CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O que nos une

Autor de várias pesquisas que enfocam experiências de gays, lésbicas, travestis e trangêneros – especialmente as dinâmicas de discriminação e violência contra essa população (veja a pesquisa Política, Direitos, Violência e Homossexualidade) – o antropólogo Sérgio Carrara (CLAM/IMS/UERJ) acredita que a I Conferência Nacional LGBT, realizada em Brasília na semana passada, inaugura uma terceira fase na história do movimento no Brasil, trinta anos depois da criação do primeiro grupo ativista – o SOMOS, em São Paulo.

“São trinta anos do movimento LGBT – que nasceu movimento homossexual brasileiro e depois foi sendo realinhado na medida em que as diferentes identidades iam se constituindo no plano político e se diferenciando, fazendo com que a homossexualidade se transformasse em diversidade sexual e de gênero. Então, a Conferência estaria inaugurando uma terceira fase da história da diversidade sexual e de gênero em nosso país. Esta é uma fase mais aberta e mais inclusiva, na qual se dispõem grupos com experiências muito diferentes”, avalia Carrara, que participou da Conferência como observador.

Para ele, a presença do presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, neste evento, marca o reconhecimento pelo Estado brasileiro das questões do movimento LGBT como questões de governo. “Questões estas que já vinham sendo reconhecidas em cada política setorial”, observa o pesquisador. Na entrevista a seguir, o antropólogo analisa a Conferência, que foi convocada pelo Estado para discutir políticas públicas específicas para a população LGBT – iniciativa até então inédita no mundo – e faz uma reflexão em torno da crescente segmentação identitária do movimento. “A divisão enfraquece politicamente. O caminho da segmentação é perigoso porque corre-se o risco de perder de vista que a natureza da estigmatização, do preconceito e da discriminação é a mesma, embora se module diferentemente para cada indivíduo, para cada grupo. Devido à transgressão das convenções de gênero – incluindo-se aqui transgressões corporais e de sexualidade-, todos se encontram numa mesma situação de exclusão e têm que enfrentar um momento em que a discriminação é colocada”.

Por quê, em sua análise, a Conferência inaugura uma terceira fase do movimento LGBT brasileiro?

Uma das razões é que a Conferência coloca o movimento em uma outra dinâmica, em diálogo mais direto com suas “bases”. As decisões foram tomadas em conjunto por pessoas que se identificam como gays, lésbicas, travestis e transexuais ou que trabalham com essa questão, seja no Estado, seja na sociedade civil, e não apenas pelos ativistas. É uma diretriz negociada entre o movimento e uma base social muito mais ampla.

Qual a sua análise em relação às propostas que foram apresentadas?

O que estava se discutindo eram dois modelos de inclusão social ou de justiça social para a sociedade brasileira. De um lado, o modelo que podemos chamar de “separados, mas iguais”, onde todos têm o mesmo direito mas cada um em seu espaço separado. Esta lógica estava presente, por exemplo, nas propostas da criação das delegacias LGBT, do Estatuto LGBT , de uma Vara Criminal LGBT ou de serviços médicos especializados direcionados a esta população. Havia um outro horizonte de inclusão que eu chamaria de “iguais e misturados”. Esta posição vai enfatizar a necessidade se capacitar diferentes profissionais e instituições para lidar com a população LGBT e não criar serviços e espaços especiais para ela. O confronto entre esses dois modelos estava subjacente o tempo todo. Interessante porque esta tensão também estava presente no início do movimento, quando se pensava que os então chamados homossexuais teriam uma natureza distinta dos heterossexuais. É curioso como essa discussão lá do início do movimento reaparece agora numa proposta mais política de como a sociedade se organiza em relação a essa população.

Um outro ponto que deve ser discutido é o modo como as próprias identidades foram disputando espaço e visibilidade dentro da conferência, como na decisão sobre a mudança na posição das letras na sigla do movimento, que vai afetar serviços e políticas que de agora em diante, após decisão tomada na Conferência, terão que se auto-designar como LGBT.

Isto acabou abrindo brechas para outras coisas, como o uso de palavras como lesbofobia e transfobia, e não apenas homofobia, como se tem usado. Este tipo de mudança não acaba por fragmentar muito o movimento?

Esta discussão tem que ser feita pelo movimento e pela comunidade primeiramente para verificar se a natureza da violência que atinge os LGBTs é da natureza da “fobia”. Existe um conjunto razoável de autores que vão criticar a idéia de “fobia” nesse contexto, uma vez que geralmente esta faz com que o fóbico fuja da fonte da fobia e não reaja violentamente a ela. Então fobia não é uma palavra muito precisa, além de patologizar e individualizar uma posição preconceituosa.

E qual seria uma palavra ou expressão mais precisa?

Uma expressão que me parece mais interessante é “discriminação e violência por preconceito de gênero e orientação sexual”. A única questão é que esta expressão é menos sintética do que homofobia, lesbofobia ou transfobia, mas seria muito mais abrangente, e muito mais apropriada à natureza deste tipo de atitude.

E qual a inquietação em relação à palavra homofobia?

Do ponto de vista do movimento, ela se remete à homossexualidade, que, se antes era mais abrangente, cada vez mais se restringe aos homens gays. Então, dentro da lógica da segmentação identitária, há um certo desconforto em relação a essa expressão. Nessa questão temos que discutir não só a idéia de fobia, mas se vale a pena ficar picotando essa violência e discriminação. Esta é outra tensão presente na Conferência e que vale a pena avaliar: segmenta-se, mas qual o solo comum que esses diversos grupos compartilham?

