CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Obrigação do governo

A primeira vez que uma união de duas pessoas do mesmo sexo foi reconhecida legalmente aconteceu em 1979, na Holanda. Autor do livro “Sexual Orientation and Human Rights”, considerado referência teórica na área da orientação sexual, o advogado Robert Wintemute acredita que muita coisa mudou desde então, e um número significativo de leis tem passado pelos diversos congressos dos Estados que compõem a União Européia – do total de 27 países, 14 têm leis que contemplam a questão. Em 1989, dez anos depois da legislação holandesa, foi a vez da Dinamarca aprovar uma lei que permitia aos casais homossexuais registrarem suas uniões. Em 1999, o governo holandês propôs outra lei que dava direito às pessoas LGBT ao casamento. A lei foi aprovada em 2001.

Professor de Direitos Humanos na Escola de Direito do King’s College London, Wintemute revela que na Europa, o reconhecimento legal de uniões homossexuais é visto como uma obrigação do governo atualmente. “Mais da metade dos países que compõem a União Européia têm leis que asseguram o direito à união civil registrada, e que contemplam outros direitos, como a adoção de crianças por esses casais. Até o momento, apenas quatro países permitem que duas pessoas do mesmo sexo se casem – Holanda, Bélgica, Espanha e Noruega. Até o ano que vem, a Suécia deve entrar neste time”, afirma Wintemute.

No Brasil, embora tais uniões tenham deixado de ser a bandeira número um do movimento LGBT, para dar lugar à criminalização da homofobia, o assunto volta e meia ocupa as páginas dos principais jornais e revistas. Recentemente, o presidente Luis Inácio Lula da Silva se pronunciou a respeito, afirmando-se favorável às uniões de duas pessoas do mesmo sexo. De passagem pelo Brasil, à época das declarações de Lula, Robert Wintemute concedeu a seguinte entrevista ao CLAM:

Como se encontra o debate em torno das uniões homossexuais na Europa hoje em dia?

Na Europa estamos chegando ao ponto onde podemos argumentar ser uma obrigação do governo prover algum tipo de reconhecimento legal aos casais do mesmo sexo. Muitos países da União Européia aprovaram leis nesse sentido – na verdade, mais de 50% (14 do total de 27 Estados). Estamos falando de leis que asseguram o direito à união civil registrada, e que contemplam outros direitos, como a adoção de crianças por esses casais. No Reino Unido, temos a parceria civil registrada apenas para pessoas do mesmo sexo. Isto envolve apenas o registro dessas uniões. Até o momento, apenas quatro países permitem que duas pessoas do mesmo sexo se casem – Holanda, Bélgica, Espanha e Noruega. Até o ano que vem, a Suécia deve entrar neste time.

As uniões de pessoas do mesmo sexo já estão sendo vistas como um direito humano no contexto europeu?

Estamos chegando lá. Primeiramente, um direito humano deveria estar livre de qualquer tipo de discriminação, incluindo aquela baseada na orientação sexual. Este princípio tem sido aplicado em diferentes áreas da Lei. Na Lei Européia de Direitos Humanos há um princípio muito bem estabelecido – um indivíduo não pode ser privado de qualquer oportunidade por conta de sua orientação sexual ou sua identidade de gênero. O caso mais recente aconteceu em janeiro de 2008: uma mulher inscreveu-se em um processo de adoção e seu pedido foi recusado por esta ser lésbica, embora o princípio estabeleça que aos casais de mesmo sexo devem ser dados todos os direitos de todos os casais heterossexuais.

A situação ainda é muito diferente em outras partes do mundo, como na América Latina. Recentemente, na Argentina, um casal de duas mulheres, Maria Rachid eClaudia Castro, entrou com uma ação na Corte Suprema de Justicia de la Nacion Argentina, baseando-se principalmente na Constituição daquele país, pleiteando o direito de se casarem. Entretanto, o pedido foi negado. Qual deveria ser a melhor estratégia?

Isto depende do país. Em alguns lugares, não é legalmente possível para casais LGBT contestar sua exclusão ao direito ao casamento civil através da Corte. Quando isto é possível, então definitivamente vale a pena tentar. No caso argentino, a decisão negativa não vai ajudar em nada. A não ser que tudo o que se anseie com este caso seja a publicidade. Uma boa estratégia então é publicizar a existência desses casais que estejam querendo se casar e deixar claro que esta é uma responsabilidade do Legislativo, e que a Corte não pode ajudar. Até mesmo isto pode ser um benefício para o caso. Em muitos países, a opção é lutar por um projeto de lei no Legislativo e fazer campanhas para que este seja aprovado.

