CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Realidades diferentes de acesso ao aborto

Em 2007, o assistente social Maurílio Castro de Matos, professor da Faculdade de Serviço Social da UERJ, estava em Portugal realizando um estágio de pesquisa quando a população lusitana foi às urnas votar no plebiscito que acabou decidindo pela descriminalização do aborto a pedido da mulher até a 10ª semana de gestação. Estar em Portugal durante esse período possibilitou a Maurílio acompanhar o debate sobre a implementação da interrupção voluntária da gravidez naquele país. No Brasil, entretanto, essa é uma realização que parece longe do horizonte dos direitos humanos, tomando-se como base o processo eleitoral no qual vivemos, em que, mais uma vez, a temática do aborto protagoniza os discursos de campanha de maneira negativa para satisfazer moralmente uma parte do eleitorado. Atualmente, a interrupção só é permitida no Brasil em casos de gestação fruto de estupro ou quando há risco de morte para a mãe.

A partir dessas duas realidades diferentes, Maurílio Castro de Matos desenvolveu sua tese de doutorado na PUC-SP que acaba de ser lançada pela editora Almedina. A Criminalização do Aborto em Questão” esmiúça o processo português de 2007 que culminou com a legalização do aborto. A obra foi alvo de protesto de setores conservadores da Igreja Católica que fizeram pressão contra o lançamento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pediram a demissão de professores daquela universidade envolvidos no evento.

Em entrevista ao CLAM, Maurílio de Matos fala sobre o panorama em Portugal, três anos após a despenalização do aborto, e avalia o contexto brasileiro atual e num futuro de curto prazo.

Tanto Portugal como o Brasil são países fortemente marcados pelo catolicismo, embora, no Brasil, as igrejas evangélicas tenham crescido em número nos últimos anos. Como interpreta que lá tenha havido avanço nesse sentido, e aqui não? Quais são as particularidades que determinaram desfechos tão distintos?

Em Portugal houve dois motivos para que, em 2007, a população tenha ido às urnas e votado favorável à legalização do aborto até a décima semana de gestação. O primeiro fato é que em 1998 houve um plebiscito sobre a mesma matéria. Lá, o voto é facultativo. Nesse pleito, a população votou para que permanecesse como estava, ou seja, mantendo a criminalização. E logo depois a lei começou a ser de fato aplicada. Isso pegou muita gente de surpresa, porque, na realidade, a população, quando foi à urna, queria que se mantivesse como estava, ou seja, uma lei que não era aplicada. Houve julgamentos em massa que incidiram sobre muitas mulheres profissionais de saúde, taxistas, várias pessoas. Aquilo pegou a população de surpresa, que ficou assustada com a penalização. Portanto, foi um acontecimento que sacudiu a população.

Um segundo ponto importante é o seguinte: Portugal, até então, junto com a Polônia, Malta e Irlanda – países muito conservadores e pequenos – eram os únicos países que criminalizavam o aborto. Todos os outros países da Europa descriminalizaram o aborto. Era uma agenda da União Européia, e, além disso, havia também um discurso muito importante para os portugueses de pertencimento à Europa, de modernidade. Portugal viveu uma ditadura da década de 1930 até 1974. Além de totalitária, era muito conservadora em termos morais, com uma ideologia do atraso. Salazar (ditador até 1970) era um homem muito católico. Portugal ficou muito isolado. Para se ter uma idéia, por exemplo, o país não ouviu os Beatles na década de 1960. Era proibido. Então, qualquer discurso que aponte para a adaptação à modernidade, para a unificação com a Europa também ganha vulto. E isso foi um argumento muito utilizado no plebiscito em 2007.

Como foi o processo de mobilização antes e depois do plebiscito?

O quórum foi menor de 50% de votantes. Ganhou-se em vários distritos, mas teve que ser encaminhado para a Assembléia da República para que se fosse criado um projeto de lei. Se tivesse passado com mais de 50%, iria direto para o presidente sancionar.

Nesse período em que ficou na Assembléia, houve muitas tensões. Grupos minoritários pediam que a Assembléia não fizesse o projeto. Também começou-se a investir no discurso de criar um aconselhamento obrigatório. O que é isso? Uma mulher que procura uma unidade de saúde solicitando a interrupção de sua gestação vai a um posto ou a uma maternidade. Mas ela tem três dias entre a primeira consulta e a interrupção. É um procedimento para que ela possa avaliar a decisão. Nesse período, ela pode solicitar o aconselhamento (o atendimento por psicólogos ou assistentes sociais). O grupo que era contrário queria colocar o aconselhamento como obrigatório, enquanto, na realidade, deveria ser opcional, como de fato ficou sendo.

Um número pequeno de mulheres procura o aconselhamento. Na realidade, o aborto não é uma decisão fácil na vida de uma mulher. Quando ela decide que o fará, ela já avaliou muito os prós e contras, ela sabe os riscos que corre. Não é algo simples.