Há um solo comum?

Sim, porque há uma discriminação de todas as pessoas que de algum modo não se conformam às convenções de gênero e de sexualidade. Se é que é possível separar gênero de sexualidade muito facilmente. Há um campo comum, mas a dinâmica política leva à segmentação. É claro que este é um caminho perigoso, porque, embora haja especificidades em relação à discriminação e à violência – as mulheres lésbicas sofrem um tipo de violência que se modula de um modo diferente da que atinge os gays – a natureza profunda dessa violência não é diferente. Se o processo de segmentação continuar como vem acontecendo daqui a algum tempo não teremos mais uma conferência LGBT, e sim uma L, uma T e uma G.

Essa segmentação identitária também não seria prejudicial à própria agenda política do movimento e às conquistas políticas que o movimento deseja alcançar?

A divisão enfraquece politicamente. Além disso, corre-se o risco de perder de vista que a natureza da estigmatização, do preconceito e da discriminação é a mesma, embora se module diferentemente para cada indivíduo, para cada grupo. A experiência de uma travesti é diferente da experiência vivida por uma lésbica. Porém, devido a uma transgressão ao que é socialmente atribuído, todos se encontram numa mesma situação de exclusão e têm que enfrentar um momento em que a discriminação é colocada.

O movimento tem isso em mente?

Não sei até que ponto o movimento está discutindo essas questões a fundo neste momento, mas ele tem que lidar com um certo impasse entre reconhecer as diferenças e explicitar o que os une. As duas coisas têm que caminhar junto. Mesmo que se reconheçam as diferenças e as especificidades, não se pode perder de vista a questão que tem unificado este movimento. Muita gente se refere ao movimento como uma sopa de letrinhas. Acho que temos que pensar qual é o caldo dessa sopa, o que conecta essas letras. Se não é mais a grande categoria da homossexualidade e a teoria da inversão sexual, é uma experiência de não conformidade com as regras de gênero e de sexualidade. E é essa experiência em comum que vai gerar a discriminação e a violência, que se modula de forma diferente para cada uma dessas “letrinhas”. Então, isto tem que ser pensado de forma estratégica: se vamos recortar essa violência e dar diferentes nomes para ela, ou se vamos construir uma expressão que seja suficientemente abrangente para tê-las todas contempladas. Não se pode construir uma expressão que negue a especificidade nem cair num especifismo tão estrito que as pessoas percam de vista o que as une. Pode-se desenvolver o argumento de que exista uma “intersexofobia” ou uma “bifobia”, por exemplo, que não foram nem contempladas pela Conferência. O problema da especificação é esse. Parece não ter fim, está sempre deixando alguém de fora. O drama é reconhecer especificidades sem perder de vista o que é comum.

O sr. acha que nesse terceiro momento o movimento está mais maduro? Ficou claro na Conferência isso?

Eu acho que sim! Acho que há um amadurecimento do movimento, não há dúvidas. Manter esse diálogo com o Estado do modo como foi mantido, no curto tempo para preparação das propostas – essa Conferência foi aprovada em novembro do ano passado. Conseguir organizar isso nesse tempo é um sinal de amadurecimento, mas ao mesmo tempo eu acho que essa Conferência abre um conjunto de outros desafios para o movimento.

Tais como…

Por exemplo, o modo como o movimento vai se relacionar com as suas bases, que emergem nessa Conferência. Eu acho que há toda uma questão de linguagem a ser tratada. Não é a toa que a Conferência escolheu abrir com uma discussão sobre o que é orientação sexual e identidade de gênero. A existência desse primeiro painel na Plenária aponta para uma característica do próprio movimento e da questão LGBT. Ou seja, que as identidades não são tão claramente recortadas como se pode pensar quando se olha apenas para o plano político, onde os diversos grupos se colocam em embates. Se essas coisas fossem tão claras, não precisaria ter havido esse painel. Se esse painel existiu é por que essas identidades têm fronteiras muito fluídas. Eu acho que reconhecer a fluidez das categorias, das identidades, não significa negar que elas sejam fundamentais para a organização política. Eu acho que seria muito difícil organizar um movimento que não fosse identitário no país. As identidades são importantes por que elas mobilizam as pessoas, inclusive emocionalmente, elas são cruciais para a organização política. Agora, ao mesmo tempo, não se pode tomá-las como algo essencial, como algo que vá muito além de uma estratégia política, de um artefato político. Então, aquele primeiro painel não deixava de ter uma função “civilizatória” nesse diálogo que a Conferência inaugura de fato de uma maneira sistemática, pelo menos entre as lideranças do movimento e a população LGBT que não é militante no País.

Como avalia a proposta da criação de um Estatuto para essa população?

Eu não analisei profundamente a questão do estatuto, mas esta me parece uma proposta muito mais adequada ao modelo de sociedade “iguais, mas separados”.

Como a idéia das delegacias?

Como a idéia das delegacias! Isso é uma questão. Outra coisa que o estatuto coloca é a questão da tutela. Os estatutos que nós temos geralmente dizem respeito muito diretamente a populações tuteladas pelo Estado, como o estatuto do índio, da criança e do adolescente, do idoso. São populações que claramente, em algum plano, necessitam da tutela do Estado.

E a população LGBT não?

A população LGBT necessita do respeito do Estado, necessita de uma política anti-discriminatória bem feita.