CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Novas conciliações

Os homens brasileiros são bem menos conservadores em suas concepções a respeito do papel da mulher no mercado de trabalho do que os japoneses, a despeito das diferenças socioeconômicas entre os dois países. Por sua vez, os homens suecos são mais abertos em relação à divisão do trabalho doméstico e ao papel da maternidade do que as mulheres brasileiras. E em relação ao trabalho doméstico, o tempo que as brasileiras dedicam às tarefas do lar é o dobro do tempo das mulheres americanas ou suecas. Estes são alguns dos resultados de uma pesquisa iniciada em 2002 pelo ISSP (International Social Survey Science Programme), da qual resultou o livro “Novas conciliações e antigas tensões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada”, publicação organizada pelas professoras Clara Araújo, Felícia Picanço (ambas da UERJ) e Celi Scalon (UFRJ) e que será lançada no dia 21 de novembro, na UERJ.

Tendo como objetivo promover pesquisas comparadas de temas sociológicos contemporâneos, o ISSP é um consórcio de instituições acadêmicas que se uniram para fazer pesquisas amostrais em torno de diversos temas, escolhidos a cada dois anos. A pesquisa em questão teve como tema a conciliação entre família e trabalho e como homens e mulheres percebem e vivenciam essa conciliação. No Brasil, o estudo foi realizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) e os resultados foram comparados com os dados obtidos em outros sete países – Estados Unidos, Suécia, Espanha, Chile, Portugal, Polônia e Japão. Foram entrevistados 2000 homens e mulheres em todo o Brasil.

“Uma das questões que procuramos investigar era se o fato de ser mulher aqui no Brasil, no Japão ou na Suécia, estabelece uma identidade comum e um nível de padrão de trabalho, conciliação e de dificuldade que suplanta as diferenças de cada país em termos econômicos e culturais”, lembra a socióloga Clara Araújo, professora do departamento de Ciências Sociais da UERJ e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Desigualdade Contemporânea em Relações de Gênero (NUDERG).

Um dos dados da pesquisa mostra que os homens suecos são menos conservadores em relação à divisão do trabalho doméstico e ao papel da maternidade do que as mulheres brasileiras. “O que este dado nos sugere é que o gênero é uma categoria de fato muito importante e que determina um diferencial na vida de homens e mulheres em todas as sociedades, bem como as condições socioeconômicas e culturais. Quem cuida das crianças? Quem paga as contas? Nesse contexto, a cultura conta muito”, avalia Clara.

Outro dado: a diferença entre o envolvimento de homens e mulheres em relação a temáticas como a divisão do trabalho doméstico é grande entre Japão e Brasil, por exemplo. Segundo a pesquisadora, embora o Japão tenha um desenvolvimento socioeconômico elevado, o país apresenta também uma cultura tradicional e de valores hierárquicos, o que faz com que, em termos de políticas públicas, o Brasil esteja mais avançado comparativamente.

“Mas nosso país é mais atrasado do que EUA e Suécia em termos de políticas, do envolvimento masculino com a vida doméstica e em relação às concepções das próprias mulheres. Os homens destes países têm uma cabeça ‘mais aberta’ do que as mulheres brasileiras ou japonesas em relação a esses temas”, lembra a socióloga.

Segundo a socióloga, não há uma única causa para essas discrepâncias culturais. “Antes tínhamos uma visão muito linear da idéia de desigualdade de gênero: quanto mais desenvolvimento maior a igualdade, e quanto maior a educação de um país, maior a consciência”. Para ela, o exemplo do Japão mostra que as coisas não são bem assim. “No Japão todo mundo é altamente escolarizado e o nível de desenvolvimento é extremamente elevado. No entanto, existe por lá uma grande desigualdade no envolvimento masculino e feminino com o trabalho doméstico. Os homens trabalham, as mulheres ficam em casa e eles não se envolvem de forma alguma no trabalho doméstico”, relata Clara.

O estudo também revela que o tempo que as mulheres brasileiras dedicam ao trabalho doméstico é o dobro do tempo das mulheres americanas ou suecas. “As diferenças culturais contam para esse quadro, mas os recursos (equipamentos elétricos para minimizar a carga de trabalho e o suporte e subsídios do Estado) que essas pessoas dispõem também são determinantes. Aí vemos o quanto uma intervenção e uma política pública podem fazer a diferença e influenciar as condições de vida e a questão do alcance da igualdade entre homens e mulheres”, observa a professora.

A pesquisa sugere que, se de um lado a cultura é um fator importante, o papel das políticas públicas também pode ser essencial para agilizar a igualdade de gênero. De acordo com estudo comparativo, as mulheres sempre estão em um padrão pior em relação aos homens em cada país. No Brasil, 43% da população economicamente ativa é de mulheres. Boa parte destas trabalha 40 horas ou mais e ganham cerca de 70% menos do que os homens.

“Mas em países como os EUA a jornada de trabalho é menor e ainda por cima existem políticas públicas que não somente reduzem o tempo do trabalho doméstico como também dão subsídios para quem tem família e crianças. Também lá existem conjuntos residenciais que disponibilizam máquinas de lavar comunitárias, por exemplo, o que facilitaria a vida de muitas brasileiras caso esse sistema fosse implantado aqui. Como vivenciar um mundo que é voltado para o trabalho, em que as famílias são cada vez menores – muitas vezes monoparentais – sem pensar em como conciliar a vida doméstica com a vida pública?”, questiona Clara.

Para ela, “a saída para essa problemática não pode se dar apenas pelo viés da discussão de gênero em si – o que chamamos intragênero. Tem de haver uma discussão que articule gênero com outras dimensões da vida social e da política, que reconfigure a dinâmica da vida pública e privada para homens e mulheres. Se perguntamos aos homens se eles acham que as mulheres devem trabalhar fora, eles dizem que sim. Mas ao mesmo tempo dizem que acreditam que os filhos sofrem muito quando as mães trabalham fora. Então vemos que o envolvimento masculino continua sendo muito pequeno, deixando que a conciliação entre vida doméstica e trabalho pago permaneça nas mãos das mulheres”, analisa.

A pesquisadora lembra que o próprio sistema de trabalho part-time, adotado nos EUA e em países europeus desenvolvidos, mantém essa forma tradicional de pensar. “É a mulher que acaba optando por esse tipo de jornada. Os estudos mostram que os part-times são os piores trabalhos, mais mal pagos e com menos estabilidade, mas elas acabam optando por isso para poder conciliar”, salienta.

O livro “Novas conciliações e antigas tensões? Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada” traz artigos de Nilcéia Freire, ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), de Cristina Bruschini (FCC), da inglesa Rosemary Crompton e da chilena Irma Arriagada, entre outros. Além do lançamento da publicação, o sociólogo sueco Göran Therborn, autor do livro “Sexo e poder: a família no mudo de 1900 a 2000”, considerado um dos mais amplos trabalhos sobre família e gênero no mundo, dará a palestra “O lugar do trabalho nas relações de poder entre os sexos”. O lançamento do livro e a palestra de Therborn acontecerão no dia 21 de novembro, a partir das 18h30, no auditório 91 da UERJ.