CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O valor da liberdade

O antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), não compreende religião e sexualidade como dois domínios opostos. Para ele, todo sistema religioso deve definir um ethos privado, o qual engloba a vida afetiva, conjugal, reprodutiva e erótica dos sujeitos. Em coletânea recém lançada, Sexualidade, Família e Ethos Religioso (CLAM / Editora Garamond), da qual é um dos organizadores, ele analisa a constituição desse ethos privado na sociedade brasileira contemporânea e sua relação com o pertencimento ou adesão a religiões.

“A vida religiosa nas sociedades liberais é marcada pelo signo da liberdade de culto e consciência. Os cidadãos podem, portanto, não só aderir ou pertencer ao culto que escolherem, como obedecer ou não a seus preceitos”, afirma ele. Segundo o antropólogo, certos valores como o da ‘liberdade individual’ e o da conformidade às ‘regras da natureza’ têm um valor sagrado acima das próprias regras religiosas. Assim, para ele, escolhas contraceptivas e/ou reprodutivas e o exercício da homossexualidade não implicam necessariamente uma decisão de afastamento da instituição religiosa da qual o sujeito é adepto. Nesta entrevista ele fala da relação entre ethos religioso e ethos privado, de como compreende a “religião” e de seu “gerenciamento” e sua “adequação” em relação à sexualidade.

Historicamente, religião e sexualidade se constituem como domínios dicotômicos. Como o sr. vê essa questão na atualidade?

É apenas do ponto de vista da modernidade ocidental que essa oposição é constituída enquanto tal. Na verdade, todo sistema religioso deve definir um ethos privado, que engloba a vida afetiva, conjugal, reprodutiva e erótica dos sujeitos. O modelo de pessoa humana livre e natural que está na base de nossa ideologia moderna é que erige a ‘sexualidade’ como índice dessa condição e atribui às regulações religiosas, portanto, um estatuto repressivo. Essa não é, porém, apenas uma ilusão cultural, é uma crença institutiva, que tem que ser levada a sério, tanto quanto qualquer outra. Isso inclui o fato que as religiões contemporâneas, que se confrontam com o ethos laico, liberal, modernizante, usam suas regulações específicas da sexualidade como um fator diacrítico importante na construção do seu perfil ideológico, de sua adequação a uma certa fração da demanda. Para muitos sujeitos de nossas sociedades, a sexualidade continua sendo pensada dentro dos marcos de uma moralidade abrangente e não como dimensão da liberdade e autenticidade individuais.

Muitas pessoas religiosas adotam comportamentos em relação à sexualidade que contrariam normas e preceitos defendidos no âmbito das doutrinas e religiões que aderem, como por exemplo, o exercício da homossexualidade ou práticas abortivas. Como o sr. vê isso?

A vida religiosa nas sociedades liberais é marcada pelo signo da liberdade de culto e consciência. Os cidadãos podem, portanto, não só aderir ou pertencer ao culto que escolherem, como obedecer ou não a seus preceitos. O máximo que podem fazer as comunidades religiosas é controlar a continuidade ou não do pertencimento congregacional de seus fiéis. Como nem todas as religiões se organizam de modo congregacional (com o conseqüente controle estrito do comportamento dos fiéis), uma ampla margem de adesão não obediente pode prevalecer. Além do mais, há certos valores em nossa cultura contemporânea, como o da ‘liberdade individual’ e o da conformidade às ‘regras da natureza’, que parecem deter um valor sagrado acima das próprias regras religiosas – autorizando, portanto, interpretações, afastamentos e conversões coerentes com esses valores (e contraditórias com os que são defendidos pelas religiões).

Poderíamos dizer que a religião estaria perdendo sua capacidade de gerenciamento da sexualidade de seus seguidores?

A religião perdeu oficialmente a capacidade de gerir a vida terrena desde o início da modernidade, com a instauração de uma ordem pública laica. A permanência de uma obediência aos preceitos religiosos no tocante ao ethos privado sempre foi vista como um resíduo incômodo de ‘tradicionalismo’, mesmo que fosse majoritária na maior parte das sociedades ocidentais. O que se vê hoje é na verdade um crescente retorno da legitimidade dos controles religiosos da sexualidade (e de toda a vida privada). Por outro lado, muitas religiões incorporaram diferentes aspectos dos valores modernos, tornando menos nítidas as fronteiras entre a lógica de uma liberdade laica e a lógica de uma religiosidade repressiva. Nas grandes organizações religiosas, como a Igreja Católica, a mera existência de tensões internas a esse respeito aponta também para uma certa relatividade dos preceitos. No mercado aberto contemporâneo dos sistemas religiosos, assim, cada oferta confessional constrói uma síntese específica entre convenções conservadoras e convenções ‘liberais’, a apelar para as mil nuances das sensibilidades efetivas em jogo.

