A violência contra alunos homossexuais em instituições de ensino foi objeto de estudo da tese de doutorado “O silêncio está gritando: a homofobia no ambiente escolar”, defendida recentemente pelo presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, na Universidad de la Empresa, de Montevidéu, no Uruguai, baseada em uma pesquisa qualitativa em quatro escolas de Curitiba. Além de buscar identificar as causas que obstacularizam a efetivação das políticas públicas existentes no Brasil voltadas à cidadania LGBT e ao combate da homofobia nas escolas, a tese procurou identificar que ações deveriam ser realizadas para a efetivação destas políticas e propor elementos de mudança para o trabalho da temática da diversidade sexual nas escolas, levando em consideração as recomendações de profissionais de educação e estudantes para reduzir ou eliminar a homofobia no ambiente escolar.
O bullying homofóbico tem se tornado cada vez mais foco de preocupação, depois que casos que culminaram em mortes passaram a estampar as manchetes policiais. O mais recente foi o do menino Roliver de Jesus, de 10 anos, que na sexta-feira (17/2), véspera do Carnaval, enforcou-se com o cinto da mãe, depois de voltar da escola, onde estava sendo sistematicamente alvo de piadas e humilhação verbal de outras crianças e adolescentes. O caso aconteceu em Vitória, capital do estado do Espírito Santo.
A pesquisa de Toni Reis vem se somar aos outros estudos já realizados no Brasil sobre o tema, como o da organização Reprolatina – “Homofobia na Comunidade Escolar” –, de 2010, e o da Unesco – “Juventude e Sexualidade” –, de 2004, que abrangeu diferentes aspectos da vida sexual dos jovens, incluindo a discriminação em relação aos homossexuais no ambiente escolar. Ambas as investigações mostram a forte presença da homofobia na escola, embora ela seja negada. No caso do levantamento da Unesco, mesmo que um grande número dos alunos tenha afirmado posições libertárias em relação à homossexualidade na escola, cerca de um quarto dos estudantes entrevistados afirmou que não gostaria de ter um colega homossexual. Na pesquisa da Reprolatina, que ouviu 1400 participantes – dos quais 385 estudantes e 410 professores de 4 escolas de 11 capitais brasileiras –, foram recorrentes relatos do tipo “Tem que se respeitar o lugar onde você está. Se ele (aluno homossexual) não se mostra, não será agredido”, dito por uma autoridade escolar entrevistada. Ou ”Não gosto do desmunhecar quando é apelativo. Atrapalha a aula”, relato de um aluno.
Na entrevista a seguir, Reis fala sobre os elementos que podem vir a mudar a situação vivenciada por jovens homossexuais na escola e fazer o país avançar em relação à questão, e sobre as perspectivas do movimento LGBT brasileiro – cuja principal bandeira é a criminalização da homofobia – frente ao panorama atual de conservadorismo em nível governamental.
Sua tese foca sobre o problema da homofobia no ambiente escolar, buscando determinar as causas que obstacularizam a efetivação das políticas públicas existentes no Brasil voltadas à cidadania LGBT e ao combate à homofobia nas escolas. Quais são esses obstáculos?
Os obstáculos que identifiquei incluem a predominância de atitudes heteronormativas, machistas e religiosas que desqualificam as pessoas LGBT; a falta de diretrizes claras nas Secretarias de Educação e nas escolas para a implementação das políticas existentes; a falta de materiais didáticos de apoio e a inexistência de capacitação inicial e continuada sistemática dos/das profissionais de educação para lidar com o tema. Procurei também identificar que ações deveriam ser realizadas para a efetivação das políticas de combate à homofobia no ambiente escolar, como a inclusão da temática no currículo pedagógico das escolas, para que ela seja abordada de maneira permanente.
Como o campo da Educação poderia contribuir melhor na consolidação do respeito à diversidade sexual?
É preciso mudar o enfoque dado à homossexualidade na Educação, da área da sexualidade/saúde para o campo da cidadania/direitos; ter materiais educativos específicos de apoio e capacitação sistemática inicial e continuada dos/das profissionais de educação, além de mecanismos nas Secretarias de Educação de supervisão, monitoramento e avaliação destas ações. E, acima de tudo, garantir a abordagem laica nas escolas.
