Em recente visita ao Brasil, a socióloga Filomena Gerardo falou sobre sua pesquisa de tese de doutorado – “A construção da identidade das mães na adolescência: estudo comparativo em Portugal e em França”-, defendida em junho na Universidade de Sorbonne (Paris), sob orientação de François de Singly, cujo objetivo era compreender a construção da identidade de jovens mães na adolescência nestes dois países. “Se a adolescência é o momento da crise de identidade, quando os (as) jovens procuram criar a sua própria autonomia, o que significa um evento como a gravidez neste período? Eu queria perceber, do ponto de vista da jovem, como ela encarava a maternidade numa sociedade que exige um percurso escolar cada vez mais longo e uma formação profissional mais exigente devido a um mercado de trabalho cada vez mais competitivo”, relata a pesquisadora, nesta entrevista.
De acordo com o estudo empreendido por Filomena, 19 em cada mil nascimentos em Portugal são de mães com menos de 19 anos, fato visto como desviante face à idade média da mulher portuguesa no momento de ter seu primeiro filho, que é de 27,8 anos. No caso francês, o número de mães na adolescência é de 7 em cada mil nascimentos, e a idade média da mulher francesa quando tem o primeiro filho é de 28,2 anos.
Filomena entrevistou, em ambos os países, em Lisboa e Paris, 46 jovens de 13 a 21 anos descendentes de outras nacionalidades, com predominância para jovens de origem africana. “Estas jovens encontram-se divididas entre um modelo cultural tradicionalista defendido pela família, e a sociedade de acolhimento que defende um modelo moderno, de emancipação para a mulher”, observa ela.
Segundo a socióloga, “a gravidez na adolescência é vista como um problema social em Portugal, muito mais do que na França. Apesar de haver um empenho do Estado nos dois países, há uma maior intervenção estatal na França do que em Portugal”, avalia Filomena, lembrando que uma das surpresas ao longo do estudo foi saber da existência de instituições de proteção a mães adolescentes nos dois países, as quais influenciam de forma significativa o modo como as jovens vão hierarquizar sua construção identitária.
Um dos dados de sua pesquisa mostra que, tanto no caso francês, como no português, as instituições de acolhimento e o contexto residencial da mãe adolescente influenciam o modo como estas jovens constróem a sua identidade pessoal. Qual o papel das instituições de apoio e da família nesse processo?
O que a maternidade vem permitir é um reconhecimento familiar do seu papel social feminino e do seu papel social de mãe na sociedade. Elas têm que demonstrar competências maternais, seja no contexto português ou no francês, e provar à sociedade que são capazes de ser mães, porque, cronologicamente, o que se espera dessas jovens é que tenham um percurso escolar longo, integrem o mercado de trabalho, saiam da casa dos pais e tenham autonomia e independência residencial para, então, entrarem no papel de mães. A questão é que elas adquirem uma função social que normalmente é atribuída aos adultos enquanto ainda estão cronologicamente no grupo de idades dos adolescentes.
Nesse sentido, a maternidade na adolescência nos casos em que as jovens são acolhidas por instituições vem permitir que elas adquiram competências pessoais e sociais. Então verificamos um duplo fenômeno de reconhecimento pessoal e social: por um lado, a sociedade valoriza o seu papel de “mãe de” e por isso as apóia visando a proteger a criança; e por outro, a família as encara como bem-sucedidas após se beneficiarem das ajudas estatais que as instituições oferecem.
Em linhas gerais, como este apoio por parte do Estado às mães adolescentes está organizado em cada um dos dois países, Portugal e França?
Não existem politicas dirigidas especificamente para mães adolescentes, o que existe é uma conscientização da necessidade de proteger suas crianças. Elas obtêm ajudas financeiras, sobretudo as mães que vivem sós, porque também muitas das mães adolescentes constituem familias monoparentais. No contexto francês, elas se beneficiam do “L’Allocation Parent Isolé- API”, e no contexto português, elas têm direito ao “Abono de família”. No caso das moças institucionalizadas, existem recursos financeiros e sociais que são geridos pela instituição, que acabam por beneficiá-las com a matrícula da criança em creche para que a jovem continue a estudar ou adquira uma formação profissional. No caso das jovens africanas ilegais em Portugal, a instituição trata da sua regularização no país. Como o Estado Providência é mais forte na França do que em Portugal, as ajudas monetárias são superiores às de Portugal. Estas mães adolescentes acabam por contar com apoios que são atribuídos às mães adultas, o que lhes permites um reconhecimento social face à família e ao exterior. Do mesmo modo, o trabalho desenvolvido pelas instituições de apoio ao prolongamento dos estudos e à inserção profissional as ajuda, já que se transformam em capitais escolares e profissionais que, no contexto social familiar desfavorecido, as moças dificilmente adquiririam. São estas ajudas simbólicas que se transformam em capitais sociais e pessoais que, sem a maternidade na adolescência, no caso das adolescentes oriundas de contextos familiares desfavorecidos, elas não conseguiriam obter.
Como se dá o trabalho das instituições junto a essas jovens?
Nas instituições elas têm que demonstrar que são capazes de cumprir suas funções como mães, a exemplo de saber identificar o choro das crianças e alimentá-las. Em Portugal, elas moram nas instituições e vão para casa nos finais de semana. O que acontece é que as mães adolescentes que moram com pais que trabalham fora, muitas vezes, têm que abandonar os estudos para cuidar das crianças, enquanto as que estão em instituições acabam por ter apoios sociais. As instituições têm parcerias e contatos que permitem que essas jovens mantenham seu percurso escolar.
