CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O exemplo da Espanha

Há pouco mais de um ano, o sociólogo Luiz Mello lançava o livro Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo(CLAM/Editora Garamond, 2005). Nas palavras do autor, o título faz referência aos “casais que desafiam a norma heterocêntrica e não fazem da diferença sexual um pré-requisito para a constituição de laços conjugais”. Na ocasião do lançamento da obra, Mello afirmou ser difícil pensar na aprovação de um projeto de lei como o da Parceria Civil Registrada (PCR), que tramita no Congresso há anos, sem o apoio explícito do poder executivo.  


Passado o período eleitoral e a reeleição do presidente Luis Inácio Lula da Silva, Mello ainda acha cedo para uma avaliação objetiva sobre como o poder executivo federal se posicionará em relação aos direitos conjugais e parentais de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil. Ele lembra que, nas eleições de 2006, o Programa de Governo para Gays, Lésbicas e Transgêneros do presidente reeleito prevê que os órgãos da administração pública e as empresas estatais reconheçam as relações estáveis de seus servidores homossexuais. Outra proposta de governo, segundo o Programa, é o projeto de lei de união civil entre pessoas do mesmo sexo.


O sociólogo espera que Lula apóie o projeto de lei que tipifica a discriminação e o preconceito por orientação sexual e identidade de gênero como crimes.


Professor de sociologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, atualmente Mello desenvolve a pesquisa “Novas famílias e uniões homossexuais: um estudo comparativo Espanha, Portugal e Brasil”, como estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madrid (UCM) e no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa (ISCTE), em Lisboa. Nesta entrevista, o pesquisador fala das expectativas em torno do debate sobre os temas da conjugalidade homossexual e da homoparentalidade frente à nova constituição do Congresso Nacional pós-eleições, e analisa a homofobia e os obstáculos ao reconhecimento social e jurídico das uniões homossexuais e do direito à parentalidade no Brasil.  


Quais as expectativas em torno do debate sobre conjugalidade homossexual no segundo mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva? O sr. acredita em progressos, na esfera federal, em relação ao projeto de parceria civil registrada de casais homossexuais nesse novo governo? 


Parece-me ainda cedo para qualquer avaliação mais objetiva sobre como o Poder Executivo Federal se posicionará em relação aos direitos conjugais e parentais de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil.  Cabe destacar, porém e desde já, que o Programa para Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros do governo Lula, apresentado para as eleições de 2006, traz explicitamente duas propostas que contemplam este debate: assegurar que os órgãos da administração pública e as empresas estatais reconheçam as relações estáveis de seus servidores homossexuais, seguindo o exemplo do Banco do Brasil, Radiobras, Ministério do Desenvolvimento Agrário e outros; e aprovar a união civil entre pessoas do mesmo sexo, estendendo aos casais homossexuais os mesmos direitos que os casais heterossexuais possuem, inclusive o reconhecimento e proteção de suas famílias, garantindo o direito à adoção. Mas precisamos aguardar para ver como de fato o governo federal se posicionará sobre esses temas.


Em verdade, porém, penso que seria a hora do presidente Lula encaminhar ao Congresso Nacional uma proposição legislativa que altere a definição de casamento vigente no Brasil, rompendo com o heterocentrismo hoje prevalecente no âmbito dos direitos conjugais e parentais. Afinal, já são cinco os países onde há uma igualdade legal plena entre casais homo e heterossexuais. Leis que autorizam o casamento entre pessoas do mesmo sexo foram aprovadas na Holanda, Bélgica, Espanha, Canadá e África do Sul. Isto nos leva a pensar em que medida a aprovação de um projeto de lei como o da deputada Marta Suplicy (PL 1151, de 1995), que dispõe sobre a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e ao qual se refere o Programa do Governo Lula 2006, por mais avançado que ainda seja em face do vazio legal existente, não reafirmaria uma explícita inferioridade dos cidadãos gays, lésbicas e transgêneros, já que implicaria a existência de estatutos jurídicos diferenciados entre casamentos para pessoas heterossexuais e parcerias civis entre pessoas do mesmo sexo.  


Neste sentido, portanto, minha expectativa é de que o presidente Lula, que contará neste seu segundo mandato com uma maioria mais confortável no Congresso Nacional, assuma as demandas do movimento GLBT como uma prioridade de seu governo, como fez o primeiro-ministro Zapatero na Espanha.  


