, e como esse discurso é potencialmente gerador de outras vulnerabilidades. O estudo mostrou também como o movimento lésbico se estruturou dentro do movimento homossexual, discutindo também alguns aspectos da vulnerabilidade individual, social e programática desse segmento.

Uma das decisões tomadas na I Conferência de gays, lésbicas, travestis e transexuais este ano foi colocar a letra L na frente na sigla do movimento, que passou a se chamar LGBT. O que a inversão das letras significa?

Isso demonstra a importância da visibilidade lésbica e da necessidade de enfrentar o sexismo dentro do próprio movimento. Mas enquanto não tivermos claramente definida a implementação das políticas publicas decididas na Conferência não há como antever resultados dessa inversão de letras. Os contextos locais serão decisivos. Se não houver uma sensibilização ético-política dos gestores públicos em nível local – o que, para mim, é tarefa do movimento e do governo – a tendência é de que essas políticas não saiam do papel.

As lésbicas transitam por dois movimentos – o LGBT e o feminista – com interseções no movimento de mulheres negras. Que agendas são colocadas nesses contextos, levando em conta as especificidades do segmento?

A extensão da agenda feminista sempre vai representar ganhos para as mulheres lésbicas e bissexuais. Há uma demanda pela discussão da saúde das lésbicas para além da saúde sexual, considerando a saúde em uma perspectiva mais ampla, que atinge o campo do sofrimento psíquico, da experiência de estigmatização e de violência e suas articulações com a saúde. Essa vem sendo a principal demanda na agenda política do movimento lésbico nos últimos anos. O fundamental seria produzir uma mudança de atitude dos profissionais e serviços de saúde na relação com essa população. Do mesmo modo que se faz necessário acontecer em relação ao grupo das travestis e transexuais. De certa maneira, a qualidade de atendimento em saúde tanto na rede pública quanto na privada também é uma questão para essas populações.

A identidade lésbica parece ser menos visível do que as outras identidades dentro do movimento, não?

A invisibilidade da identidade lésbica está ligada à invisibilidade histórica e cultural do gênero feminino no que diz respeito ao seu desejo e autonomia. Os trabalhos femininos são desvalorizados socialmente e mal remunerados se comparados aos masculinos, e isso tem um efeito na autonomia feminina e em sua expressão pública. Os bares lésbicos, por exemplo, tendem a ser majoritariamente freqüentados por mulheres de camadas populares. A extrema visibilidade no jeito de se vestir e nos trejeitos associados ao masculino é mais freqüente entre lésbicas de camadas populares.

Há também uma questão interna ao movimento que, desde a formação do grupo SOMOS, a raiz do movimento, que já se apresentava: em 1980, houve o primeiro racha protagonizado pelas lésbicas, por se sentirem excluídas das demandas do grupo, tendência que persiste até hoje. Atualmente, esta é uma tendência mais branda, que vem sendo discutida, embora ainda existam grupos que se dissolvam quando a convivência cotidiana entre gays e lésbicas fica inviável.

As outras identidades do movimento LGBT têm visto algumas de suas demandas serem atendidas. Que especificidades contempladas pela identidade lésbica ainda precisam ser discutidas?

Hoje já se fala em homens transexuais dentro do movimento brasileiro, o que há cinco anos não se falava. Isso certamente coloca novas demandas para o Sistema Único de Saúde, porque alguns desses homens declaram a necessidade de cirurgia de mastectomia e histerectomia e não demandam o neofalo como alguns dos atuais programas de redesignação sexual oferecem.

Cresceu também um discurso próprio das mulheres bissexuais nos encontros realizados pelo movimento de lésbicas. Acredito que o movimento caminha para uma diversificação maior de suas demandas e para uma maior heterogeneidade de suas bases.

Qual a importância do dia 29 de agosto – Dia da Visibilidade Lésbica?

Não é à toa que se fala em visibilidade e não em orgulho lésbico. No caso dos homens a questão colocada não é a visibilidade dos mesmos, já que estes já são hipervisíveis, mas a questão de uma imagem positivada. No caso das mulheres, por muito tempo sequer existiu uma imagem negativa. A maior violência contra esse público era a negação de sua existência. O sexo entre mulheres ainda é visto pelo senso comum como uma atividade sexual preliminar ou um incentivo ao desejo masculino e não como estruturante de relações afetivo-sexuais autônomas.

A visibilidade midiática das lésbicas aumentou. De que maneira isso contribui?

Sem duvida, a abordagem da temática em séries e telenovelas tem ajudado na construção da visibilidade do segmento. O único risco é de se criar e cristalizar visões estereotipadas das lésbicas, seja o estereótipo da sapatão masculinizada, grosseira e violenta, ou o da lady ultra-feminina. Uma visibilidade lésbica mais positiva pelos meios de comunicação implicaria em um reconhecimento da pluralidade de tipos humanos e condutas. A série “The L world” não trata a homossexualidade feminina como uma questão menor e ajuda a desconstruir essa glamourização. As lésbicas do seriado perdem o emprego, brigam com a família, enfim, vivem dramas humanos. Elas vivem problemas, apesar de serem de camadas altas. A série trouxe a pluralidade que vimos reclamando no Brasil, embora com as limitações de abordar a realidade norte-americana, bem distinta da brasileira.