O contexto francês é mais normativo. A jovem entra para uma dessas instituições e tem que assinar uma espécie de contrato, o qual estabelece que ela permaneça por no máximo três anos e o que ela tem que fazer ao longo desse período. Nos primeiros seis meses ela vai aprender a criar um laço afetivo com a criança, depois integrar um curso de formação profissional e por último conseguir um emprego. A desvantagem das instituições é que estas vão padronizar o que se espera de uma mãe e de uma função parental, e essas jovens têm que priorizar o seu papel de mãe em detrimento do de adolescente. Normalmente as jovens que estão nas instituições são, de alguma forma, obrigadas a serem primeiramente mães para depois serem adolescentes. É em função destas diferentes dimensões que chegamos à tipologia de mães na adolescência que se dividem em “mães-adolescentes”, “adolescentes-mães” e “mães-amigas”.
E quais as diferenças entre essas tipologias?
As “adolescentes mães” são as mães mais jovens, entre os 13 e os 14 anos, que vivem na casa dos pais e quem vai assumir o exercício da parentalidade será a avó. Em certos contextos, já não existe a relação afetiva com o pai da criança, já que a gravidez foi resultado da primeira relação sexual. O que acontece é que, na maioria dos casos, a gravidez foi descoberta aos seis meses, quando já não era possível fazer mais nada. A maior parte das adolescentes mães freqüenta somente o sistema escolar. Já as “mães adolescentes” são jovens que, na grande maioria dos casos, estão institucionalizadas e que muitas vezes têm uma relação afetiva com o pai da criança e este exerce a parentalidade ou pelo menos está presente. Em alguns casos, estas já trabalham, ou seja, acumulam outras dimensões da idade adulta – trabalham e vivem em outro domicílio com o pai da criança, portanto há uma separação da família de origem. Elas, no entanto, continuam sendo adolescentes pelo olhar social que os outros têm sobre elas porque foram mães entre os 15 e os 19 anos e são vistas como jovens. Quem aponta essa dimensão de identidade é a sociedade em si.
As “mães-amigas” cuidam da criança não com o intuito parental, de pensar em estratégias educativas, mas sim transformam a relação com a criança em uma relação de igual para igual e/ou atribuiem vários papeis como um (a) irmão (ã), marido, amigo (a), ou seja, constroem outra relação mãe filho/filha difernte daquela esperada socialmente. As “adolescentes-mães” não têm o sentimento de responsabilidade em relação à criança e sentem que o cuidar da criança é uma obrigação imposta pelo exterior. Elas não têm ainda um sentimento materno interiorizado. Essas são jovens adolescentes mães que quando chegam aos 23 ou 24 anos, devido à proximidade de idade com a da criança, elas a transformaram na amiga ou amigo que elas não têm. Não há definição de papéis de mãe e filho, ou de responsabilidade. Esta tipologia não é estanque e uma “adolescente-mãe” pode transformar-se numa “mãe-amiga”, ou uma mãe-amiga após um trabalho de acompanhamento isntitucional pode passar a ser uma “mãe-adolescente”, assim como as “adolescentes-mães” acolhidas em instituições podem passar por processos de transição para “mães-adolescentes”, já que as instituições ogrigam a hierarquizar a identidade materna à frente da identidade de adolescente.
Qual o papel do pai da criança nos dois contextos?
Nas instituições francesas, as jovens podem receber com regularidade a visita do pai da criança, quando existe um elo de ligação. Quando não existe, há um trabalho do psicólogo da instituição e de educadores especializados junto ao pai da criança que permite, de alguma forma, tentar reatar os laços de paternidade, para que o pai exerça sua função parental – mais do que paterna – mesmo não reatando os laços afetivos com as jovens mães. A média de idade em que as jovens entram na sexualidade na França e em Portugal é de 17 anos. A diferença entre os dois países é que, na França, as moças são extremamente informadas sobre contracepção, há uma cultura institucional de promoção da pílula. As mães das moças explicam como se usa o método quando estas relatam sua primeira experiência sexual. Em Portugal isso não acontece. Enquanto a sexualidade na França é autorizada e legitimada pelos adultos e por toda a sociedade, em Portugal sabe-se que a contracepção existe, mas os adultos tentam fazer de conta que não vêem. Isto acontece até mesmo entre profissionais de saúde.
Quais foram as principais conclusões?
Eu não quis defender o que é bom ou ruim, e sim perceber como as jovens vivenciavam a experiência de ser mãe. Para algumas jovens existe um sentimento de perda da sua adolescência, uma vez que o surgimento da maternidade obriga-as a optar pelo papel de mãe, ou a família ou sociedade encarrega-se de fazê-lo. Algumas diziam que ser jovem para elas não significava mais nada, porque ser jovem é ir ao cinema e sair com as amigas. Como a maioria das jovens que entrevistei eram descendentes de culturas mais tradicionalistas, como a muçulmana, percebi também que estas se deparam com dois modelos face ao papel da mulher: o primeiro, um papel tradicional, em que a mulher é relegada a papéis de mãe e esposa; e outro de uma mulher emancipada, que pode gerir seu próprio corpo, que trabalha e tem acesso a métodos contraceptivos, principalmente no contexto francês. Algumas das jovens francesas já tinham passado por abortos e conheciam a pílula do dia seguinte.