Por falar em laicidade, o governo tem sido acusado pelos movimentos sociais de fazer muitas concessões à chamada “bancada evangélica” da Câmara dos Deputados, como no caso do material didático pedagógico Escola sem Homofobia, desenvolvido pelo Ministério da Educação e suspenso a pedido da presidente Dilma Rousseff após pressões dos setores conservadores. Recuos deste tipo não poderiam vir a atrapalhar quaisquer estratégias de intervenção para o enfrentamento da homofobia não só no ambiente escolar, como em toda a sociedade?
O crescimento do fundamentalismo religioso que avança sobre a laicidade do Estado é um fenômeno que considero preocupante para a democracia, ao pressionar governos e partidos e incidir adversamente na elaboração legislativa e nas políticas públicas. Neste sentido, creio que a bancada fundamentalista tem tido uma força considerável junto ao governo Dilma Rousseff. Por outro lado, o governo federal tem anunciado publicamente seu compromisso com os direitos humanos da população LGBT e assim esperamos que se passar no Congresso Nacional a lei a que criminaliza a homofobia, a mesma não seja vetada pela presidenta.
O formato do projeto que propõe a criminalização da homofobia, que deveria ter sido votado em dezembro, foi modificado para conciliar e mitigar as críticas dos seus adversários. O projeto original tendia a coibir qualquer manifestação de pensamento contrário à homossexualidade. Nesse sentido, no texto atual tenta-se excluir do crime de homofobia o que se chama de “manifestação pacífica de pensamento decorrente da fé e da moral”. Transparece, nessa fórmula, um salvo-conduto que se pretende conceder a líderes religiosos. Como vê isso? Acredita que o adiamento da votação propicie a oportunidade para mais ajustes ou acha que todas as concessões possíveis já foram feitas?
Sobre a criminalização da homofobia, o movimento LGBT amadureceu e decidiu-se ser necessário reivindicar uma lei que não hierarquize as violências ou as discriminações. Assim foi aprovada uma proposta que equipararia a homofobia ao racismo e a qualquer outra forma de discriminação ou violência. Penso que na política deve haver diálogos e se buscar consensos dentro do limite da ética e não da submissão. Na tentativa de diálogo com os vários setores do Senado, conseguimos ampliar o leque de alianças, mas não podemos ceder em tudo. Agora que o movimento está com o acúmulo de força da II Conferência, vamos voltar a discutir a questão de forma mais madura.
Além da bandeira da criminalização da homofobia, o que se faz premente em termos de políticas públicas e leis para esta população?
O que se observa é que há uma falta de orçamento para políticas LGBT. O projeto do Plano Plurianual enviado pelo governo federal para o Congresso Nacional não prevê o programa específico “Promoção da Cidadania LGBT”. O projeto de Lei Orçamentária Anual para 2012 do governo federal prevê recursos insignificantes para políticas LGBT. Na Secretaria de Direitos Humanos são apenas R$1.1 milhão, com pouquíssimos recursos para ONGs na área de direitos humanos das pessoas LGBT. Assim, o novo Plano Nacional LGBT deve ser institucionalizado por meio de decreto presidencial, com recursos orçamentários claramente definidos, com metas claras, meios de verificação, comitê gestor interministerial e cronograma das ações priorizadas. Como parte desse processo, deve haver editais públicos para ONGs para o trabalho com a comunidade LGBT. Outras prioridades incluem a realização de campanhas nacionais, estaduais e locais de combate à homofobia, promoção da cidadania LGBT e respeito à diversidade sexual, principalmente nas mídias eletrônicas (rádio e TV), mas também na internet, redes sociais, jornais impressos etc. Com relação a Trabalho, Assistência Social e Previdência, deve haver políticas de geração de emprego, qualificação profissional e intermediação de mão-de-obra e inclusão previdenciária voltadas às pessoas LGBT, sobretudo travestis e transexuais, bem como a ampliação da inserção da temática LGBT nas políticas de assistência social, no Brasil sem Miséria, nos Centros de Referência e Centros de Referência Especializados de Assistência Social. O movimento tem as parcerias com o Conselho Federal de Psicologia, com o Conselho Federal de Serviço Social e com a Ordem dos Advogados do Brasil para aprovarmos o Estatuto da Diversidade Sexual e as Propostas de Emenda à Constituição especificamente em relação à população LGBT. Prioridades para a segurança pública incluem a criação da metodologia nacional e unificada de registro de assassinatos homofóbicos, crimes de ódio e violência homofóbica no geral, assim como a capacitação dos operadores de segurança pública em direitos humanos LGBT, com a participação do movimento social organizado e a academia.
