Em 1999, teve início a Pesquisa Gravad, um estudo multicêntrico sobre jovens, sexualidade e reprodução no Brasil desenvolvido em três capitais (Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador). O objetivo: fazer um estudo sobre comportamento sexual e reprodutivo de jovens brasileiros. Abordando temas como iniciação sexual, gravidez na adolescência, conjugalidade e valores sobre sexualidade, o estudo entrevistou 4634 jovens de ambos os sexos, com idades entre 18 e 24 anos.
Um dos focos da pesquisa era estudar as diferentes formas de passagem para a vida adulta. Proveniente da Pesquisa Gravad, o artigo “Uniões precoces, juventude e experimentação da sexualidade”, da antropóloga Maria Luiza Heilborn, trata de uma dessas formas de transição – as uniões juvenis. O texto, parte integrante da coletânea Sexualidade, Família e Ethos Religioso (CLAM / Editora Garamond), que será lançada no Rio de Janeiro no dia 14 de dezembro, faz uma análise sobre os jovens que declararam estar unidos e residindo fora da casa parental no momento da pesquisa.
No artigo, a pesquisadora mostra como os jovens em união atualizam um modelo de trajetória que é tido como tradicional: eles estão morando juntos, fora da casa de seus pais, trabalham e majoritariamente não estudam e têm filhos. “Este conjunto de jovens compõe o avesso do processo descrito como ‘alongamento juvenil’: eles fazem uma passagem condensada para a vida adulta”, afirma ela.
A antropóloga também relativiza a idéia de que essas uniões possam ser descritas como precoces. “As uniões juvenis só podem ser descritas como precoces em face do modelo ideal de escolarização e adiamento da vida conjugal e reprodutiva”, observa.
A sra. afirma que é melhor entender a juventude como um processo do que como um grupo social específico. Por quê?
O entendimento da juventude como processo coloca ênfase nas transições que se operam em um certo período do ciclo da vida, não estando circunscrita a marcos etários rígidos. As concepções de adolescência e juventude que temos hoje carregam representações culturais que vigoram em um determinado momento ou contexto histórico-social. Além disso, podemos falar em juventudes pois não há uma homogeneidade tendo em vista as diferenças de classe, cor/raça, gênero e religião que modulam as trajetórias de vida dos jovens.
Que expectativas cercam a juventude na contemporaneidade? Quais são os ideais atualmente preconizados?
Em poucas palavras, as expectativas contemporâneas são de que o período da juventude seja o momento da vida dedicado ao processo de escolarização e de profissionalização do jovem como de preparação para a vida adulta. Isto significa retardamento da conjugalidade e da reprodução. Se outros eventos ocorrem sem que estes projetos estejam “concluídos”, um episódio reprodutivo ou conjugal é considerado como perturbador da trajetória ideal dos jovens.
Em comparação a gerações passadas, a passagem para a vida adulta está mais complexa? A trajetória dos jovens em direção à vida adulta atualmente ainda segue um modelo de transição linear como tido no passado?
Tento mostrar no artigo que a concepção hegemônica que caracteriza a vida adulta, definida como autonomia familiar-residencial e conclusão dos estudos e inserção profissional, é atualizada de forma distinta pelos jovens segundo as condições sociais as quais estão submetidos. Em primeiro lugar, a passagem para a vida adulta é mais curta para uns e mais longa para outros. Em segundo, ela é mais complexa tendo em vista que a seqüencialidade linear que caracteriza o que denominamos por transição tradicional não é mais a tônica do processo. A dita transição moderna caracteriza-se pela reversibilidade das situações. Há vai e vem neste processo de aquisição de autonomia, característica que não se restringe à juventude pois assistimos a pessoas adultas retornando, por exemplo, para a casa parental em função de perda de emprego ou por separação conjugal.
A sra. fala de um alongamento da etapa juvenil. Que fatores estariam retardando a transição para a vida adulta e prolongando a juventude?
Temos que entender o alongamento juvenil no contexto em que o término dos estudos, o início da vida profissional, a saída da casa dos pais e o início da vida conjugal são caracterizadores da vida adulta. Por um lado, vivemos um momento de contração de oportunidades para os jovens e de uma crescente demanda de especialização que resultam em mais longo processo de escolarização. A contração do mercado de trabalho e a maior escolarização demandadas fazem com que o jovem não saia da casa de seus pais e permaneça morando com estes até idades mais avançadas. Com isto, o projeto conjugal e/ou reprodutivo ficam a princípio postergados. Por outro lado, há novos valores em relação à juventude como etapa de experimentação e de melhor período da vida que respondem por este alongamento característico de certos grupos sociais.
As uniões matrimoniais precoces – geralmente decorrentes de um evento de gravidez – significam uma transição rápida para a etapa adulta?
Em primeiro lugar, as uniões juvenis só podem ser descritas como precoces em face do modelo ideal de escolarização e adiamento da vida conjugal e reprodutiva. Podemos dizer que há um encurtamento desta fase de preparação para a vida adulta se há uma antecipação destes projetos. Assim, o artigo mostra como os jovens em união atualizam um modelo de trajetória que é tido como tradicional: eles estão morando juntos (coabitação), fora da casa de seus pais, trabalham e majoritariamente não estudam e têm filhos. Este conjunto de jovens compõe o avesso do processo descrito como “alongamento juvenil”: eles fazem uma passagem condensada para a vida adulta. Contudo, tento mostrar que este processo se dá sobretudo entre as mulheres e entre os menos escolarizados, o que nos permite afirmar que o prolongamento juvenil não é uma realidade para todos.
O artigo chama atenção para o fato de que a gravidez na adolescência tem sido tratada como um problema social de dimensões dramáticas. A que se deve, socialmente, essa maneira de encarar o fenômeno? Gravidez na adolescência é o drama que se anuncia?
Primeiramente, devemos esclarecer o que estamos denominando por problema social. Há certas situações que em determinada época começam a ser vistos como “problemáticos” e são freqüentemente representadas como reais; procura-se então fatores explicativos que possam definir soluções. É necessário evidenciar as condições de emergência da gravidez na adolescência como um problema social. Ela sobressai particularmente no contexto de redução da fecundidade no Brasil; além disso, ela ganha visibilidade em razão da maior proporção de gravidez e de nascimento que ocorre fora de uma união. Essa “ilegitimidade” sem dúvida contribui para transformá-la em um problema social e existe sobretudo uma mentalidade conservadora que associa gravidez na adolescência mais freqüente entre os pobres com problema social da violência urbana. A questão da gravidez na adolescência tem que ser entendida no âmbito dos direitos sexuais das jovens mulheres, o que evidentemente significa em ter políticas de contracepção efetivas no Brasil.