Apesar desse atraso na esfera política, o sr. diria que estamos vivendo em uma sociedade mais aberta?


Sem dúvida, creio que sim, particularmente quando pensamos que o debate sobre estas questões era praticamente inexistente no Brasil, há pouco mais de dez anos. Hoje, já existe um conjunto de conquistas claramente consolidado em vários lugares do mundo e a discussão sobre os direitos parentais e conjugais de gays, lésbicas e transgêneros integra a agenda política de praticamente todos os países onde a homossexualidade e a transexualidade não são tipificadas como crimes. Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, por exemplo, os candidatos Lula, Geraldo Alckimin, Heloísa Helena e Cristóvam Buarque se posicionaram claramente a favor do reconhecimento de direitos civis decorrentes de uniões homossexuais. Por outro lado, ao longo de 2006, três decisões judiciais, em diferentes estados do país (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo) permitiram a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, sendo a mais recente relativa a um casal de homens que vive em Catanduva, interior de São Paulo, que adotou uma menina de cinco anos, produzindo uma ampla e receptiva cobertura da mídia impressa e televisiva. Não é demais lembrar que, há alguns anos, os casos de adoção relativos a gays e lésbicas solteiras ainda eram vistos com grande resistência social. Não me parece apressado dizer, portanto, que a sociedade brasileira está mais aberta ao universo das práticas familiares, amorosas e sexuais fora da norma heterocêntrica.  


Também já existe um conjunto crescente de pesquisas e investigações acadêmicas que procuram compreender os processos de transformação social das formas de organização familiar que não se restringem ao casal homem-mulher e filhos. Tais estudos mostram que uma visão naturalista e essencializante da família não consegue mais representar as múltiplas maneiras como as pessoas organizam suas redes de apoio e solidariedade familiar. Como ilustração do surgimento e desenvolvimento deste campo de investigação, há o trabalho da Rede de Pesquisadores sobre Parceria Civil, Conjugalidades e Parentalidades, a qual coordeno junto com as professoras Miriam Grossi (UFSC) e Anna Paula Uziel (UERJ).

 


Por outro lado, a aprovação desse tipo de lei proporciona desconforto e incômodo a um outro conjunto da população. Como lutar contra a homofobia? 


A homofobia é um problema social e político dos mais graves, mas que varia de intensidade e freqüência, de sociedade para sociedade, e no interior de cada uma delas. É interessante observar como essa noção ganhou o domínio público, no ativismo, na academia e também na mídia, ainda que seja pouco precisa para descrever o largo espectro de fenômenos aos quais se refere. Afinal, fobias são distúrbios psiquiátricos que se expressam na forma de aversão e medo mórbido, irracional, desproporcional, persistente e repugnante, que pode e deve ser tratado. Em casos mais graves, deve-se utilizar recursos terapêuticos e farmacológicos, com resultados bem promissores. 


Mas homofobia tem sido um conceito guarda-chuva, utilizado para descrever um variado leque de fenômenos sociais relacionados ao preconceito, à discriminação e à violência contra homossexuais. Não restam dúvidas de que existe homofobia, inclusive internalizada em muitos gays e lésbicas, o que os leva a negar obsessivamente os desejos sexuais que sentem por meio do ataque e da agressão direcionada à homossexualidade alheia, mas na maior parte das vezes os fenômenos da intolerância, do preconceito e da discriminação em relação a gays, lésbicas (lesbofobia) e transgêneros (transfobia) devem ser tratados não com terapia e antidepressivos, como no caso das demais fobias, mas sim com a punição legal e a educação. Neste sentido, é fundamental que o Senado Federal aprove, com a maior brevidade possível, o Projeto de Lei nº 5003, que prevê a punição para a discriminação e o preconceito relacionados à orientação sexual e à identidade de gênero, nos mesmos termos do que já se faz em relação ao racismo. Isso significa dizer que tipificar a homofobia como crime similar ao racismo é um passo decisivo para diminuir a violência homofóbica.