De que forma isso se dá para diferentes religiões e segmentos sociais?

O gerenciamento mais ou menos estrito da sexualidade tem significados muitos diferentes entre as classes sociais. Para as classes médias e as elites, trata-se de uma questão muito mais privada, tanto mais indiferente para a avaliação e o desempenho de seus papéis de status quanto mais altamente situado estiver o sujeito. Para as classes populares, trata-se de uma questão privada certamente, mas com implicações coletivas fundamentais. A reprodução social depende muito diretamente de avaliações e desempenhos relacionados com a moralidade e a sexualidade. A constituição de novas famílias, a produção de filhos e o sucesso na sua criação, a gestão das relações de vizinhança, o desempenho mesmo da maior parte das tarefas e funções econômicas que lhes estão disponíveis – tudo isso depende diretamente do modo como os sujeitos gerenciam os planos afetivo, conjugal, reprodutivo e erótico. E da maior ou menor coerência com que o fazem e o adequam a seus recursos e instrumentos sociais. Isso certamente está na raiz do sucesso atual, nesse meio social, de muitas mensagens religiosas centradas num controle mais rígido do ethos privado. Mas já estava presente mesmo no contexto das religiosidades tradicionais. Nos segmentos superiores, a questão da sexualidade em si tende a ser substituída pela questão da ‘autenticidade’ ou da ‘criatividade’ pessoal. Isso explica em parte a emergência e popularidade nesses meios do horizonte Nova Era e sua eclética panóplia de recursos de observação e cultivo interior.

Por outro lado, a religião não perdeu seu lugar na sociedade contemporânea. Sociologicamente se observa o crescimento de um mercado religioso. Como o sr. analisa o fenômeno?

Se compreendemos como ‘religião’ não as organizações eclesiais concretas em que se manifesta esse fenômeno no Ocidente, mas toda visão de mundo abrangente e estruturante, podemos afirmar que a experiência humana é inseparável de uma dimensão ‘religiosa’. Isso é válido inclusive para as sociedades modernas laicas, onde o valor do indivíduo livre e igual pode ser considerado tão religioso quanto qualquer outro. Por outro lado, o que se entende normalmente por ‘religiões’, ou seja, as organizações eclesiais, não cessaram de aumentar em número desde a ruptura da unidade do cristianismo católico, com a Reforma. E não apenas em número, mas em filiação, apesar dos avanços concomitantes da laicização das sociedades e da desmagicização da relação com a natureza. Isso é coerente com a hegemonia do valor da liberdade, por um lado, e com a continuada necessidade de um cultivo mais ou menos congregacional (ou seja, compartilhado) de alguma visão de mundo abrangente e estruturante. Mas o fenômeno se dá de forma muito diferente nas diversas culturas nacionais. Os EUA, por exemplo, são um caso singular, onde uma intensíssima modernização sempre conviveu (e mesmo se nutriu) de um intenso e generalizado pertencimento religioso, que tem algumas de suas formas hoje inclusive exportadas para o Brasil.

Muitos são os “tratamentos” e recursos / ritos que conciliam religião e certos métodos psicoterapêuticos. Cura espiritual, libertação, cura interior são algumas categorias que povoam o religioso (cristão e Nova Era) e o aproximam do universo da auto-ajuda?

Um dos traços fundamentais das transformações ideológicas da modernidade ocidental é o de sua crescente ênfase neste mundo, em detrimento de uma salvação extra-terrena, pós-morte. Uma das fórmulas disponíveis para descrever esse processo é a de opor o tradicional ‘dolorismo’ cristão ao hedonismo contemporâneo, presente na maior parte das religiosidades contemporâneas. Uma outra fórmula é se referir às religiosidades modernas como sendo ‘terapêuticas’, ou seja, ocupadas fundamentalmente com a ‘saúde’ físico-moral de seus fiéis. Há também interpretações, oriundas da psicanálise, que preferem qualificar como ‘narcisista’ esta tendência generalizada moderna. A ênfase no bem-estar terreno é inseparável de um crescente subjetivismo ou individualismo da experiência e da trajetória religiosa (apesar da continuada importância da família nesse contexto). A chamada ‘teologia da prosperidade’ é uma das manifestações mais agudas desse fenômeno; mas toda a Nova Era dele participa igualmente. A ‘psicologização’ presente na literatura de auto-ajuda e nas experiências Nova Era revela um verdadeiro amálgama contemporâneo entre os saberes psicológicos e as experiências religiosas ou místicas. Um outro aspecto fascinante desse horizonte é o da ‘espiritualidade’ que vem cercando a experiência das próprias práticas médicas, mesmo as mais desencantadas e tecnologizadas.



Leia a resenha do livro Sexualidade, Família e Ethos Religioso assinada por Mirian Goldenberg.