Qual o panorama em Portugal transcorridos três anos da legalização?

O último relatório de 2009 do Ministério da Saúde não apresentava nenhum caso de morte materna por aborto. Então, isso é um grande avanço.

Outro dado é que tem tido uma média – entre 2008 e 2009 – em torno de 18 mil abortos realizados no serviço público. Isso nos leva a pensar que se, num país pequeno como Portugal, temos esse números, imagine no Brasil a quantidade de abortos clandestinos.

Outro dado interessante é o perfil da mulher que faz o aborto em Portugal: 82% são portuguesas, 65% são jovens entre 20 e 34 anos, 60% já possuem filhos. É um perfil que destrói um pouco a idéia de que quem faz aborto é a outra, a estranha. Quem faz o aborto é nossa vizinha, a nossa parente, a nossa colega de trabalho.

Acredita que o aborto seja assunto para plebiscito no Brasil?

Entendo que a decisão pela descriminalização do aborto e a implantação de um serviço para a interrupção voluntária da gravidez não seja, por princípio, assunto para um plebiscito. O plebiscito tem sua origem na Roma antiga através de decisões do povo reunido em comícios. Contemporaneamente, o plebiscito significa a ida da população à urna para decidir sobre uma proposta que, aprovada ou não, implicará na vida de todos. Descriminalizar o aborto é facultar um direito àquelas mulheres que necessitam recorrer a esse procedimento. As que não necessitam ou não querem realizar um aborto continuarão a manter a sua gestação. Logo, apesar de toda a polêmica que o assunto traz, não entendo que seja matéria para um plebiscito. É uma matéria a ser discutida no Congresso Nacional, com maturidade própria de um Estado laico no qual deputados e senadores devem legislar para o conjunto dos moradores do país e não a partir dos seus próprios princípios religiosos, que cada um tem direito de ter, mas que devem nortear apenas a vida destes e não a política de uma nação.

No Brasil, vivemos uma situação muito desigual, em que as mulheres que abortam por métodos geralmente precários são as mais pobres e, por isso, enfrentam complicações de saúde. Ao contrário das mulheres com melhores condições que têm recursos para interromper a gravidez com segurança. Em Portugal, antes da lei também havia essa clivagem social em relação ao aborto?

Sim, embora a situação socioeconômica dos habitantes de Portugal seja diferente em termos proporcionais, a pobreza também existe. Há pobreza na periferia, os imigrantes têm dificuldades para exercerem seus direitos, entre outros problemas. Durante a campanha do plebiscito, se dizia o seguinte: a proibição era moralista, porque as mulheres pobres corriam risco de prisão e de saúde enquanto as mulheres que podiam atravessavam a fronteira e realizavam o aborto numa clínica privada de qualidade na Espanha, numa cidade chamada Badajoz. Ela é referência. Tanto que, quando legalizou-se o aborto em Portugal, essa clínica abriu uma filial em Lisboa.

De um modo geral, quais as principais dificuldades para a legalização do aborto no Brasil?

Temos um desafio que é, primeiro, debater a questão do aborto. Um ponto importante é sempre retomar o aborto como um problema de saúde pública. Os dados existentes mostram mortalidade, agravo à saúde.

Outro ponto é que o Estado, desde 1988, é laico. Nós temos que construir uma nação fraterna, onde haja respeito à diferença, que a gente compreenda que existem pessoas com várias religiões e outras sem religião, mas todas contribuem – por meio de impostos e trabalho – e também fazem parte do país.

O terceiro ponto é tentar sair da polarização de ser contra ou favorável, porque ninguém é favorável ao aborto. Trabalhamos com a idéia de que o aborto é uma escolha, uma alternativa na vida daquela mulher. Mas certamente não é uma alternativa fácil, não é um método corriqueiro. É um direito à autonomia da mulher. Para entender, é preciso uma séria discussão sobre o conceito de vida, entender que a gestação não é algo contínuo, é um processo. Tanto que ninguém defende a interrupção no oitavo mês de gestação. Então, é necessário diferenciar feto e embrião de vida humana. Isso se dá quando a vida humana já é autônoma em relação à mulher que a está gerindo.

Acha que é possível, no curto prazo, esse tipo de discussão?

Infelizmente, acho que não. Inclusive, acredito que nesta segunda etapa da eleição vamos ter uma disputa mais conservadora ainda. Note que já houve uma ‘conservardorização’: a candidata que estava certa para ganhar teve que dizer que era contra o aborto.

Grupos religiosos entraram de uma maneira muito forte na discussão sobre sexualidade em geral, e na questão do aborto especificamente. Isso mostra o peso que as religiões têm e a preocupação que há com o aborto. Tivemos várias denúncias de religiosos que indicaram votar em tal candidato e não votar em outros. Isso mostra como temos dificuldade de realizar um debate plural, maduro e que respeite as diferenças sobre aborto. A tendência é cada vez mais polarizar essa questão do contra e a favor, o que é muito reducionista.