No Brasil, a estratégia tem sido mover a discussão do Legislativo para o Judiciário, no que diz respeito à conquista de direitos. Muitos casais recorrem à Corte…

As minorias que enfrentam discriminação e a violação de seus direitos humanos têm sempre duas opções: ir à Corte ou recorrer ao Legislativo, embora este seja frequentemente insensível às necessidades e aos problemas das minorias. É realmente um dever da Corte defender os direitos humanos e proteger as minorias contra a discriminação. Então, esta é uma importante opção a ser considerada, mas isto não quer dizer que seja a única. Ambas as opções podem se influenciar entre si, uma vez que as decisões da Corte muitas vezes inspiram o Legislativo. Em países como o Brasil, ambas as estratégias são usadas ao mesmo tempo.

As uniões civis registradas foram, durante algum tempo, a prioridade do movimento LGBT brasileiro, em termos de demandas. Atualmente, a prioridade é aprovar o projeto de lei que propõe a criminalização da homofobia. Como o sr. avalia este tipo de proposta de legislação?

Pessoalmente, eu acredito que a prioridade deveria ser uma lei anti-discriminação geral, em nível federal, que proibisse a discriminação baseada na orientação sexual ou identidade de gênero no acesso ao trabalho, à educação, à moradia e a outros serviços. Uma vez alcançado este valor, a sociedade passa a aceitar que as pessoas LGBT têm os mesmos direitos e oportunidades iguais na vida, assim como as minorias raciais, as mulheres e outros grupos. Vejo a criminalização da homofobia como uma questão secundária. Criminalizando a homofobia busca-se prevenir não só a discriminação, mas também a violência. Para prevenir a violência, a abordagem usada nos Estados Unidos foi passar leis chamadas “leis de crime”, que contemplam outros tipos especiais de crimes –um crime de violência racista, com uma penalidade alta, ou o crime mais comum. Mas se a motivação deste crime for a homofobia, então o juiz pode impor uma sentença mais dura. Nesses casos, a motivação é considerada um fator agravante na decisão da sentença. Estas leis são muito comuns nos Estados Unidos e existe uma campanha para aprová-la em nível federal. Eu não acho que leis especiais ou penalidades especiais para os crimes de ódio devam ser necessárias. Não acredito que um assalto ou assassinato seja mais ou menos pior por causa de sua motivação. O grande problema é que as leis contra a violência existem, mas a polícia não leva a violência contra as pessoas LGBT a sério.

Além dos crimes de ódio, existem também os discursos de ódio…

As leis de crimes de ódio apenas punem e dizem respeito à violência física. Na verdade, não há um conflito com um outro direito humano, embora algumas pessoas argumentem na Suprema Corte que se eu disser “bicha suja”, antes de bater em você, e receber uma pena mais severa, isto se deu por causa daquilo que eu disse, por causa da ofensa verbal. Este não é um argumento válido, uma vez que o agressor nesses casos está sendo punido pela combinação da violência física com as palavras, não apenas pelas palavras. Leis contra a agressão verbal são mais difíceis de serem aprovadas do que as leis de crimes de ódio porque existe aí um conflito de direitos – temos de um lado o direito a ser livre de discriminação baseada na orientação sexual e, de outro, o agressor pode reclamar pelo direito à liberdade de expressão, e este argumento tem sido aceito pela Suprema Corte dos Estados Unidos.

Por outro lado, na Europa, se permitirmos discursos de ódio, isto pode nos levar novamente aos campos de concentração. Então, temos de agir rapidamente. Se alguns dizem “Os judeus são o mal”, isto é ilegal na maioria dos países europeus. Um sujeito pode ser processado por isto. É possível encontrar leis protetoras de minorias em todos os lugares do continente. A pergunta difícil hoje em dia na Europa é saber o que fazer em relação à orientação sexual. Eu não acho que as leis contra os discursos de ódio devam existir, mas por outro lado, se elas existem, elas vão apenas cobrir a raça, não a orientação sexual.

O sr. fez parte do time de especialistas que elaborou os Princípios de Yogyakarta, documento que apresenta uma variedade de questões legais. De que maneira os Princípios podem ajudar?

Eu recomendo que os Princípios sejam usados de maneira seletiva. Se uma questão em particular for uma prioridade em seu país – como a criminalização da homofobia, os discursos de ódio ou a adoção de crianças por casais de mesmo sexo – consulte os Princípios de Yogyakarta. O documento deve ser usado para embasar campanhas nacionais.