Que balanço faz da II Conferência Nacional LGBT, realizada em dezembro?
Diferentemente da I Conferência, na segunda já tínhamos propostas para avaliar e discutir o que já tinha sido executado ou não. Segundo relato recebido dos Ministérios envolvidos, 60% das ações do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT foram cumpridas. Infelizmente não pudemos fazer uma avaliação mais criteriosa tendo em vista que o Plano não tem indicadores e nem meios de verificação claros. Creio que esta foi uma falha que não deve se repetir no segundo Plano, que deverá sair a partir das deliberações da II Conferência. Vejo como saldo positivo a metodologia definida pelo Conselho Nacional LGBT no seu papel de Comissão Organizadora, de que a Conferência deveria tirar apenas dez diretrizes principais para a elaboração do segundo Plano, porque na primeira ficou tudo muito solto e houve mais de 600 propostas, dificultando a hierarquização. As propostas mais significantes foram da área da Educação, que foi considerada prioridade. Espera-se que o Ministério da Educação possa dar respostas concretas.
Também vejo como positivo o aumento e a diversificação das alianças do movimento LGBT, bem como a participação da academia, dos sindicatos, dos movimentos populares e dos conselhos profissionais das áreas da psicologia, serviço social e advogados, por exemplo.
Concretamente, que propostas da I Conferência já foram realizadas?
Como disse anteriormente, em torno de 60% das ações foram realizadas. Neste sentido, nos três anos entre a I e a II Conferências houve diversos avanços no contexto nacional e na garantia de bases de consolidação de políticas públicas para a população LGBT. Foi criada a Coordenação-Geral Nacional de Políticas LGBT, dentro da estrutura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, além de instaurado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção de Direitos Humanos LGBT. A SDH também lançou o módulo LGBT do Disque 100, demonstrando que 12% do total das denúncias recebidas dizem respeito à discriminação de pessoas LGBT. Outra ação da Secretaria foi a assinatura do Pacto Federativo contra a Homofobia, com 12 secretarias estaduais de segurança pública e com mais nove em processo de assinatura. Vários órgãos do governo federal também reconheceram as uniões homossexuais, como o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Defesa, inclusive para fins de imposto de renda. O ex-presidente Lula decretou o17 de Maio como Dia Nacional de Combate à Homofobia. Na área da Saúde, houve a atuação do Grupo de Trabalho de Saúde da População LGBT, com a aprovação do Plano Operativo da Política Nacional de Saúde Integral de LGBT, que inclui o processo transexualizador, além do apoio do Ministério da Saúde a ações educativas e preventivas nas Paradas LGBT. Outro avanço foi o reconhecimento do nome social de pessoas trans em 19 estados. E não podemos deixar de mencionar a decisão do Supremo Tribunal Federal pela equiparação das uniões estáveis heterossexuais com as homossexuais, garantindo o acesso aos mesmos direitos de ambas as uniões.
A decisão do STF em maio de 2011 significou um marco histórico para a população LGBT, e agora já se fala em casamento civil. Como vê a possibilidade de aprovação desta proposta, já aprovada pela vizinha Argentina, tendo em vista a atual correlação de forças na Câmara Federal brasileira?
Creio que a Câmara Federal brasileira deveria simplesmente seguir o exemplo e aprovar. Já existem dez países no mundo onde é o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo é permitido, e mais 24 com diversas formas de união estável homossexual aprovada.