É prioritário também que se amplie e aprofunde as ações de combate ao preconceito, à discriminação e à violência a partir da agenda de ações educativas que já integram o programa governamental “Brasil sem Homofobia”. É imprescindível que os governos federal, estadual e municipal promovam campanhas educativas com vistas a construir uma cultura de respeito à diversidade sexual, divulgando informações e conhecimentos que desconstruam preconceitos fundados na ignorância e na intolerância. Claro que esse é um trabalho que deve estar associado ao combate ao machismo, à misoginia e a todas as formas de violência de gênero, voltado especialmente para jovens rapazes e homens adultos, que seguramente são os principais protagonistas da violência homofóbica e de gênero. <P> Enquanto meninos e rapazes forem estimulados por seus pais, pela escola, pelas igrejas e pelos meios de comunicação de massa a considerarem homossexuais e transgêneros seres humanos inferiores e cidadãos de segunda categoria, uma lei que puna a homofobia, por si só, não será capaz de deter a violência social contra gays, lésbicas e transgêneros.  


Os obstáculos ao reconhecimento social e jurídico das uniões homossexuais e do direito à parentalidade no Brasil continuam os mesmos?


Acredito que alguns sinais de mudança já podem ser identificados. A começar pela consolidação de um conjunto jurisprudencial que mais e mais aponta na direção do reconhecimento legal dos direitos conjugais e parentais de gays, lésbicas e transgêneros. Ou seja, na ausência da lei, o Poder Judiciário tem sido chamado a se manifestar sobre os casos concretos envolvendo demandas por herança, pensão, inclusão de companheiro como dependente em planos de saúde, direito de imigração, adoção, mudança de nome, consolidando um conjunto crescente de decisões que reconhecem a dimensão familiar dos vínculos entre pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos, biológicos ou adotados.   


Da mesma forma, o movimento GLBT está cada vez mais organizado e articulado no Brasil, com quase duzentos grupos existentes, conseguindo ampliar sistematicamente o número de manifestações públicas contra o preconceito e a discriminação. Seguindo o exemplo dos movimentos feminista e de mulheres, os integrantes das ONGs GLBT também estão cada vez mais conscientes da importância de um trabalho de advocacy junto aos parlamentares com vistas à aprovação de proposições legislativas. Cabe aos representantes da sociedade civil organizada o trabalho brutal de convencimento individual de 513 deputados e 81 senadores, o que sem dúvida demanda uma capacidade de articulação hercúlea.

 


Há um ano o sr. observava que na Câmara dos Deputados e na sociedade brasileira se conjugam duas tendências: uma da intolerância e da exclusão, associada aos defensores da não aprovação da PCR, e outra da liberdade e da ampliação dos direitos de cidadania, expressa por aqueles que defendem a legitimidade da conjugalidade homossexual. O sr. acredita que essa divisão se acentuará no novo Congresso eleito?  


A partir de 2007 teremos um novo conjunto de deputados federais e senadores atuando no Congresso Nacional e só então será possível saber como esse diálogo em torno do reconhecimento da cidadania de homossexuais e transgêneros ocorrerá. De imediato, porém, deve ser comemorada a diminuição significativa do número de parlamentares ligados ao grupo homofóbico fundamentalista conhecido como “bancada evangélica”, já que muitos não se reelegeram ou não se candidataram, por estarem envolvidos em escândalos de corrupção. Por outro lado, integrantes importantes da Frente Parlamentar pela Livre Expressão Sexual, , também não se reelegeram, como os Deputados Laura Carneiro, Luciano Zica, Iara Bernardi e Jandira Feghali, aliados históricos do movimento GLBT.   


De qualquer forma, esta será a primeira legislatura que se iniciará com a Câmara dos Deputados tendo aprovado dois projetos de lei em defesa dos direitos de gays, lésbicas e transgêneros. Não resta dúvida de que é um bom ponto de partida. Mas 2007 também será o ano em que o Papa Bento XVI visitará o Brasil e seguramente sua presença significará um esforço a mais na luta contra a crescente laicização do Estado brasileiro. Resta saber até quando os discursos da intolerância e da exclusão continuarão a prevalecer no Congresso Nacional, deliberadamente negando a gays, lésbicas e transgêneros o reconhecimento legal do direito de decidir sobre o lugar do amor e da sexualidade em suas vidas, livres de constrangimentos e coerções de qualquer ordem.